segunda-feira, 21 de julho de 2008

O QUEIJO E OS VERMES: o blog do Menocchio – uma homenagem a Domenico Scandella

Toda publicação, qualquer que seja ela, tem o objetivo de alcançar o outro, numa atitude que podemos chamar de necessidade de comunicação, de tornar comum o que se pensa e o que se sabe.

Sempre foi assim. Do primeiro balbuciar à babel dos tempos atuais. O homem não é um animal dado à solidão. Ele quer partilhar dores e alegrias, e por isso vai em busca do outro.

No entanto, a maior carência no mundo moderno é a de ouvidos. Na vida real, vozes há muitas. Alguém para ouvir, quase não há. Daí a proliferação dos blogs. Essa necessidade que se tem de escrever na internet nasce do mesmo impulso que o homem possui de conquistar o espaço sideral.

É a tentativa de escancarar a angústia da existência, e a angústia da existência é a mesma que leva alguns a quererem mandar e outros a obedecer (outros – poucos - mandam sem querer, e há mais tantos – muitos – que obedecem forçadamente).

Nessa dança de poder e servidão, há repressões e revoltas que precisam de desabafo de toda ordem, coletivo e individual, de corpo e de alma.

É aqui que entra uma história do século XVI, contada por Carlo Guinzburg em seu ótimo O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.

Menocchio na Fogueira Santa

Em O queijo e os vermes, Ginzburg fala de Domenico Scandella, apelidado de Menocchio, um sujeito singular que foi queimado na fogueira por ser diferente e querer dizer ao outro o que pensava sobre Deus e a criação do universo.

Menocchio viveu num tempo em que se encontrava luz apenas na Labareda Santa. Autodidata, era moleiro (moía grãos) e morava numa pequena aldeia, Montereale, nos arredores de Udinese, na Itália (que ainda não era Itália). Casado, cuidava bem da família, mas tinha um defeito: falava demais (aos ouvidos da Igreja).

Ele costumava dizer que o universo se formou de uma podridão. À semelhança do queijo, que é feito de leite coalhado (apodrecido) e fermentado por um monte de vermezinhos, o mundo também teve seus vermes, e o maior e mais inteligente deles era Deus.

Os cristãos não gostaram muito de verem seu Criador ser comparado a um micróbio (que não deveria ser tão micro assim, pois se tratava do maior e mais esperto, mas em todo caso, essa imagem sugeria o substrato underground da camada zoológica) e resolveram denunciar às autoridades competentes as proezas de Menocchio.

Não deu outra. Ele foi preso, forçado a se retratar, e solto. Mas depois de livre continuou com suas idéias.

Segundo Ginzburg, Menocchio não queria pregar nada. Sua intenção não era fundar nenhuma religião, queria apenas conversar com as pessoas a respeito do que ele achava do mundo, de uma nova cosmogonia, e imaginava mesmo que estava certo, mas não se importava se as pessoas pensavam diferente dele.

Ele só queria falar. “Se vocês me levarem ao Papa ou ao príncipe, eles se surpreenderão com o que tenho a dizer”, comentava o moleiro. Ao insistir nessa cosmogonia caótica, acabou sendo queimado, em 1600, mesmo ano em que Giordano Bruno também sentiu os ardores da subversão.

Um blog para Menocchio

Se Menocchio tivesse vivido em nossos tempos, além de não ter sofrido a mão pesada da Inquisição, teria se deliciado com a internet. Ele poderia muito bem publicar um blog cheio de idéias interessantes acerca do universo, da Igreja e de Deus propriamente.

Em seus posts leríamos declarações como esta: “Deus não é nada além de um pequeno sopro e tudo mais que o homem imagina.” Ou ainda: “O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus. O que é que vocês pensam, que Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria? Não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou filho de algum homem de bem.”

Provavelmente, montaria sua própria seita. Talvez ninguém desse bola para o que escreveria. O máximo que a Igreja Católica – ou Edir Macedo – faria era dar um jeito de tirar do ar a página do blogueiro. Página que ele refaria em outro endereço, ad eternum, feito mosca na sopa.

Todo blog de certa forma é uma espécie de consciência individual tentando se mostrar em sua essência, sem revelar a identidade de fato. O que importa mesmo é o alívio dessa necessidade de falar. Pelo menos até a onda dos blogs comerciais, configurados por blogueiros profissionais.

Considerando a concepção original, há blogs de toda natureza: mulheres relatando suas formas de trair o marido; outras mostrando vulvas e peitinhos; homens enumerando com quantas transou e exibindo os troféus em fotos que tirou com câmeras escondidas no quarto de motel; meninas e meninos compartilhando suas fantasias; adolescentes confessando seus gostos, preferências, rebeldias; pessoas várias publicando tudo quanto é sorte de idéias e formas, se revelando, fingindo que se revelam, se escondendo e se descobrindo no labirinto de texto e imagem que é a web.

Menocchio deitaria, rolaria, riria, com um eterno prazer de ter a palavra, blasfemando sempre. Para ele, “blasfemar não é pecado, porque faz mal só a si próprio e não ao próximo.” O que não é verdade. A blasfêmia pode ferir profundamente o coração do crente cuja crença é atingida.

Blog do Menocchio

“Os padres nos querem debaixo de seus pés e fazem de tudo para nos manter quietos, mas eles ficam sempre bem.”

“Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que estão dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado.”

“E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe.”

“Ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com uma árvore.”

“Acho que amar o próximo é um preceito mais importante do que amar a Deus.”

“Quando o homem morre é como um animal, como uma mosca.”

“Vocês pensam que Cristo Nosso Senhor era filho da Virgem Maria, mas como, se essa Virgem Maria era uma puta? Como é que vocês querem que Cristo tenha sido concebido pelo Espírito Santo se ele nasceu de uma puta?”
“O diabo às vezes nos tenta para dizer alguma palavra.”

7 comentários:

JLM disse...

Olá,

Muito boa a resenha. Gostei. Tanto Menocchio qto Giordano Bruno foram centelhas de pensamento filosófico numa época em q predominava a escuridão religiosa.

Mas viveram no tempo certo.

Poderíamos dizer q, de certa forma, hj existe um outro tipo de escuridão, a da ignorância epidêmica proposital. Ela é, além de estimulada pelos governantes, prazeirosa aos governados. A idéia vendida é q ignorante se é + feliz. Por isso, se os 2 acima vivessem agora, talvez fossem somente + um falando (ou escrevendo) palavras para ouvidos surdos.

É triste imaginar q existem mtos blogueiros filósofos com sites de apenas 10 pageviews mensais enqto sites de BBB's e Orkut's da vida são "necessários" e os prováveis retratos de nossa época.

1 abraço e continue assim.

Gilberto G. Pereira disse...

Caro Jefferson, um comentário como este seu vale mais que mil page views, muito mais, porque, isso, sim, é interatividade.
Abç!

Anônimo disse...

Ótima resenha, Giba.
E além da resenha fica o senso crítico. O fato de você se preocupar em exprimir suas idéias é extremamente relevante. Menochio fez o mesmo em uma época onde sua atitude só poderia configurar loucura! Perdendo a família, sendo traído por amigos, padecendo torturas e processos, perdendo casa, bens, saúde.
Não há de se esquecer também daqueles que o ajudaram. Parece que há sempre uma força conspiradora que luta contra o mau e, a despeito do próprio risco, ao contrário do que Menochio fez, luta na surdina, nos subterrâneos, para ajudar aqueles que se expõem, fazendo da missão daqueles a sua própria. Vendo no sacrifício daqueles um espelho, e teimam em, de alguma forma, contribuir (ou minorar o sofrimento do outro). Dentre todos os filhos de Menochio, que o abandonaram, um ficou, até morrer, antes de conseguir ver o pai liberto. Uns poucos vieram em seu socorro também, confortando-o, aconselhando-o. Mesmo assim, o moleiro (a pedra enorme, em forma de roda, usada nos moinhos, chama-se Mó), não conseguia ficar quieto. Não conseguia fechar a matraca, e ainda bem que até hoje, existem desses. São a nossa voz, o nosso espelho como dantes.
Que em sua atividade jornalística, Giba, você seja nossa matraca, e que sempre existam aqueles que possam confortá-lo também, pois a fogueira, meu amigo, não se engane, ela ainda arde! Embora com outros nomes, atiçada por outros carrascos, mas persiste, alta e mortal.

Gilberto G. Pereira disse...

Caro anônimo, muito obrigado pela visita e pelo comentário! A história de Menochio, além de um exemplo de exercício de liberdade de espírito, é comovente, né.
Espero que de vez em quando você volte ao blog.
Grande abraço!

Aninha disse...

Olá, realmente, hoje blogs existem de todos os assuntos possíveis, alguns são pessoais, outros nem tanto, mas que o aumento deles é cada vez mais visivel isso é sem dúvida alguma!Talvez isso se deva pelo fato das pessoas hoje em dia terem um determinado tempo seu focado para sua vida na internet, pois hoje praticamente tudo tem-se um jeito na rede.
Além do que como você disse hoje todos querem falar, mas é raro de se achar alguém que queira mesmo ouvir...

prof Edvaldo disse...

Salve Gilberto e Menocchio...
ótima resenha!!!

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Edvaldo!