segunda-feira, 22 de junho de 2015

Proust e os novos bárbaros

Romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido é um legado da humanidade não só pelos procedimentos inovadores nas técnicas da narrativa, mas também pelo peso com que o autor arrasta o século 19 francês e seu lastro, no comportamento, na moda, na história da arte, na política, na genealogia, até o começo ebulitivo do século 20. Segundo Walter Benjamin, “somente Proust fez do século 19 um século para memorialistas.”

Em O Caminho de Guermantes, terceiro tomo do romance de Proust, o narrador puxa a árvore genealógica dos Guermantes, mostrando o filamento secular de uma elite arraigada na história da França, deixando nas entrelinhas um argumento para historiadores, de como as sociedades e o comando do destino humano mudam. A premissa é a seguinte: quando o vento da história passa (o sopro do tempo sob a ação dos homens, dos desejos e da vontade de poder), ajuste-se aos fatos, aprenda a lê-los, ou será varrido.

Oriane, a duquesa de Guermantes, por exemplo, “alta, com seu elevado penteado de cabelos louros e leves”, de olhos azuis, é elite. Ela provém de uma família no topo da nobreza francesa há mil anos. Mas os franceses e povos adjacentes nunca foram representados pelo louro do cabelo. Esses fenótipos estão ligados aos germânicos, que um dia foram elementos estranhos na sociedade de escol do grande Império Romano, incluindo a França.

Em Sodoma e Gomorra, quarto tomo de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel, o narrador, cita trechos em que um personagem, o príncipe real da Suécia, chamou de bávara a princesa de Guermantes, Marie, prima de Oriane. Ela não gostou da observação e respondeu melindrada: “Monsieur, não sou mais do que uma princesa francesa.” Naquela ocasião, ser loiro dos olhos azuis já era um sinal positivo diante da opinião pública, mas não para quem conhecia bem sua história de berço.

O príncipe, marido de Marie, “fazia a esposa sentar à esquerda quando passeavam de carro, porque era de sangue menos bom, embora real como o dele”, e ela mesma era chamada de princesa de Guermantes-Baviera, ou seja, da Bavária, região do alto alemão, representante direta dos godos, que até o século 4 eram tidos como grupos inferiores, disputando em filas uma vaga para adentrar o Império Romano.

Segundo o historiador italiano Alessandro Barbero, em O Dia dos Bárbaros: 9 de Agosto de 378, godos eram os germanos que viviam além dos rios Danúbio e Reno. “Eram altos e tinham cabelos louros ou ruivos, características negativas aos olhos dos romanos”, que eram “morenos e de baixa estatura. Ser alto e louro, portanto, era sinal evidente de inferioridade, de pobreza, de barbárie.”

A elite não é burra e sabe excluir. Não aceita se misturar. Nega até quando pode, nas relações e no percurso histórico, intromissões de qualquer gênero. A mistura sempre vem e muda tudo, mas à força. Como vem ocorrendo agora com os imigrantes africanos na Europa, os novos bárbaros.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 20/06/2015)

domingo, 14 de junho de 2015

Quem não ama é um simples fantasma

O amor é vário, mas deve se dividir em duas grandes categorias: o amor que se sente e o amor de que se fala. O primeiro, embora possa ser irradiante, poderoso e profundo (a depender de quem sente), é íntimo, pessoal e intransferível. O segundo é literário ou filosófico, está nos conceitos, vive no interior das palavras, nos textos, na poesia, na prosa, no fundamento estético, e é vasto.

Sempre que falamos eu te amo, corremos o risco de o outro entender o que dizemos como uma literatura particular. Do mesmo modo, o outro também corre o risco de ser tocado pelo próprio amor que sente no momento que dizemos eu te amo, quando na verdade dizemos apenas uma expressão meramente literária.

Pode parecer bobagem, ou complexo, mas isso só ocorre porque o amor mesmo é um paradoxo, tanto da moral (na subjetividade do homem), quanto da linguagem. Neste segundo sentido é que vemos poemas de amor se definirem no bojo das contradições, como em Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, para ficar no viés extraordinário da poesia brasileira.

Vinicius deixou versos como o Soneto do Amor Total: “Amo-te afim, de um calmo amor prestante/ E te amo além, presente na saudade/ Amo-te, enfim, com grande liberdade/ Dentro da eternidade e a cada instante.” Drummond escreveu coisas como as Sem Razões do Amor: “Amor é primo da morte,/ e da morte vencedor,/ por mais que o matem (e matam)/ a cada instante de amor.”

Tudo isso é literatura. Há uma infinidade de livros que analisam e comentam o assunto, como Do amor, de Stendhal, História do Amor no Ocidente, de Denis de Rougemont, passando por A Heresia Perfeita, de Stephen O’Shea, com a tese de que os cátaros inventaram o amor livre lá no século 13. Não é à toa que se diz que o amor de que se fala exerceu, e exerce, uma influência demasiada sobre o amor que se sente.

Na filosofia, o amor é objeto de interesse desde os gregos. Em todo caso, não muito distante de nós, um filósofo russo francófono, Vladimir Jankélévitch, debate o significado da moral e seus elementos no livro O Paradoxo da Moral, em que diz que o amor dá maleabilidade ao ser, mas em uma cadeia de paradoxos dentro da qual o homem precisa se equilibrar.

Por usar a lógica para explicar a moral como o principal problema filosófico existencialista, o livro de Jankélévitch é complexo, mas traz uma musicalidade ímpar. Pode ser lido como quem toca uma sinfonia de sentidos, em que o amor é emparedado pela lógica e se salva pelas contradições.

Em suas observações sobre o amor, vemos refletida a poesia de Vinicius e de Drummond. “O amor infinito, com sua abnegação infinita, tem necessariamente como sujeito um ser finito.” Eis o sofrimento. Ou: “Para amar é preciso ser, mas para ser é preciso, antes de tudo, amar: pois quem não ama é um simples fantasma.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 13 de junho de 2015)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Sobre dores e talvez delícias

Os romances do escritor americano Philip Roth sempre apresentaram personagens vigorosos, intensos, com os quais o autor trouxe à tona uma América cheia de dores e traumas, umas almas feridas, replenas de desejos e taras. Nas tramas da meia idade rumo ao envelhecimento, juntou-se a isso um medo eterno do câncer.

A temática da sua obra é um corpo cintilante carregado de sexo, incesto, condição judaica, política americana, sociedade americana, os medos, os delírios, os fracassos. Toda a literatura de Roth é um convite para um banquete literário em que está posta à mesa uma variedade de textos e citações.

Suas narrativas apontam perspectivas plurais, abordando vários pontos de vistas, oferecendo sempre um ou mais segredos absconsos na personalidade humana. Nessa pluralidade também está o tema da velhice, principalmente em dois grandes romances, um em cada lado dos dois de seus principais narradores, David Kepesh e Nathan Zuckermann, respectivamente, Animal Agonizante e Fantasma Sai de Cena. O corpo e o espírito no corpo decadente, “rebelião orgânica na qual o corpo se levanta contra o idoso.”

Em Fantasma Sai de Cena, Nathan Zuckermann, famoso escritor judeu narrador de vários dos romances de Roth, aparece com 71 anos, recém-curado de um câncer de próstata. A cura lhe rendeu uma incontinência urinária que o faz usar fraldas geriátricas. Havia se afastado de Nova York e se isolado no interior por mais de dez anos. Volta para consultar um urologista e acaba conhecendo mulheres e homens mais jovens do que ele, entre os quais está Jamie, de 30 anos, bonita e inteligente, com um sexy appeal extraordinário.

Por causa dela e por um fantasma do passado, a mulher de seu ídolo da juventude a quem desejou silenciosamente e agora está velha como ele, curando-se de um câncer, como ele o fizera, decide regressar a Nova York por um tempo. Nesse romance, Roth quer falar da velhice e das consequências do corpo envelhecido, mas quer falar também da contemporaneidade, da urgência simultânea da vida, do conflito de gerações, em dois níveis: velhice contra juventude e novos escritores contra o cânone - o cânone que cada geração cria.

Por causa da velhice, incompatível com a celeridade das coisas, Zuckermann faz uma espécie de descrição das impossibilidades, não pela carência material ou intelectual, mas pela passagem do tempo e a decadência física, que é quando se olha para todos os lados, inclusive para trás, e não se vê nada além de um imenso vazio, impossível de atravessar.

Philip Roth é um professor. Mais que um mestre dos desejos, é um tutor de espíritos que se interessam pela vida, que a acompanham pela luz da estética, das grandes lições dadas por uma inteligência superior. No meio da vida, se eu tiver a dádiva (e a missão) de envelhecer, continuarei tendo com este homem conversas sobre dores e talvez delícias.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 30 de maio de 2015)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Vocês entenderam errado

A sociedade brasileira é permeada pela ideia de que um negro deve ouvir, e até rir, das piadas racistas que lhe são contadas. Se não gostar e reclamar do escárnio, sua atitude é tida como fruto da má educação. “Reage porque é grosseiro, não tem senso de humor.” E é uma ideia aceita por todos que se sentem no direito de fazer piadinhas dessa natureza (semelhante àquela história de Brás Cubas na infância, que monta no menino negro e faz dele seu cavalo selado, dando-lhe chicotadas enquanto o cavalga no amplo espaço da Casa Grande, repreendendo o negrinho quando este reclama, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis).

Histórias como estas, registradas na ficção ou em fatos reais contemporâneos, são inúmeras. O caso mais recente é o do vídeo publicado pelo integrante da seleção brasileira de Ginástica Artística, Arthur Nory Mariano, em que aparece ele e mais dois zoando o colega negro Ângelo Assumpção, que reagiu timidamente. “Saquinho de supermercado é branco, o de lixo é preto. (...) Celular, quando funciona, sua tela é branca, quando estraga ...”

A observação em si não seria nada, mas há um contexto cujo cerne é a cor da pele do rapaz. Neste caso, a analogia das cores ultrapassa a configuração da realidade das coisas e atinge a consciência negra, não só na cor da pele, mas na sua condição humana, tanto histórica (negros na escravidão, considerados animais ou mercadorias com as quais se pode fazer qualquer coisa, dos quais pode-se dizer qualquer coisa, ou negros como cidadãos de segunda categoria nos dias de hoje) quanto subjetiva (o que sinto quando entendo a dimensão dessa investida contra mim). Logo, atinge a todos os negros conscientes dessa condição.

Arthur achou que a circunstância do fato era pouco e publicou o vídeo na internet para compartilhar a façanha. Diante dos protestos, já tinha sua desculpa: “Vocês entenderam errado.” Quando isso ocorre na esfera privada, geralmente o assunto morre ali, e o negro que vá lamber suas feridas pelos cantos. Mas quando os insultos em forma de brincadeira passam para a esfera pública, de modo geral, usa-se o recurso do cinismo como defesa. A frase “vocês entenderam errado” é apenas mais uma que entra para o rol do descaramento.

O que ocorreu entre esses jovens atletas não os coloca como racistas de fato, mas repetiram um discurso racista, que no fim das contas dá no mesmo, cometeram uma injúria racial. Há quem diga que injúria racial é só falta de educação (tal qual uma possível reação da vítima contra ela), que um Brasil mais bem educado deixaria de apresentá-la. Mas, na verdade, o arquétipo racista foi construído na camada mais bem educada da sociedade, influenciando o restante. Não é difícil perceber isso. Os garotos podem não ser racistas, mas souberam manejar bem facas e sabres do preconceito racial.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 23/05/2015)


sábado, 25 de abril de 2015

O Messias das essências

Como diz Bloom, vivemos em uma era em que a sensação (vídeos, imagens, sabores) nega o pensamento. Um cara percebeu isso na década de 1980, Patrick Süskind, e escreveu O perfume, delicioso e original best-seller em torno de um sujeito completamente marginalizado e parvo (estúpido, não sabia pensar, não sabia usar as palavras na consciência), largado pela mãe instante após ser parido, e criado como um animal caseiro por um bruto qualquer, na Paris do século XVIII.

Jean-Baptiste Grenouille, o personagem de Patrick Süskind, não exalava cheiro nenhum. Desse modo, nenhum tipo de animal o estranhava, a não ser os homens, que julgam pela aparência antes de julgar por qualquer outra coisa. Ele não exalava cheiro, mas era capaz de sentir o cheiro de qualquer coisa e diferenciar suas nuanças. Cada coisa, cada ser (mineral, vegetal e animal) tem um cheiro geral e tonalidades odorais que os particularizam.

Grenouille foi ignorado pela capacidade do pensamento imediato, nasceu náfego desse potencial humano, e por isso jamais conseguiu convocar as palavras para apoderar-se do pensamento mediato e racional. Mas a natureza é incrível. E Grenouille, por mais diferente que seja de sua espécie, também faz parte da natureza. Começou a sentir o poder da consciência ao organizar o cheiro, e o mundo tornou-se uma realidade incrível para ele.

Descobriu que podia valorar o mundo pelo aroma. Jurou para si mesmo que havia encontrado o segredo da beleza absoluta, da bondade verdadeira, sabia que se tratava de um fenômeno que tinha um perfume original e poderoso, do qual só ele conhecia a fórmula. Já aqui Grenouille sentia-se um Messias das essências.

O filme é muito fraco para explicar a ideia original de Süskind por trás do romance que ele escreveu. Mais fica aqui um aperitivo do livro:

“Há sempre um poder de convicção no perfume que é mais forte do que as palavras, do que o olhar, sentimento e vontade. O poder de convicção do aroma não pode ser descartado, entra dentro de nós como o ar em nossos pulmões, nos ocupa completamente, não há antídoto contra ele.”

E o despertar da consciência de Grenouille: “Quem dominasse os odores, dominaria o coração das pessoas.”


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terça-feira, 7 de abril de 2015

Quiero, de Marta Rodrigues Santamaria


                            Foto: Daniel Garcia/AFP/2013

Marta Rodrigues fotografada em mostra sobre
os cem anos do nascimento de Vinicius no RJ


La luz
se transformó en tormenta
y la pasión encerrada
encarcelada
y sedienta
camina por los bordes
- tienes -
de mi cuerpo.

Quiero
hundirme en tu mar
y sus instantes
quiero tu rayo en mi noche
tu lluvia y el cansancio
quiero la muerte
y el silencio
quiero la vida y la locura.

Quiero el cielo y el infierno.
y tu ternura.


O poeminha acima, Quiero, não seria nada demais se não fosse feito por uma das mulheres de Vinicius de Moraes, Marta Rodrigues Santamaria (foto), que o roubou de Gesse Gessy, em 1975. Marta, argentina, escrevia poesia, e nos vem com esse, falando de instantes e mar. Quem mandou o poeta falar tanto de infinito, instante, eterno, mar? Quem mandou? Mas ela fecha o poema muito bem. Não é de todo ruim.

A gente que não sabe inventar é tão exigente com a invenção alheia, não é mesmo? Ok, é razoável. Ok, cintila imagens em torno do bardo carioca. Ok, ela é no mínimo uma ótima leitora da poesia de Vinicius, e não a copia aqui, faz uma leitura amorosa. Uma leitura atenta, e demonstra isso ao rimar corpo com morte.

Ok, há lá em cima céu e inferno, e cá em baixo luz e tormenta. E rima loucura com ternura. Uma rima pobre, mas, ok, traduz a inquietude do amor, a sofreguidão do desejo. Que amor é esse, meu Deus! O amor é mesmo como um rio, “noturno, interminável e tardio.” Vinicius for ever.

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quarta-feira, 18 de março de 2015

Amar ajuda a discernir. E odiar?

“Amar ajuda a discernir”, diz Marcel, narrador de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. É bonito ouvir ou ler isso, é até edificante, mas entender como funciona o amor não é suficiente para o discernimento total das paixões e a compreensão do outro. Neste caso, dá para recorrer ao senso comum: os brutos também amam.

Também amam os mal educados, os baderneiros, os idiotas, os inescrupulosos, os imorais (porque o amor não é paradigma da moral, está mais para seu paradoxo), os assassinos (menos os psicopatas, por serem amorais). Os ladrões, os corruptos, os estupradores, os libertinos amam, e todos fazem suas escolhas a partir de um dado discernimento, e depois discernem uma miríade de cores a partir do amor que sentem.

O amor ajuda a diferenciar, sim, mas o mais importante no coração dessa frase proustiana é a possibilidade de se exercer a consciência dialética. Se amar ajuda a discernir, odiar ajuda a quê? Odiar ajuda a confundir, a misturar. O ódio constrói monumentos de rancor e raiva em blocos imensos, sem ao menos suspeitar de que é nas mínimas moléculas que se começa a decodificar o segredo da existência, da mobilidade afetiva.

O ódio engessa, paralisa o olhar e canaliza a ação medonhamente e cegamente para um alvo muito mais amplo do que seu objeto, de modo equivocado, em função de não saber distinguir. Na usina de desafeto, o ódio é a força motriz. Toda sociedade tem sua usina nuclear do ódio, sua Itaipu da vontade de exterminar o outro, usinas que se instalam nos espaços vazios da civilidade, no silêncio das ações efetivas do afeto. Mas é preciso sempre buscar a consciência de que essas usinas jamais devem ser acionadas.

Odiar ajuda a misturar coisas simples junto a coisas complexas e criam-se assim equívocos e espantos de proporções políticas e sociais gigantescas. Odiar ajuda a misturar, por exemplo, a figura do ladrão e do bandido com a do negro, em nosso caso, ajuda a misturar a figura do atraso e da preguiça com a do pobre. O ódio não é um sentimento democrático porque é cego e surdo.

O interessante é que o ódio é um objeto de pouco interesse dos estudiosos. Ele sempre aparece como personagem secundário. Desconheço livros com o título “História do Ódio no Ocidente”, e olha que em matéria de ódio, temos muito a dizer. As sociedades totalitárias, como a nazista e a fascista, para nos situarmos em um lugar muito próximo, são exemplos de exímias gestoras de ódio, lugares em que a usina do desafeto funcionou por alguns anos em pleno vapor, não conseguindo produzir outra coisa que não o mal.

É bom lembrar que Hitler e Mussolini não conquistaram o poder e depois foram cooptando cidadãos até criar uma sociedade perversa. Foi justo o contrário. A sociedade os colocou lá, porque pressentia a abertura para um novo poder, nefasto e absurdamente mau.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, em 18/03/2015)

terça-feira, 3 de março de 2015

Rabiscando Proust

Roland Barthes, o insuspeito, escreve o seguinte em seu pequeno e instrutivo livro O Prazer do Texto: "É o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos: ter-se-á alguma vez lido Proust, Balzac, Guerra e paz, palavra por palavra?" Em outras palavras, ele pergunta: que tipo de idiota leria esses caras sem pular páginas? Foi assim, um idiota, que me senti, mas de modo muito bem resolvido. Achei graça. E depois, Barthes ainda completa com uma doce ironia e compensação: "(Felicidade de Proust: de uma leitura a outra, não saltamos nunca as mesmas passagens.)"

Em seguida fecha a lição com uma grande aula em um curto parágrafo: " O que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o texto da fruição imprime à simples temporalidade de sua leitura."

Barthes tem razão. Preocupar-se com a leitura de um texto se baseando na capacidade de ler palavra por palavra é perda de tempo, embora seja uma perda mais valorosa que outras perdas. Li cada página - meus olhos correram por cada palavra - dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Proust, entre 2003 e 2004. E a prova de que Barthes tinha razão é que estou relendo Proust de novo, estou no terceiro volume já, O caminho de Guermantes, e há muita coisa que estou descobrindo como novidade, como se não tivesse lido antes. Aqui já é uma história que todos sabem. Todo mundo que relê sabe que encontra novidade nos grandes relatos, na alta literatura. A diferença de minha leitura é que - na primeira vez, fiz anotações no computador, que foi roubado - agora estou fazendo rabiscando, sublinhando o próprio Proust.

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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O significado da palavra “excrescência”

A frase "a existência é uma excrescência" não é sinônimo de "a vida é uma bosta". Excrescência nunca significou estrume ou excremento, só na cabeça dos ignorantes, e em se tratando do uso da língua, somos muitos, somos um exército invencível.

Excrescência quer dizer saliência, algo que se sobressai, proeminência, um monte (mas não de merda) que se eleva acima da superfície. Uma casa de cupim, aquelas casas que aparecem nos pastos de fazenda aos milhares e que o fazendeiro sobrevoa com compradores desavisados dizendo a estes que o que veem são cabeças de boi. Um chifre é uma excrescência. Uma montanha, um tumor. O homem, segundo a ideia de que veio do barro, é uma excrescência.

No poema abaixo de Augusto dos Anjos, você, homem receberá elogios e insultos, mas em altíssimo nível. Portanto, não chores, ó desgarrado do universo! Alivie-se em saber que é uma excrescência de terra, mas singular. Agora, na hora da morte, não isso, não, na hora do "montão de estercorária", eu violaria o túmulo do poeta e lhe queimaria os cabelos.

"Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!

O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!

Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.

Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!"


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Minha Vida: Oliver Sacks descobrindo um câncer terminal



Segue abaixo a tradução do belo texto de Oliver Sacks (foto) publicado ontem no New York Times. Autor de livros que contam histórias deliciosas, dramáticas e tragicômicas dos outros, Sacks agora fala dele mesmo sobre coragem, sensibilidade, vida e morte, ao descobrir um câncer terminal.

"Um mês atrás, eu me sentia com ótima saúde, uma saúde de ferro, eu diria. Aos 81 anos, ainda posso nadar 1,5 quilômetro diariamente. Mas minha sorte virou. Há algumas semanas, descobri que tenho metástases espalhadas pelo fígado. Nove anos atrás, fui diagnosticado com um tipo raro de tumor no olho, um melanoma ocular. Embora as rádio-terapias e as operações a laser para remover o tumor no fim das contas tenham cegado meu olho, apenas em casos muito raros tumores desse tipo criam metástases. Fiquei entre os 2% de azarados.

Sinto-me agradecido por nesses nove anos desde o primeiro diagnóstico ter tido boa saúde e levado uma vida produtiva. Mas agora estou cara a cara com a morte. O câncer ocupa um terço de meu fígado, e embora o avanço  tenha desacelerado, este tipo particular de tumor não pode ser interrompido.

Depende de mim agora escolher como quero viver os últimos meses que me restam. Escolhi viver do modo mais rico, profundo e produtivo que eu puder. Para esta tarefa, encorajo-me nas palavras de um de meus filósofos favoritos, David Hume, que, ao saber que tinha uma doença terminal aos 65 anos, escreveu uma curta autobiografia em um único dia de abril de 1776, e a intitulou "Minha Vida".

'Faço agora uma rápida análise', escreveu Hume. 'Sofri muito pouca dor da minha doença, e, o que é mais estranho, não obstante o grande declínio físico, não sofri um momento sequer em meu espirito. Sinto o mesmo ardor pelos estudos e o mesmo contentamento junto a uma companhia.' 

Tive muita sorte em viver mais de 80 anos, e os 15 que vivi a mais que Hume foram igualmente rico de trabalho e amor. Nesse período publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (mais longa que a de poucas páginas de Hume) que será publicada ainda nesta primavera (outono, no Brasil). Além disso, tenho vários outros livros quase finalizados.

'Sou um homem moderado' dizia Hume em sua autobiografia, 'um homem com autocontrole, com senso de humor, sociável e divertido, capaz de vínculos, pouco suscetível a inimizades e de grande moderação nas paixões.'

Aqui me afasto de Hume. Enquanto curti relações amorosas e amizades e não tive inimigos, não posso dizer (nem ninguém que me conhece diz) que sou um homem de disposições suaves. Pelo contrário, sou um homem de disposições veementes, com entusiasmos violentos e extrema imoderação em todas as minhas paixões. Ainda assim, uma linha do ensaio de Hume retumba em mim como especialmente verdadeiro: "É difícil estar mais ligado à vida do que estou agora."

Nesses últimos dias, pude ver minha vida de uma grande altura, de uma espécie de paisagem, e com um profundo senso se conexão com todas as partes. Não significa que minha vida acabou. Pelo contrário, sinto-me intensamente vivo. Quero, e espero, nesse tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo, escrever mais, viajar (se tiver forças), atingir novos níveis de entendimento e de luz interior (insight).

Isso envolverá audácia, clareza e conversa franca, tentando acertar minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo também para um pouco de diversão (e até mesmo para um pouco de bobagens). Sinto uma ligeira clareza de foco e de perspectiva. Não há mais tempo para nada que não seja essencial. Devo focar em mim mesmo, em meu trabalho e em meus amigos. Não verei mais o NewsHour toda noite. Não vou mais prestar atenção em nenhum político ou em argumentos sobre aquecimento global.

Não se trata de indiferença, mas de desapego - ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade, mas isso não é mais da minha conta. Esses assuntos pertencem ao futuro. Regozijo quando conheço jovens - mesmo o que fez minha biópsia e diagnosticou minha metástase. Sinto que o futuro está em boas mãos.
Nos últimos dez anos, tenho cada vez mais tomado nota de mortes de meus contemporâneos. Minha geração está cedendo passagem, e cada morte sinto como uma interrupção, um pedaço se rasgando de mim mesmo. Não haverá ninguém mais como nós quando formos todos, mas o fato é que não há ninguém igual a ninguém, jamais. Quando as pessoas morrem, não podem ser substituídas. Deixam buracos que não podem ser preenchidos, pois é o destino - o destino genético e neural - de todo ser humano ser indivíduo único, para descobrir seu próprio caminho, para viver sua própria vida, para morrer sua própria morte.

Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é o de gratidão. Amei e fui amado. Recebi muito dos outros e também doei parte de mim. Li, viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação com o mundo, aquela relação especial que se dá entre escritores e leitores. Acima de tudo, fui um ser sensível, um animal pensante, neste planeta maravilhoso, e isso em si mesmo foi um privilégio e uma aventura enormes."

Oliver Sacks (9 de julho de 1933) é professor de Neurologia da Escola de Medicina da New York University e escritor, autor de vários livros, entre eles O Homem Que Confundiu Sua Mulher Com Um Chapéu


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