A sociedade brasileira é permeada pela ideia de que um negro deve
ouvir, e até rir, das piadas racistas que lhe são contadas. Se não
gostar e reclamar do escárnio, sua atitude é tida como fruto da má
educação. “Reage porque é grosseiro, não tem senso de humor.”
E é uma ideia aceita por todos que se sentem no direito de fazer
piadinhas dessa natureza (semelhante àquela história de Brás Cubas
na infância, que monta no menino negro e faz dele seu cavalo selado,
dando-lhe chicotadas enquanto o cavalga no amplo espaço da Casa
Grande, repreendendo o negrinho quando este reclama, em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis).
Histórias como estas, registradas na ficção ou em fatos reais
contemporâneos, são inúmeras. O caso mais recente é o do vídeo
publicado pelo integrante da seleção brasileira de Ginástica
Artística, Arthur Nory Mariano, em que aparece ele e mais dois
zoando o colega negro Ângelo Assumpção, que reagiu timidamente.
“Saquinho de supermercado é branco, o de lixo é preto. (...)
Celular, quando funciona, sua tela é branca, quando estraga ...”
A observação em si não seria nada, mas há um contexto cujo cerne
é a cor da pele do rapaz. Neste caso, a analogia das cores
ultrapassa a configuração da realidade das coisas e atinge a
consciência negra, não só na cor da pele, mas na sua condição
humana, tanto histórica (negros na escravidão, considerados animais
ou mercadorias com as quais se pode fazer qualquer coisa, dos quais
pode-se dizer qualquer coisa, ou negros como cidadãos de segunda
categoria nos dias de hoje) quanto subjetiva (o que sinto quando
entendo a dimensão dessa investida contra mim). Logo, atinge a todos
os negros conscientes dessa condição.
Arthur achou que a circunstância do fato era pouco e publicou o
vídeo na internet para compartilhar a façanha. Diante dos
protestos, já tinha sua desculpa: “Vocês entenderam errado.”
Quando isso ocorre na esfera privada, geralmente o assunto morre ali,
e o negro que vá lamber suas feridas pelos cantos. Mas quando os
insultos em forma de brincadeira passam para a esfera pública, de
modo geral, usa-se o recurso do cinismo como defesa. A frase “vocês
entenderam errado” é apenas mais uma que entra para o rol do
descaramento.
O que ocorreu entre esses jovens atletas não os coloca como racistas
de fato, mas repetiram um discurso racista, que no fim das contas dá
no mesmo, cometeram uma injúria racial. Há quem diga que injúria
racial é só falta de educação (tal qual uma possível reação da
vítima contra ela), que um Brasil mais bem educado deixaria de
apresentá-la. Mas, na verdade, o arquétipo racista foi construído
na camada mais bem educada da sociedade, influenciando o restante.
Não é difícil perceber isso. Os garotos podem não ser racistas,
mas souberam manejar bem facas e sabres do preconceito racial.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular,
23/05/2015)
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