Romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido é um
legado da humanidade não só pelos procedimentos inovadores nas
técnicas da narrativa, mas também pelo peso com que o autor arrasta
o século 19 francês e seu lastro, no comportamento, na moda, na
história da arte, na política, na genealogia, até o começo
ebulitivo do século 20. Segundo Walter Benjamin, “somente Proust
fez do século 19 um século para memorialistas.”
Em O Caminho de Guermantes, terceiro tomo do romance de
Proust, o narrador puxa a árvore genealógica dos Guermantes,
mostrando o filamento secular de uma elite arraigada na história da
França, deixando nas entrelinhas um argumento para historiadores, de
como as sociedades e o comando do destino humano mudam. A premissa é
a seguinte: quando o vento da história passa (o sopro do tempo sob a
ação dos homens, dos desejos e da vontade de poder), ajuste-se aos
fatos, aprenda a lê-los, ou será varrido.
Oriane, a duquesa de Guermantes, por exemplo, “alta, com seu
elevado penteado de cabelos louros e leves”, de olhos azuis, é
elite. Ela provém de uma família no topo da nobreza francesa há
mil anos. Mas os franceses e povos adjacentes nunca foram
representados pelo louro do cabelo. Esses fenótipos estão ligados
aos germânicos, que um dia foram elementos estranhos na sociedade de
escol do grande Império Romano, incluindo a França.
Em Sodoma e Gomorra, quarto tomo de Em Busca do Tempo
Perdido, Marcel, o narrador, cita trechos em que um personagem, o
príncipe real da Suécia, chamou de bávara a princesa de
Guermantes, Marie, prima de Oriane. Ela não gostou da observação e
respondeu melindrada: “Monsieur, não sou mais do que uma princesa
francesa.” Naquela ocasião, ser loiro dos olhos azuis já era um
sinal positivo diante da opinião pública, mas não para quem
conhecia bem sua história de berço.
O príncipe, marido de Marie, “fazia a esposa sentar à esquerda
quando passeavam de carro, porque era de sangue menos bom, embora
real como o dele”, e ela mesma era chamada de princesa de
Guermantes-Baviera, ou seja, da Bavária, região do alto alemão,
representante direta dos godos, que até o século 4 eram tidos como
grupos inferiores, disputando em filas uma vaga para adentrar o
Império Romano.
Segundo o historiador italiano Alessandro Barbero, em O Dia dos
Bárbaros: 9 de Agosto de 378, godos eram os germanos que viviam
além dos rios Danúbio e Reno. “Eram altos e tinham cabelos louros
ou ruivos, características negativas aos olhos dos romanos”, que
eram “morenos e de baixa estatura. Ser alto e louro, portanto, era
sinal evidente de inferioridade, de pobreza, de barbárie.”
A elite não é burra e sabe excluir. Não aceita se misturar. Nega
até quando pode, nas relações e no percurso histórico,
intromissões de qualquer gênero. A mistura sempre vem e muda tudo,
mas à força. Como vem ocorrendo agora com os imigrantes africanos
na Europa, os novos bárbaros.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular,
20/06/2015)
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