quarta-feira, 3 de junho de 2015

Sobre dores e talvez delícias

Os romances do escritor americano Philip Roth sempre apresentaram personagens vigorosos, intensos, com os quais o autor trouxe à tona uma América cheia de dores e traumas, umas almas feridas, replenas de desejos e taras. Nas tramas da meia idade rumo ao envelhecimento, juntou-se a isso um medo eterno do câncer.

A temática da sua obra é um corpo cintilante carregado de sexo, incesto, condição judaica, política americana, sociedade americana, os medos, os delírios, os fracassos. Toda a literatura de Roth é um convite para um banquete literário em que está posta à mesa uma variedade de textos e citações.

Suas narrativas apontam perspectivas plurais, abordando vários pontos de vistas, oferecendo sempre um ou mais segredos absconsos na personalidade humana. Nessa pluralidade também está o tema da velhice, principalmente em dois grandes romances, um em cada lado dos dois de seus principais narradores, David Kepesh e Nathan Zuckermann, respectivamente, Animal Agonizante e Fantasma Sai de Cena. O corpo e o espírito no corpo decadente, “rebelião orgânica na qual o corpo se levanta contra o idoso.”

Em Fantasma Sai de Cena, Nathan Zuckermann, famoso escritor judeu narrador de vários dos romances de Roth, aparece com 71 anos, recém-curado de um câncer de próstata. A cura lhe rendeu uma incontinência urinária que o faz usar fraldas geriátricas. Havia se afastado de Nova York e se isolado no interior por mais de dez anos. Volta para consultar um urologista e acaba conhecendo mulheres e homens mais jovens do que ele, entre os quais está Jamie, de 30 anos, bonita e inteligente, com um sexy appeal extraordinário.

Por causa dela e por um fantasma do passado, a mulher de seu ídolo da juventude a quem desejou silenciosamente e agora está velha como ele, curando-se de um câncer, como ele o fizera, decide regressar a Nova York por um tempo. Nesse romance, Roth quer falar da velhice e das consequências do corpo envelhecido, mas quer falar também da contemporaneidade, da urgência simultânea da vida, do conflito de gerações, em dois níveis: velhice contra juventude e novos escritores contra o cânone - o cânone que cada geração cria.

Por causa da velhice, incompatível com a celeridade das coisas, Zuckermann faz uma espécie de descrição das impossibilidades, não pela carência material ou intelectual, mas pela passagem do tempo e a decadência física, que é quando se olha para todos os lados, inclusive para trás, e não se vê nada além de um imenso vazio, impossível de atravessar.

Philip Roth é um professor. Mais que um mestre dos desejos, é um tutor de espíritos que se interessam pela vida, que a acompanham pela luz da estética, das grandes lições dadas por uma inteligência superior. No meio da vida, se eu tiver a dádiva (e a missão) de envelhecer, continuarei tendo com este homem conversas sobre dores e talvez delícias.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 30 de maio de 2015)

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