Assim
que o livro de Gay Talese, Vida de escritor (Companhia das Letras,
tradução de Donaldson M. Garschagen, 2009), foi lançado no Brasil, houve quem
não gostasse da leitura. “Não sei por que rasgam tanta seda para Gay Talese”, diziam.
Quem
não gostou, pode não ter gostado por uma questão estética, mas não se pode
negar a qualidade do livro de Talese, com o acurado vaivém do texto e seus meneios.
O autor
intercala informações sobre seus assuntos de interesse, técnicas de apuração,
técnicas narrativas. Pode ter ficado puxado para alguns leitores mais jovens. Talese
discorre sobre seus interesses múltiplos, diversidade que lhe dá trabalho para conferir,
inclusive.
Os temas
vão se acumulando em função de sua demora na apuração e na redação:
restaurantes, esporte, vida familiar, imigrantes, conflito racial. A vida
correndo entre as capas do livro, uma vida de jornalista e escritor.
Uma
vez que Vida de escritor trata da própria trajetória de Talese, dá para
entender porque a narrativa é cheia de fiações complexas, indo e vindo em torno
de tantos assuntos que se entrelaçam e respiram às vezes no desfecho de algum
fio.
Seu
relacionamento conjugal, suas amizades, o modo como lida com a tecnologia e
como a tecnologia influencia na sua maneira de trabalhar também estão
imbricados ao longo das 510 páginas.
Talese
se coloca como um fracassado em seu próprio livro, quer dizer, escreve do ponto
de vista de seus fracassos mais do que de sua carreira vitoriosa como
jornalista e escritor de sucesso, autor de vários best-sellers como Fama e
anonimato, Honra teu pai e A mulher do próximo. Seu livro
mais recente é O voyeur, de 2016.
Em Vida
de escritor, ele começa e termina o livro com a mesma história de uma
derrota: o caso da jogadora de futebol chinesa Liu Ying, que errou o pênalti e cedeu
a vitória à seleção americana no final da Copa do Mundo de Futebol Feminino,
nos EUA, em 1999.
A
maioria das páginas é dedicada a investimentos em pautas fracassadas, o que dá
ao livro uma orientação estética interessante. Junto com a busca pela essência
de Liu Ying e sua derrocada em plena disputa de pênaltis, o autor ainda coloca
no centro de sua narrativa a história de uma mulher que cortou o pinto do
marido.
Saga
peniana
Aos 60
anos e com best-sellers publicados, em 1993, Talese escreveu um texto de 10 mil
palavras sobre o caso do pinto ceifado. Era um freelance a ser publicado na
revista Vanity Fair. Fez uma abertura fantástica, citando o romance Germinal,
de Émile Zola, que fala da vida dura dos mineradores franceses do século XIX,
em que um grupo de mulheres capa um homem.
Depois,
ele inicia o texto propriamente:
“Esta
semana, a nação que oficialmente tem horror a sexo e violência, mas nunca se
sacia disso, poderá se fartar com a lavagem de roupa suja pela televisão
protagonizada pela sra. Lorena Bobbit, moça pessimamente casada que, dizendo
ter sido vítima de abuso sexual praticado por seu marido, um fuzileiro naval,
vingou-se utilizando uma faca de cozinha de cabo vermelho e trinta centímetros
de comprimento (comprada na loja de artigos para o lar Ikea, em Woodbridge,
Virgínia), com a qual decepou dois terços do pênis do marido adormecido.”
O
texto era bom. Não é qualquer jornalista que abre a reportagem com uma frase
certeira dessas, acusando os EUA de serem “a nação que oficialmente tem horror
a sexo e violência, mas nunca se sacia disso.”
Sua
editora Tina Brown, no entanto, não gostou do texto e não o publicou. “Sinto
que não li nada de novo sobre o casal além do que já sabia da leitura de
jornais”, disse a chefe. Desapontado, Talese tentou argumentar: “Você diz que
não leu nada além do que já sabia – mas a maior parte dessas coisas você soube
por mim.”
Irredutível,
a editora respondeu com tom de ponto final: “Devemos nos despedir de uma vez
por todas dessa saga peniana para você se dedicar a algo mais compensador.
Vamos tentar criar alguma coisa mais digna de suas energias.” Ou seja, dane-se
seu interesse por um pinto cortado. Vida que segue.
Na
fileira da chinesa que não soube chutar no momento decisivo, do mal cortado
pela raiz, Talese narrava também sua heroica apuração sobre restaurantes em
Nova York, que não deu em nada até agora. Os arquivos da apuração, no entanto,
estão guardados. Eis que de repente pode surgir um livro novo, que todo mundo
quer ler, sobre o mundo da gastronomia nova-iorquina, os sucessos e fracassos
de restaurateurs.
O
drama do fracasso
Gay Talese
é um jornalista vencedor. Ninguém chega ao cargo de diretor de redação do New
York Times sem lastro. Ninguém escreve vários livros que servem como modelo
de uma linguagem como quem pega um bonde errado e chega ao paraíso.
Por
que então esse plasma da derrota em seu livro? A resposta é simples: porque em
toda sua vida de escritor, ele perseguiu os fantasmas dos derrotados anônimos,
arrancando deles as notas dramáticas que compuseram suas existências.
Além
disso, Talese quer deixar claro que na vida de escritor, para cada sucesso há
uma sucessão de fracassos que ficam escondidos ou são ofuscados pelos holofotes
do êxito. Ele trouxe para primeiro plano essa experiência.
Uma de
suas influências de jornalismo literário é Na pior em Paris e Londres, de
George Orwell, publicado quando o termo ainda não havia sido cunhado, que narra
a história de fracassados.
O
livro de Talese expõe também as dificuldades de apuração e de encontrar uma boa
história, pela qual muitas vezes se gasta tempo em demasia, tempo que o jornalismo
nunca tem. “É importante reconhecer que durante os quarenta anos de minha
carreira como escritor-pesquisador eu investi pesadamente na perda de tempo”,
escreve.
Consciência
literária
Nas
primeiras páginas, quando Talese está explicando como passou do jornalismo de hard
news (com lead e sublead definidos) para um texto literário sem perder a
veracidade dos fatos, ele esquematiza uma tese sem dizer exatamente com todas
essas palavras: jornalismo literário é o texto jornalístico que cobre um fato
com seus pormenores e detalhes, com ambientação e diálogo tão meticulosos e
certeiros em seu acabamento que a verdade do que está sendo dito ultrapassa a
importância de ser ficção ou realidade.
Toda
narrativa é uma construção, utilizando-se de elementos que se debatem numa
armação de tempo e espaço. O jornalismo difere da ficção porque o repórter se
depara com um fato, e diante dele pergunta, e precisa reportar as respostas que
obteve, muitas delas não sendo fáceis de obter, para muitas delas sendo
necessário se valer da imaginação - para perguntar melhor e buscar uma resposta
mais apurada.
Às
vezes, é necessário se imaginar mais do que se vê, em termos de espaço,
detalhes e diálogos, sem dúvida. Mas as normas de exatidão do jornalismo
precisam segurar a história toda como colunas sustentando um edifício.
Quando
Talese diz “construo personagens como meio de refletir aspectos da história de
um tempo e de um lugar que os historiadores costumam desdenhar”, essa
construção a que se refere traduz a medida do seu trabalho. Além disso, mostra
que ele atua como um historiador das pequenas coisas, um cronista das derrotas
cotidianas. Por isso seus livros são bons, e este, revelador de sua técnica.
Está
impressa na narrativa não só o modus operandi do escritor, mas uma complexa
consciência literária, isto é, o espírito investigativo que vai juntando coisas
ao longo do caminho da vida para forjar uma história. “Muitas vezes, escrever é
como dirigir uma caminhão de noite, sem faróis, errando o caminho e passando
uma década numa vala.”
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