Em
uma palestra sobre literatura moderna, o escritor amazonense de origem libanesa
Milton Hatoum comenta que o produto literário sempre passa pela memória da
infância. Mesmo quando a narrativa não traz sua marca explícita em nenhum dos
personagens, o substrato dos primeiros anos do autor está lá, no caminho da
criação literária. Há quem conteste, mas Hatoum está bem acompanhado. O poeta e
escritor tcheco Rainer Maria Rilke, em vários de seus textos, também fala algo
semelhante.
No
romance autobiográfico Os Cadernos de
Malte Laurids Brigge, Rilke comenta que para fazer um verso, “precisa-se
ter visto muitas cidades, homens e coisas.” E vai enfileirando no texto
experiências e sentimentos, como países, despedidas e os “mistérios da infância
não esclarecidos”. Mas esse feixe de coisas não serve para ser lembrado nos
versos tal como fora na vida. É para ser elaborado. “Não basta mesmo ter
recordações: precisa-se saber esquecê-las” e “possuir a grande paciência de
esperar até que elas voltem”, conclui.
Em
Cartas a um jovem poeta, Rilke
ensina: “Escave dentro de si uma resposta profunda. (…) Utilize, para se
exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de
suas lembranças.” Rilke era um homem sombrio na vida, mas cintilava de algum
modo, mesmo nos Poemas à noite. Para
ele, “a arte também é apenas uma maneira de viver.”
Usar
a infância como luz dos passos adiante é essencial neste caso (o de ser e de
criar), porque nela podem estar os recursos mais extraordinários. “Mesmo que se
encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de
chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e
régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela”, dizia.
Neste
sentido, Hatoum é meu Rilke, não só porque faz de sua narrativa um lugar
privilegiado da memória, mas porque privilegia a minha própria. Cresci rodeado
de rios e verdes no Mato Grosso. Com sua prosa ao mesmo tempo universal e
amazônica, Hatoum me ensinou a importância de se cultivarem os elementos
fulcrais que passam pela memória da infância.
Em
Dois irmãos, o narrador diz: “A
memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado.” E é essa invenção que nos
erige e nos engrandece como sujeitos e nos capacita para entender melhor o
mundo de onde falamos, porque não é mais passado, é identidade. Hatoum fecunda
a literatura brasileira cruzando informações da Amazônia e da cultura árabe,
colocando no mesmo plano palavras como tucunaré, cipó, jirau, embira, tacacá,
matupá, darbuk (tambor), surata, sufi, arak, tucum.
Para
mim, isso é importante porque, ao mesmo tempo, mostra meu lugar e me lança a um
outro universo. Sua literatura traz “uma mistura de gente, de línguas, de
origens, trajes e aparências”, cruza cheiros e cores, e ainda me dá um certo
norte.
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em O
Popular, 11/04/2015)
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