Foto: Gilberto G. Pereira
Vista parcial do Aeroporto J. F. Kennedy, em Nova York, na manhã de nosso regresso ao Brasil |
Dia 15 (20 de julho de 2016) - final
O título do livro de Umberto Eco, Viagem na irrealidade cotidiana, não teve uma inspiração direta na
cidade de Nova York, mas o autor analisa uma série de coisas reverenciadas
pelos americanos, do ponto de vista da semiótica, como castelos medievais
reproduzidos na terra do Tio Sam, a reconstrução do faroeste na Disney, a cidade
de Las Vegas com suas reproduções arquitetônicas simbólicas.
“A imaginação norte-americana deseja a coisa verdadeira e
para atingi-la deve realizar o falso absoluto”, diz Eco. Quanto mais o falso se
aproxima do verdadeiro, mais absoluto ele é e, portanto, mais verdadeiro.
Central Park, por exemplo, é um falso-absoluto, porque nada ali é natural da
vegetação local, mas interage com o resto da paisagem urbana como se fosse um
quadro original da época dos índios.
Nova York é abordada no texto As fortalezas da solidão,
o primeiro texto do primeiro capítulo do livro de Eco. Foi onde li pela
primeira vez sobre o Museu da Cidade de Nova York. O museu tem peças de arte e
históricas, com textos de testemunho e de análise, fotos, vídeos, tudo com o
propósito de recriar a memória da cidade.
Neste sentido, Nova York, que já foi um imenso laboratório
do falso absoluto, aventura narrada em NovaYork delirante, é hoje um autêntico espaço urbano cosmopolita, e a menos
americana das cidades americanas.
O museu fica instalado de modo discreto, na comparação com
as vedetes das artes como Metropolitan, Guggenheim e MoMA, num prédio de arquitetura clássica na 5ª
Avenida, entre as Ruas 103 e 104, Upper East Side, de frente para o Central
Park.
Memórias
No dia 20 de julho, o último em que eu pisaria os pés
pelas ruas da cidade naquela viagem, fui sozinho a dois museus, o MoMA e o Museu
da Cidade de Nova York. Tinha planos de ir ainda ao Metropolitan, mas inventei
de deixá-lo para último e me esqueci do cansaço, que bateu forte, fazendo-me
desistir da jornada.
Esse tipo de visita deve ser feito com calma, de pelo
menos um dia todo para cada instituição, e assim repetir a visita por uns bons
pares de vezes. Na falta de tempo, dediquei algumas horas em cada museu e
voltei para casa contente com os registros, mentais e fotográficos, de muita
coisa boa.
Mas no MoMA me deparei com uma mostra gigante de Degas,
embora já tivesse visto uma considerável exposição do artista francês no Museu
de Artes de São Paulo (MASP), e fiquei um pouco enjoado com o senso estético
pedófilo dele.
Também vi peças inacreditáveis do que se chama de arte
moderna, como de Marcel Duchamp, de Yayoi Kusama (uma poltrona cujo tecido tem
a saliência de pênis em toda a superfície).
Havia muita coisa de extremo bom gosto e outras mil faces
do modernismo que valem pelo experimentalismo estético, pela transgressão dos
valores, mas que certamente entram no coração de poucos como moradia.
No Museu da Cidade de Nova York, o passeio foi dominado pela
olhar ao passado. Tudo que existe ali é para contar a história da cidade, desde
a chegada dos holandeses, capitaneada por Henry Hudson, inglês contratado pela
Companhia das Índias Orientais, passando pela entrega da cidade aos britânicos,
a pluralidade cultural desde o início, até a tragédia do ataque terrorista às
Torres Gêmeas.
Na saída, conversei com uma simpática vendedora da
livraria do museu. Eu queria encontrar um livro de história de Nova York. Tinha
uma lista de títulos como First
Manhattans - a history of the greater New York, de Robert S. Grumet, Gotham - a history of New York City to 1898,
de Edwin G. Burrows e Mike Wallace, e Rise
and fall of New York City, de Roger Star.
Desses da minha lista, só encontrei Gotham, mas era um calhamaço sem nenhuma ilustração, e eu me desanimei.
A vendedora então me sugeriu New York –
an ilustrated history (formato revista, de 626 páginas), de Ric Burns e
James Sanders. Gostei, comprei e disse adeus à livraria de minha última
aquisição em Nova York.
Comprei alguns livros na Big Apple. Mas queria ter comprado
mais. Na minha lista de desejos, além das obras escritas por autores negros, havia
muitos títulos do jornalismo literário.
Jornalismo e literatura
Os anos 1940, 50, 60 e 70 foram dominados pelo fulgor do
jornalismo literário em Nova York em grandes veículos como The New Yorker, The New York
Times, Squire e New York Magazine. O conto moderno de
Nova York foi feito pelos jornalistas, que dominam a narrativa da cidade. Neste
sentido, o novo jornalismo e Nova York têm muita coisa em comum.
Aliás, o jornalismo começa a narrar o imaginário de Nova
York bem antes do que se pensa. A Times Square tem esse nome por causa do
edifício do New York Times, jornal de
mesmo nome que cobre a cidade e o mundo desde 1851.
Conforme já disse anteriormente, quando o prédio,
localizado no cruzamento da 7ª Avenida com a Broadway, passou a ser chamado de
Times Building, e a região começou a ganhar importância pelo número de casas de
show, teatros, cinemas, e o espetáculo de luzes que havia, o quarteirão do
prédio e as adjacências foram batizados de Times Square.
Junto com a cobertura do jornalismo, com a demandada de escritores para a cidade,
muitos romances foram ambientados em Nova York, de algum modo. Há as tramas que
mergulham nas paisagens interiores ou focam a atenção nas dependências internas
dos espaços, e assim não conseguimos observar a cidade pelas marcas verbais.
Entre as citações diáfanas da paisagem nova-iorquina está O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald,
em que Nick Carraway narra a história do enigmático Jay Gatsby, que mora numa
mansão numa das inúmeras ilhas pequenas ocupadas por milionários da cidade. O
que interessa nesse romance de 1925 é sua atmosfera psicológica, a marcação do
espírito oportunista e aventureiro dos fazedores da América.
O livro, no entanto, é importante para o presente texto
porque em dado momento o narrador diz: “A cidade, vista da Ponte Queensborough,
é sempre uma cidade vista pela primeira vez, em sua primeira e violenta
promessa de todo o mistério e de toda a beleza existente no mundo.”
Não passei pela Ponte Queensborough, que ficou na minha
imensa lista de coisas que não visitei. Quis passar por ela apenas por essa
citação. Eu queria ver esse prenúncio de mistério e beleza. Acabei presenciando
algo semelhante caminhando pelas ruas de Manhattan mesmo, em todos os cantos
por onde passei, respirando o que um dia foi novidade para o mundo, e que agora
só o era para mim.
Já Bonequinha deluxo, de Truman Capote, aborda Nova York a partir de seu coração. O livro conta
a história de Holly Golightly, que vai para a cidade impulsionada pelo desejo
de viver o luxo dos ricos. Lá, é sustentada por um mafioso que está preso em
Sing Sing, presídio de segurança máxima a 50 quilômetros de Nova York, às
margens do Rio Hudson.
Capote escreveu Bonequinhade luxo em 1958, antes portanto de seu grande sucesso de jornalismo
literário A sangue frio, de 1965. O
romance é uma reação estética de Capote ao glamour de Nova York em meio à
perdição. Seu espanto é o mesmo de todos que alcançam a dimensão da riqueza em
meio à miséria. Como é que se pode conviver com isso sem se dar a mínima?
Um modo semelhante de olhar a cidade foi o de Tom Wolfe,
da mesma escola de Capote, ao escrever A
fogueira das vaidades, em 1987. O protagonista vive entre os ricos em
Manhattan, mas com um orçamento apertado. Um dia se desvia da rota cotidiana. Sem
querer, acaba no Bronx e atropela um homem preto e pobre. A partir daí, tudo
começa a desandar.
A cidade escrita
Em Noturno em Manhattan,
Collin Harrison faz diferente dos dândis supracitados. Ele mostra a face crua
da vida sem glamour. Seu narrador é um jornalista que escreve crônicas da
realidade abjeta de Nova York. “Vendo o sofrimento do pobre e a vaidade do rico”,
diz ele logo no início.
Lá na frente, o narrador arremata: “Eu trabalho, quase
sempre, nos bairros mais tristes e violentos da cidade de Nova York. Lugares
onde os trabalhadores abrem suas contas de luz e ficam longos minutos
olhando-as fixamente, onde se compra o uniforme da escola paroquial com grande
esperança. Onde as crianças pequenas acumulam cicatrizes inquietantes. Onde os
garotos carregam armas de brinquedo que parecem reais e armas verdadeiras
pintadas como brinquedos. Onde as pessoas têm vitalidade mas nenhuma perspectiva,
ambição mas nenhuma vantagem. Elas são pobres e sofrem imensamente por isso.” O
livro foi publicado em 1996, mas duvido que a vida retratada nele seja
diferente hoje.
Bonequinha de luxo, A
fogueira das vaidades
e Noturno em Manhattan estão mais ou
menos no mesmo nível de criação, apesar de o romance de Capote ter seu toque de
talento superior. Nenhum desses escritores, no entanto, tem o alcance narrativo
de Philip Roth ou Paul Auster, como em Fantasma
sai de cena ou Trilogia de Nova York,
respectivamente.
Sombras sobre o Rio
Hudson, de Isaac
Bashevis Singer, talvez seja a magnum
opus da cidade, uma vez que Moby
Dick, de Herman Melville, não concentra sua atenção no ambiente urbano
nova-iorquino.
Outros escritores, entre a vasta leva, que se ocupam em
criar uma Nova York literária são Don DeLillo, Jonathan Safran Foer, Jonathan
Franzen, Hubert Selby, Jr., Nicole Krauss (para citar os vivos que li ou leio).
Mas Nova York se renova sempre. Do mesmo modo que a
arquitetura arrojada de empresas como Tishman Speyer ofuscou o glamour das arquiteturas
anteriores, incluindo a art dèco, a linguagem do chamado novo novo jornalismo
assumiu a ponta do jornalismo na cidade.
Neste sentido, Ted Conover dialoga com o jornalismo
literário de Capote, ao mergulhar no submundo de Sing Sing, no livro Newjack. Por outro lado, se Capote fez
ficção – com Bonequinha de luxo – para falar de uma realidade cruel que
existia nas relações da Big Apple, Conover fez o contrário, cercou sua própria realidade
com uma ficção primeira, fazendo-se passar por guarda da Sing Sing, concursado
e tudo, mas apenas para de lá de dentro tomar nota da realidade da cadeia.
Para aqueles que
ousaram
É o fim da estadia, e estou extasiado, entusiasmado com a
viagem e a aglomeração de imagens que guardo na memória. Elas se misturam com o
que já trazia de expectativas num caldeirão de símbolos que enriquecem minha
alma.
Antes mesmo de se despedir de Nova York, meu Virgílio,
Albert Camus, escreveu em seu diário: “Minha curiosidade por este país parou de
repente. (...) Eu seria capaz de fazer sua defesa e apologia, posso reconstruir
sua beleza ou seu futuro, mas simplesmente meu coração deixou de falar...”
É aqui que ele me deixa, porque de Nova York, não
exatamente do país (do país não tenho muito a dizer), minha impressão é
positiva. Não que a cidade não tenha problemas, pelo contrário, é um ímã de
desgraças na mesma proporção que atrai progresso e sucesso. Mas meu coração
ainda quer falar dela, minha memória ainda continuará tecendo tramas
interessantes sobre ela.
O anti-herói Rorschach de HQs, no filme Watchman, cuja história se passa numa Nova
York futurista e paralela de 1985, diz o seguinte: “Essa cidade tem medo de
mim. Eu vi a sua face. As ruas e suas sarjetas dilatadas estão cheias de sangue.
E quando os bueiros finalmente transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A
imundície de tanto sexo e matança vai espumar até a cintura, e todas as
rameiras e políticos vão olhar pra cima clamando ‘salve-nos’, e eu vou
sussurrar ‘não’. Agora o mundo todo tá na beirada, olhando pra dentro do
inferno. Todos os liberais e intelectuais de fala mansinha. E de repente
ninguém mais sabe o que dizer. Lá embaixo, esta cidade horrível grita como um
matadouro cheio de crianças retardadas, e a noite fede a fornicação e
consciências imundas.”
A ficção às vezes põe o dedo na ferida com mais clareza do
que o jornalismo consegue fazê-lo. Mas o pessimismo de Rorschach está na outra
ponta da realidade. Por isso, para finalizar minha viagem escrita, meu delírio
prosaico, prefiro a fala de Moss Hart, diretor de teatro e dramaturgo nova-iorquino
(1904 - 1961), judeu, filho de imigrantes, que cresceu numa relativa pobreza no
Bronx.
Prefiro acreditar nessa versão mais palatável da
realidade, registrada por Moss Hart, essa realidade mais esperançosa, a face
urbana e universal de Nova York que me fez querer visitá-la:
“A única credencial que a cidade pediu foi a ousadia de sonhar”,
diz Moss Hart. “Para aqueles que ousaram, ela abriu seus portões e seus
tesouros, não se importando sobre quem eram, nem de onde vinham.”