Foto: Gilberto G. Pereira
Paisagem do Central Park, 50 quadras de extensão: massa verde no meio do concreto |
Caminhar faz bem. Caminhar em Nova York é o motor
essencial para se conhecer Manhattan. Caminhar quarteirões inteiros, respirando
a cidade, assimilando o barulho constante dos carros, das pessoas conversando,
ruídos de máquinas trabalhando. Há sempre uma obra na ilha dos Lenape, uma
reforma, um prédio sendo erguido. E a eterna muvuca do ir e vir. De vez em
quando, a gente ouve frases em português, e não olha.
O dia 19 de julho, o penúltimo de pleno sol de nossa
estadia em Gotham City, foi de caminhadas rumo às atrações nos arredores do
Central Park. Pela manhã, fomos visitar o Museu de História Natural, na Central
Park West Avenue. Sempre lotado, enfrentamos uma enorme fila para entrar. Mas
lá dentro, ah, que grandioso!
É mais que o dinossauro de Uma noite no museu. É um clado inteiro. Além da ossada montada do
velho dino na entrada, havia uma exposição especial, uma seção imensa dedicada
ao mundo dos lagartos terríveis, com a teoria de que todos eles tinham penas,
como galinhas gigantes (contraditoriamente).
Outra seção especial a que assistimos foi a apresentação
do Planetário. Que coisa mais chocante e vertiginosa! A história do Big Bang
passando sobre meus olhos assustados com tanta beleza, tanta magia. O som e a
vertigem da velocidade das imagens, após plácidos momentos de narração, me
deixaram embriagado.
Ficamos quatro horas no Museu de História Natural, em meio
a tantas peças do acervo permanente, com a exposição de faunas e floras,
sociedades humanas, com figurações caprichadas. Fomos almoçar.
No calçadão da 5ª Avenida, na altura da Rua 64, uma mulher
simpática, conversadeira, nos atendeu em inglês. Teria nos recebido em
português se soubesse. Ela disse que sabia espanhol. Não dei confiança. Precisava
gastar meu inglês.
Um grupo de italianos se aproximou, e a carismática
vendedora de cachorro quente mudou a língua para atendê-los. E falou em árabe
com outro cliente que chegava. Comemos sanduíches e espetinhos com molho
barbacue (comi tanta coisa com molho barbacue em Nova York que já nem quero
mais ouvir falar nisso).
Depois fomos para o Zoológico do Central Park. A impressão
que tive foi de que os nova-iorquinos não gostam muito daquele troço incrustado
ali. As informações sobre onde ficava o zoo eram dadas com desdém, visivelmente
direcionado ao objeto da pergunta, não a nós exatamente. Os
bichos – vários, como leopardo-das-neves, focas, urso polar, pinguins, aves em geral –, se fossem
ouvidos, talvez não quisessem ficar ali também.
Já de minha parte, e da minha filha, a decepção com o zoo
ficou por conta de não haver leão, nem girafa, nem hipopótamo. Não estávamos no
ambiente de Madagascar. Só mais
tarde vim saber que o grande lance de zoológico em Nova York é o do Bronx. Não
me animei a sair da programação.
Quando deixamos o zoo, lá pelas quatro da tarde, iniciamos
uma jornada Central Park adentro que demorou para acabar. Estávamos bem perto
da ponta sul do parque, e fomos caminhando e apreciando a paisagem até a ponta
norte, no Harlem. São 50 quadras de ponta a ponta (da Rua 59 a 110). É uma área
enorme de verde entre um mar de concreto e aço.
Harlem: metrópole negra
da América
Apesar de termos apreciado tudo que havia dentro do parque
no lado Leste, não o conhecemos tudo porque havia muita coisa do lado Oeste,
por onde não tivemos tempo de
caminhar. Outra frustração foi não ter conseguido passear
pelo Harlem como eu queria. Estávamos hospedados num hotel na Rua 32, no bairro
Korean Town, mais especificamente no Midtown, ou seja, no meio de Manhattan,
mas a rigor, muito mais perto do Lower Manhattan, do que do Upper (Norte), onde
fica o Harlem.
Dava para ir a pé até o Battery Park, numa boa caminhada,
mas subir a pé até o Harlem de onde estávamos hospedados era autojudiação. Fui
postergando, postergando até que chegou o dia de voltar, e o Harlem ficou apenas
nas lembranças de passagens de carro ou desse fim de tarde quando atravessamos
o Central Park de ponta a ponta e andamos pelas ruas do bairro negro mais
charmoso e cheio de histórias da cidade.
Ainda deu tempo de observar as inúmeras igrejas batistas e
as famosas barbearias comandadas por profissionais negros, daquelas que a gente
costuma ver em filmes. Quando planejei a viagem para Nova York, o Harlem estava
na minha mira, por tudo que representa para a diáspora negra.
Todos os grandes movimentos negros que ocorreram em Nova
York nasceram ou repercutiram com força no Harlem. Os artistas negros vindo de
fora procuravam o bairro como lar, como Ralph Ellison, autor de Homem invisível, e Paul Robeson, ator e
cantor negro que protagonizou um filme lindo chamado O barco das ilusões, de 1951.
Inteligente e engajado nas causas do negro americano, Robeson
publicou uma autobiografia intitulada Here
I stand (Fico aqui, em tradução
livre), em que chama o Harlem de “cidade dentro de uma cidade, metrópole negra
da América.” Durante muito tempo, foi a meca da consciência negra.
Quando Alberto Camus visitou Nova York, nos anos 1940, o
Harlem estava em pleno vapor de efervescência da cultura negra. Em seu diário
de viagem, ele escreveu: “Questão negra. Enviamos um martiniquês em missão para
cá. Alojaram-no no Harlem. Em relação a seus colegas franceses, ele se dá conta
pela primeira vez de que não é da mesma raça.” O Harlem é nosso espelho.
Renascença
O Harlem é um bairro de negros nova-iorquinos, mas o nome
é holandês. Os holandeses batizaram de Harlem o braço de água que desce do Rio
Hudson e desemboca no Rio East, que por sua vez se encontra com a baía do
Hudson ao sul, permitindo a formação da ilha de Manhattan. Chamara o rio de
Harlem em homenagem à cidade holandesa de mesmo nome, com um ‘a’ a mais, Haarlem.
Mais tarde, o nome se estendeu à comunidade que viria a ser
o bairro nova-iorquino habitado pela maioria negra. Foi lendo Em busca do tempo perdido que me
deparei com o nome Harlem fora de Nova York pela primeira vez. Este é um
exemplo de como a literatura conduz minha jornada interior.
No romance de Marcel Proust, Marcel, o narrador, conversando
com o duque de Guermantes (Basin), diz que havia visitado Holanda, indo a
Amsterdam e Haia e deixado Haarlem de lado por falta de tempo. “Como! Esteve na
Holanda e não foi a Haarlem? – exclamou
a duquesa” (de Guermantes), Oriane.
Alguém poderia me repreender do mesmo modo. “Como foi a
Nova York e não explorou Harlem, seu cabeça de bagre!” Eu tinha muitos planos. Planejei
comprar muitos livros que narram a vida e a luta dos negros em Nova York, entre
eles, títulos como The autobiography
of an ex-colored man e Black
Manhattan, de James Weldon Johnson, The
New Negro, de Alain Locke, e Another country, de James Baldwin.
Não comprei nada porque não achei nas livrarias que
frequentei, como Barnes and Noble, livraria do Museu da Cidade de Nova York, Housing
Works, na Crosby Street, Lower Manhattan, e uma ou duas livrarias em que entrei
por acaso. Não há muitas livrarias em Manhattan. Pelo menos não consegui ver.
Não pude ir à Shakespeare and Company, e esta foi uma de minhas frustrações.
Alguns desses autores que cito aqui são a máxima expressão
do movimento que revolucionou a consciência negra americana, Harlem Renaissance
(Renascença do Harlem), encabeçado por Alain Locke, um intelectual negro,
professor de Harvard, num tempo de trânsito difícil para os negros, mais do que
hoje.
James Weldon Johnson também é um nome em alta conta do movimento.
Era considerado uma de suas luzes. Black
Manhattan é um livro importante para quem quer entender o sentimento da
diáspora e da construção de um novo mundo para os negros, simbólica e
espacialmente.
A internet está lotada de informações sobre o Harlem,
sobretudo Nova York. Os elementos apontados aqui são apenas os pontos de
argumento de minha viagem, confirmando a cidade como meu tropo literário.
Na literatura, no cinema, na religião, na política, na
música, o Harlem é a grande referência de espaço do debate da negritude. A
origem do Bebop é o Harlem, e seu marco inicial é o álbum Now's the time, de 1945, por Charlie Parker (1920-1955), que nasceu
em Kansas City e morreu em Nova York, cidade que respira música negra: o jazz,
o blues, o rap, o funk (aquele que Tim Maia herdou e levou para o Brasil).
Nova York, por exemplo, foi onde Coltrane compôs e gravou
sua obra máxima A Love Spreme. Miles
Davis também viveu na ilha dos Lenapes, na Rua 77, West Side, entre a West End
e a River Side, em Manhattan. Em 2014, a rua foi batizada de Miles Davis Way.
Não passei por lá. Embora esses caras não morassem no Harlem, este era o local
de ressonância dessa cultura toda.
Plenitude da existência
Antes de deixar o Harlem, devo lembrar de Frankie Lymon,
jovem astro negro da música pop que nasceu ali, em 1942, e fez muito sucesso
com baladinhas românticas da época. Muito antes de Justin Bieber cantar Baby,
em 2009 (baladinha pop que todo jovem conhece, num ritmo de black music, “baby,
baby, baby, ooh!”), Frankie Lymon já tinha estourado aos 13 anos, em 1955, com
uma balada parecida, Baby, baby, dizendo “Baby, baby, how
I want you”.
Tá na internet. Li sobre Frankie Lymon no livro Um século em Nova York, de Marshal
Berman, que aos 15 anos ouvia o astro teen nas rádios e nas paqueras da Times
Square. Lymon morreu aos 25 anos de overdose de heroína, em 1968. Eu ia dizer
que não tivera a mesma sorte de Justin Bieber, que de vez em quando, chapado,
apronta umas e outras. Mas Bieber só tem 22 anos.
O livro de Marshal Berman foi lançado em 2006, e em 2009
foi publicado em português pela Companhia
das Letras. Um século em Nova
York (que em inglês deixa mais claro sua intenção: On the town: one hundred years of spectacle in Times Square) narra
a criação e a transformação ao longo do tempo do conjunto de quarteirões em
Manhattan conhecido como Times Square. Quando saímos do Harlem, lá pelas 19
horas, pegamos um táxi e pedimos para nos deixar na Times Square.
Marshal Berman nos conduz nesse trecho da cidade mais
visitado e citado pelos turistas. Trata-se de um território, ao mesmo tempo, de
brilho próprio, com as casas de espetáculos da Broadway e os painéis luminosos
que nos fazem sentir como mariposas, e um local de passagem. Descemos na Times
Square para de lá seguir a pé até o hotel.
“Espaços como Times Square”, comenta Marshal Berman, “grandes
espetáculos que são espetáculos individualistas, onde banhos de luz e ‘prazer
febril’, são também modos do Iluminismo, onde orgias de vitalidade nos levam a
‘perguntas irresistíveis’, onde simultaneamente podemos nos divertir muito,
aprender quem somos e explorar o que podemos ser.”
Na apresentação, Berman nos diz: “Escrevi este livro para
mostrar o que a vida citadina pode ser, por que precisamos dessa vida para ser
plenamente vivos e como podemos obtê-la se - e é um grande “se” - aprendermos
a reunir os aspectos contraditórios de nosso ser.”
A citação de Berman é emblemática porque me ajuda a
clarear meu próprio caminho nesta jornada. Escrevo para mostrar o que a cidade
e a literatura podem ser na vida de um sujeito, como ambas nos ajudam a
construir uma subjetividade (complexa e contraditória como toda subjetividade o
é). Vou além na paráfrase: escrevo sobre esta viagem a Nova York porque, modo
geral, a literatura e a cidade trabalham na plenitude da minha existência.
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