O peruano prêmio Nobel de Literatura de 2010 Mario Vargas
Llosa dispensa apresentações. É um dos escritores latinos mais lidos no mundo. O
que pouca gente sabe é que ele já lançou dois livros para o público infanto-juvenil. O
segundo saiu no Brasil no ano passado pela Alfaguara, O barco das crianças (tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman,
ilustrações de Zuzanna Celej, 105 páginas).
Publicado originalmente em 2014, O barco das crianças é inspirador
porque sai do clichê segundo o qual livro de criança deve falar de aventuras
leves, sem abordar temas tabus como a morte. No centro de sua trama está o
problema da existência e da passagem do tempo.
Flertando com um questionamento filosófico sobre as
irrevogáveis e irretornáveis etapas seguintes da vida, depois da infância, indo
do amadurecimento à velhice, e consequentemente à morte, o romance narra o
encontro de um menino, num parque a beira-mar da cidade peruana de Barranco,
com um velhinho sentado num banco observando o oceano.
O velho não se identifica, nem diz a idade, mas deve estar
na casa dos 90 anos (ou talvez multiplique isso por dez). Fonchito, o menino
protagonista, já é conhecido do público juvenil de Llosa do primeiro livro
infantil, Fonchito e a lua, e do
público adulto também. Essas histórias infantis são recuadas no tempo, afinal,
Fonchito é o filho crescido de Don Rigoberto, personagem do romance Os cadernos de don Rigoberto.
A trama começa quando Fonchito passa a observar aquele
velhinho naquele banco, toda manhã quando sai para a escola. Enquanto espera o
ônibus, o menino ouve curioso a história do ancião. Todas as manhãs.
“Venho ver se o barco das crianças aparece”, diz o velho.
Esse barco zarpou do Porto de Marselha, na França, com crianças de vários
países da Europa, imbuídas de um tremendo sentimento religioso, rumo a
Jerusalém. Viajaram dispostas a lutar nas cruzadas para expulsar os mouros (muçulmanos)
da Terra Santa, no século XII.
Mas o navio se desviou da rota original, por razões que o
leitor saberá, passou pelo Estreito de Gibraltar e ganhou as águas oceânicas.
Do século XII até agora (900 anos), a embarcação estaria navegando pelos sete
mares, sem que o tempo passasse para os meninos.
O barco das crianças é, portanto, uma aventura humana,
de imaginação alada, em que garotos singram os sete mares à procura de um norte
chamado Jerusalém. Mas é também uma metáfora sobre a infância, quando achamos
que o tempo demora a passar e encaramos a vida como se fosse eterna para nós.
Uma vez fora do barco, perde-se a propriedade lúdica da vida, e caminha-se rumo
ao fim.
Duas figuras emprestadas de outras literaturas aparecem nesta
obra de Llosa: a Terra do Nunca, de J. M. Barry, onde os garotos perdidos,
liderados por Peter Pan, jamais envelhecem; e o ambiente infantil da aventura medieval
de Marcel Schwob (1867-1905), no romance A
cruzada das crianças, que inclusive é citado pelo autor peruano na epígrafe.
O barco é uma espécie de Terra do Nunca, e os meninos
dentro dele são evocações do livro de Schwob.
A trama bem urdida é uma marca do domínio técnico e de linguagem do autor. O barco das crianças, portanto, é uma
grande lição para leitores de qualquer idade (repetindo aqui um velho clichê).
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário