quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Cool Heart – diário de viagem a Nova York (9)

                                                                                                                    Foto: Gilberto G. Pereira
Vista do calçadão da Coney Island, numa quinta-feira lúgubre de julho, à beira da praia do Atlântico Norte

Dia 9 (14 de julho de 2016)

“São os detalhes que me impressionam: os lixeiros usando luvas, o trânsito disciplinado, sem intervenção de guardas nos cruzamentos etc., ninguém nunca tem troco neste país e todo mundo parece sair de um filme seriado.”

Algumas coisas mudaram desde que Albert Camus visitou Nova York, em 1946, e presenciou a cena descrita acima por ele, publicada no livro Diário de viagem (Record, tradução de Valerie Rumjanek, 4. ed., 1997). Entre as coisas que mudaram, estão a imagem do trânsito disciplinado e a persistente falta de troco.

Houve uma inversão nestes dois casos. Ninguém cruza uma rua movimentada em Downtown, Manhattan, sem competir com um carro querendo atravessar a faixa com sinal fechado para ele. Mas o contrário também é verdadeiro. Nenhum pedestre espera seu sinal abrir para travessar a rua. E troco é coisa que nunca falta nos bares, restaurantes e lojas de Nova York, em todos os lugares por onde passamos.

E olha que passeamos por lugares diferentes, incluindo os quatro cantos de Manhattan (embora não abarcando a ilha toda, muito menos frequentando a alta roda do Upper East Side), três points importantes do Brooklyn e um do Bronx. O Queens não rolou por falta de tempo.

Mas há uma coisa que permanece em Nova York, que Camus em sua época estendeu aos americanos de modo geral: o lado bom da sociedade americana, aquela parte que não é racista, pelo contrário, é gentil e receptiva. “Generosidade americana. Sua hospitalidade, sua cordialidade são da mesma natureza, imediata e simples. O que há de melhor neles”, disse Camus em seu diário. Senti isso nas ruas, uma espécie de civilidade. Vez ou outra presenciava uma hostilidade ou um certo sarcasmo, mas isso não era a tônica habitual.

Não estou falando dos cidadãos do mundo que vão para Nova York fazer a América. Estou falando dos americanos simples quase camuflados em meio a tantos estrangeiros. Eles estão ali, trabalhando como vendedores de lojas, atendentes de livrarias, atendentes de museus, ou mesmo nas ruas quando nos dão uma informação ou outra. Nasceram por ali no Brooklyn, no Queens, no Bronx, na vizinha Nova Jersey ou vieram de alguma parte longínqua do país.

Passeio
Na manhã de 14 de julho, pegamos o metrô e fomos apreciar duas coisas específicas no Brooklyn Sul, mais precisamente em Coney Island: o Aquário de Nova  York e a bela, mas um tanto melancólica, paisagem da praia do Atlântico Norte e suas geladas águas.

Foi uma experiência maravilhosa, principalmente para a Penélope, que tomou banho de mar no verão nova-iorquino. Primeiro fomos ao Aquário. Vimos vários tipos de peixes. As espécies do Nemo e da Dory, do filme Procurando Nemo, dividiam o mesmo espaço.

Havia inclusive peixes de origem brasileira, como pacus e piaus, numa aquário que representava as imensas floretas submersas da Amazônia, em que os peixes comem frutas e ajudam a espalhar sementes pela vasta galeria submersa.

Vimos tubarões, arraias, peixinhos coloridos, peixões sisudos, lontras e um show de focas amestradas, evento que se repetiria, com orquestração melhor, no zoológico do Central Park, posteriormente.

Do Aquário, fomos para a praia, onde passamos por vários restaurantes ao longo da orla, como o Nathan’s, que se gaba de ter 100 anos com o convencido slogan “The flavor of New York since 1916” (“o sabor de Nova York desde 1916”, em tradução livre), e o Ruby’s (desde 1934). Mas acabamos almoçando no Tom’s Coney Island, que não tem placa de fundação, mas o atendimento era ótimo e conseguimos uma mesa mais ao fundo, onde havia sombra.

A Coney Island, como atração, existe mesmo há muito tempo. Foi criada como lugar de recreação dos nova-iorquinos que moravam basicamente em Manhattan. Segundo Rem Koolhaas, enquanto Manhattan estava sendo preparada para se tornar o que é hoje, Coney Island era seu laboratório.

Um dos estabelecimentos de diversão mais antigos é o Luna Park, que mantém uma série de brinquedos, como uma roda gigante, uma montanha russa razoavelmente assustadora de tão calculadamente contorcida que é, uma espécie de iô-iô gigante, e várias outras atrações à beira-mar, cujo calçadão é coberto por um piso de taco, enquanto a areia mais embaixo é limpa e branca, e a água se mantém fria pelas correntes geladas do Atlântico Norte.

Compramos um maiô para a Penélope. Fomos atendidos por um rapaz simpático, de cabelo moicano tingido de laranja nas pontas. Havia pouco sol, um vento fresco soprava o tempo todo, e a água, segundo depoimento da dona do maiô, estava uma delícia. A criança estava feliz ali, e o pai, fotografando e filmando, enquanto a mãe supervisionava a banhista.

Havia pouca gente na água, algumas outras crianças, mas a recomendação era que ficassem sempre na beirada. Ir para o fundo era um risco de se afundar nos sulcos marítimos logo adiante. Recomendação aceita, banho tomado, felicidade de turista garantida.


Ilha dos coelhos
Cortada da ilha maior - Long Island - por duas baías, Cravesand Bay, a oeste, e Sheepshead Bay, a leste, Coney Island se tornou a menina dos olhos dos nova-iorquinos a partir de 1823, quando foi artificialmente emendada à Long Island. Com isso, ela se transformou numa figura chamada maliciosamente por Koolhaas de “apêndice clitoriano na boca do porto natural de Nova York.”

Os holandeses a chamavam de Konijnen (coelhos, em holandês), daí os americanos rebatizá-la de Coney Island. Coney, diz Koolhaas, era “a opção lógica como local de lazer para Manhattan: a zona mais próxima com uma natureza virgem capaz de contrabalançar os estímulos enervantes da civilização urbana.” Não mais.

Hoje, já não conta mais com o glamour excitante do período em que foi o resort festivo dos ricos. Seus arredores se tornaram locais residenciais, e seu âmago de imenso paraíso artificial sossegou o facho.

Apesar de os velhos tempos terem ficado para trás, quando se vai ao Museu do Brooklyn, a memória do old point está preservada numa galeria inteira do grafiteiro provocador e artista plástico Stephen Powers.

Na abertura de uma instalação coletiva, a curadora Sharon Matt Atkins escreve um texto intitulado Coney Island is still dreamland (to a seagull) [Coney Island ainda é a terra dos sonhos (para uma gaivota), em tradução livre], em que narra a experiência de Powers em seu trabalho ICY Signs, sobre o lugar. O artista imprime o que chama de “o eterno agora de Nova York”. É mais ou menos o que será a experiência deste  diário (de impressões) para mim.


Wasteland
Em outros tempos, Coney Island funcionava 24 horas por dia. Lá tomou-se o banho elétrico, viveu-se a experiência dos tonéis do amor. Lá, o cachorro-quente foi inventado, em 1871, segundo informação de Rem Koolhaas (Nova York delirante), e também a montanha-russa (Roller-Coastering), em 1883, ainda chamada de Loop-the-Loop, “trilho que faz uma volta vertical completa sobre si mesmo”, patenteada no ano seguinte, já com os trilhos imitando “as curvas, os vales e as montanhas de um percurso ferroviário normal.”

Lá, foram criados três grandes parques com uma infinidade de atrações que realizavam sonhos e desejos de marmanjos (e suas crianças) endinheirados. “Coney é a opção lógica como local de lazer para Manhattan: a zona mais próxima com uma natureza virgem capaz de contrabalançar os estímulos enervantes da civilização urbana”, diz Koolhaas.

Primeiro foi erguida, em 1893, a Steeplechase (Corrida de obstáculos), “pista de corrida automática cuja força-motriz é a gravidade”, que funcionava 24 horas por dia, com uma série de obstáculos artificiais na paisagem natural do lugar. “Ao longo da pista, move-se uma tropa de cavalos mecânicos que podem ser montados por qualquer pessoa com total segurança”, argumentavam os idealizadores.

Em 1900, surge o parque Dreamland, o mais delirante de todos, com um cardápio de ambientes de fazer contorcer os lábios de qualquer hedonista: um salão de baile; a Lilliputia (ou Cidade dos Anões - onde cerca de 300 anões viviam numa “comunidade experimental permanente” e numa liberdade bizarra, em que “promiscuidade, homossexualidade, ninfomania, eram encorajadas e exibidas ostensivamente”).

Na Dreamland, havia também a Casa de Chá Japonesa (em que uma das atrações era o dirigível construído por Santos Dumont, número 9, “um balão em formato de charuto”), o passeio em um submarino (cujos destroços continuam submersos até hoje no local), um circo, um serviço de voo sobre Manhattan, os canais de Veneza, e muito mais.

Em 1911, um curto circuito na fiação elétrica alastrou um fogo incontrolável na Dreamland, com um massacre de animais: “elefantes, hipopótamos, cavalos, gorilas correm enlouquecidos, envoltos em chamas. Leões vagam pelas ruas num pânico assassino.”

Em três horas de fogo, a Dreamland é devastada para sempre. Só o Aquário de Nova York, construído posteriormente na área da catástrofe, pode ser tido como uma espécie de herança e memória dos velhos tempos da Terra dos Sonhos.

Mas antes do fim, os dois parques conviveram com um terceiro, erguido em 1903, o Luna Park (quando a Times Square sequer existia, pois foi batizada com este nome no final de 1904, com a inauguração do Prédio do jornal The New York Times, chamado Times Tower), citado anteriormente, bem menos glamouroso hoje em dia.

Apesar de tudo, olhando a imensidão do mar de Nova York – essa cidade engolidora de sonhos, detonadora de desejos, essa exuberante selva de pedra –, vendo seu mar, suas águas, em contraste com a imensa faixa de areia branca, solitária, sob um vento triste, senti também uma pontinha de dor de alguma coisa que não soube identificar o que era.

Aquilo não era mais Nova York. Coney Island parece ter voltado a ser uma ilha de verdade novamente, pelo menos de sentimentos, uma distanciada sensação de passado irrevogável. É como se alguma voz silente e reprimida dissesse a seus visitantes “o sonho acabou por aqui”.


Bruma cinzenta
Quando estávamos voltando, choveu. Foi a primeira grande chuva que pegamos desde que chegáramos a Nova York. No primeiro dia, tomamos uma leve borrifada na Times Square. Agora era pra valer. Estávamos longe de Manhattan, mas da West Eight Street Station deu ainda para observar o cinzento a que se referia um de meus escritores favoritos. Eu olhava na direção do mar. Não vi os prédios que se escondiam do outro lado, mas vi a mesma solidão.

“Chuvas de Nova York. Incessantes, varrendo tudo. E na bruma cinzenta erguem-se os arranha-céus esbranquiçados, como imensos sepulcros dessa cidade habitada pelos mortos. Através da chuva, veem-se os sepulcros, que vacilam sobre sua base”, disse um Camus já aborrecido com a cidade que lhe encantara no começo.

A visão de Camus é trágica. Talvez por isso, ele não tenha se segurado e escrevera: “Há um trágico americano. É o que me oprime desde que estou aqui, mas não sei ainda de que é feito.” Depois da queda das Torres Gêmeas, esse trágico se infiltrou no tecido diáfano da paisagem nova-iorquina, mas aí Camus já estava morto havia muito mais tempo.

Antes, no entanto, já houvera vários outros incidentes de natureza trágica na cidade. Ela recebeu o epíteto de “acúmulo de possíveis desastres que nunca acontecem”, mas que de fato aconteciam, como o vapor que pegou fogo e matou mais de mil pessoas, entre as quais, centenas de crianças, no East River. Uma visita a lugares dolorosos, seria minha jornada em Manhattan dentro em breve.


...

sábado, 26 de novembro de 2016

Todas as cidades, a cidade faz uma leitura semiótica da paisagem urbana

                                                                                                                                                                   Foto: Agência Brasil
Vista do calçadão do bairro de Ipanema, paisagem icônica do Rio de Janeiro

Quando se chega a uma cidade desconhecida, uma possibilidade é que o recém-chegado deseje dominar os caminhos dela, captando as imagens mais relevantes que podem servir como referenciais. Se essas imagens, ou imagens análogas, já estão no imaginário do visitante, pode-se traçar um paralelo entre a cidade imaginada e a paisagem urbana real.

Outra possibilidade é que o espaço urbano que se percorre seja o berço do observador; então, procura-se identificar os caminhos e aperfeiçoar o reconhecimento deles, recriando-os de diversos ângulos.

A isso, se pode dar o nome de leitura, e essa leitura, dependendo do tamanho da cidade, pode durar a vida toda. Cada esquina dobrada pode ser interpretada como uma página que se vira. Um exemplo de pesquisa acerca de como o ambiente urbano foi e deve ser lido é o livro Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana, de Renato Cordeiro Gomes.

Publicado originalmente em 1994, o livro foi relançado em 2008, em edição ampliada (Editora Rocco, 208 páginas). Trata-se de uma crítica literária que se propõe a ler a cidade como livro de registro, cujo discurso tem “fios secretos e descontínuos”. Essa crítica traz uma junção de rigor analítico e amor ao objeto analisado.

Na primeira parte, o autor explora os códigos da cidade por meio de conceitos criados a partir de Paul Klee, Giulio Carlo Argan, Carlos Drummond de Andrade e Italo Calvino. No segundo ensaio, Gomes recorre aos olhares de grandes cronistas do Rio de Janeiro para ler a Cidade Maravilhosa. Mas é mesmo no primeiro ensaio que se encontra o cerne da leitura semiótica do autor, porque é mais universal. Os recortes indicados como essenciais na análise podem ser aplicados a qualquer cidade.

A grande aventura dessa busca pelos signos da cidade é a tentativa de encontrar nela os vestígios do efêmero, impresso pela modernidade, em meio à aparente fixação das coisas. Nos grandes centros urbanos, tudo muda vertiginosamente. O espaço não é o mesmo de um dia para o outro, a paisagem se retoca a cada instante.

Para ilustrar sua leitura, Gomes utiliza um conceito de Paul Klee (1879-1940), no quadro Uma folha do livro de registro das cidades, de 1928. Nesse quadro, o pintor alemão retrata a cidade como um livro aberto, fugindo da tradição arquitetônica de representação: “Uma folha do livro de registro das cidades serve de metáfora operatória e teórica para a leitura da cidade cifrada, da ‘cidade código’ (para repetir a imagem de Drummond), de múltiplas e complexas inscrições”, diz Gomes.

A complexidade dessas inscrições pode ser captada por meio de uma série de metáforas. Uma delas é crucial: o eco. Em um grande centro urbano, tudo vira eco, como se as configurações do espaço não dessem tempo de se acentuar, partindo imediatamente após o grito de sua chegada. Mas há também o eco das experiências distantes no tempo.

A malha semiótica

Para ler a cidade é preciso, portanto, contar com a imaginação e a memória: aqui ficava uma livraria, alguém pode dizer, e agora o que há é uma lojinha de R$ 1,99, ou uma floricultura, que nada impede de, ao passar amanhã, poder-se ver um grupo de pedreiros enfurecidamente colidindo o pequeno prédio para construir um edifício moderno e liso, sem os adornos de outrora.

A cidade é isso, segundo Gomes. É um conjunto de signos que podem ser levados a qualquer momento pelo tempo implacável. E o que permanece está apenas em seu livro de registro, na história da arte, na literatura, no olhar de cada um, mas nunca em forma geométrica certinha.

Neste sentido poético e fugidio, nessa mistura de visão crítica e protesto sutil contra o efêmero, o discurso da cidade é um labirinto. “A memória condiciona a leitura da cidade, uma busca de sentido explícito e reconhecível, que a sociedade moderna já não permite.”

As metáforas que podem ser ordenadas nesse livro de registro seguem linhas diversas e, todas elas, são importantes para a leitura. Podem ser metáforas visuais, determinadas pelos espaços. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem o Pão de Açúcar, o Maracanã, as praias, o mar, baías e pontes, que são a cara da capital fluminense, e que, na produção do discurso, servem como imagens recuperadoras de uma cidade que se refaz diariamente.

Já São Paulo tem a Avenida Paulista, a Praça da Sé, o Parque Ibirapuera, o MASP, o Morumbi, o Pacaembu, o Teatro Municipal, o Vale do Anhangabaú, o Mercado Municipal, a 25 de Março, a Estação da Luz, os Jardins, o Rio Pinheiros, o Tietê.

As metáforas também podem ser orgânicas: “(o corpo ou o vegetal) expressam uma concepção da cidade.” Nesse sentido, há rios e esgotos (nas metrópoles, isso, às vezes, é sinônimo) que cortam o perímetro urbano e que são as veias. Mas há também outras artérias, o sangue, o coração da cidade, e assim por diante.

Há metáforas diagramáticas, bem representadas pela imagem dos átomos, os aglomerados que se unem e que se tornam indivisíveis, como bairro e morro, como centro e bairro. As metáforas arqueológicas são outro grupo de imagens que ajuda o leitor a se encontrar no registro histórico do espaço urbano, sugerindo, na interpretação de Gomes, “a escavação dos significados, para recuperar as ruínas da memória.”

A cidade é uma malha semiótica. Gomes salienta que quem a lê também a escreve ao mesmo tempo: “Ler/escrever a cidade é tentar captá-la nessas dobras; é inventar a metáfora que a inscreve, é construir a sua possível leitura. Cidade: linguagem dobrada, em busca de ordenação”, diz o autor.

Em Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana, oferece-se um instrumento crítico útil para a construção do texto das cidades: “Ler a cidade é escrevê-la, não reproduzi-la, mas construí-la, fazendo circular o jogo das significações. Assim, uma outra cidade pode ser inscrita na margem do livro de registro da cidade.”

Essa perspectiva tem guiado o labor dos cronistas, mas também dos romancistas e dos poetas que assumiram o espaço urbano como um elemento repertorial da sua produção. Inclusive, aqueles que pressupõem retratar a cidade como ela é, os jornalistas, também reescrevem a cidade, relendo-a e oferecendo ao leitor mais um livro sobre a cidade-alvo, uma chave de leitura a mais, muitas vezes menos poética, dura demais, como se fosse a face definitiva do urbano.

Rio de Janeiro et alii

O Rio de Janeiro tem sido objeto de abundantes e múltiplos tratamentos nos três gêneros da escrita literária. Bastaria citar, como exemplo simbólico, Machado de Assis. Outros escritores que têm focado o Rio de Janeiro na sua produção são Lima Barreto, Antônio Cícero (em A cidade e os livros), Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rodrigo Lacerda (com Vista do Rio).

Em se tratando de crônicas, então, há simplesmente o panteão: Marques Rebelo, Rubem Braga, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Paulo Mendes Campos, João do Rio, Ruy Castro etc. Em relação a outros espaços urbanos brasileiros houve também seus respectivos construtores de cidades imaginadas e imaginárias. Drummond cantou Itabira e Rio. Ferreira Gullar fez louvores a São Luís do Maranhão e Rio.

Seria uma lista interminável, incluindo Mário de Andrade para São Paulo, junto com Menotti del Picchia. O mineiro Luiz Ruffato escreveu Eles eram muitos cavalos, que também se insere nesta leitura paulistana, além da pentalogia Inferno Provisório, em que aponta uma ligação entre o interior do país e a malha semiótica da cidade. José Castello (em O fantasma), Dalton Trevisan, Jamil Snege, Miguel Sanches Neto, Fábio Campana, escreveram Curitiba.

Mapa metafórico

Nesse marco de projetos literários de apropriação e reconstrução de cidades, insere-se a trilogia do baiano Antônio Torres, Essa terra, O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha, três romances que abordam a relação imaginária, sonhadora e desejosa entre os moradores de uma cidadezinha do sertão da Bahia e a grande São Paulo da década de 1970 aos anos 2000.

Na trilogia de Antônio Torres, uma das pontes dessa relação é o narrador, Totonhim, que viaja para São Paulo e se estabelece lá, tornando-se um deslocado, sem se adaptar completamente, sem se esquecer de todo da sua terra, e quando volta lá, também não a reconhece como o lugar onde nascera e vivera a infância.

Gomes nos oferece elementos semióticos para mostrar como foi feita a leitura da cidade na obra de Torres. Numa das passagens do segundo volume, O cachorro e o lobo, Totonhim se lembra de quando era menino e um caixeiro viajante passou por Junco, sua terra natal, e causou um alvoroço ao mostrar fotografias do Rio de Janeiro e de São Paulo à população:

O homem viajado e portador do objeto mágico, cuspidor de palavras persuasivas como um exímio propagandista de remédio para unha encravada e dor de dente, ajeitava os visores da sua engenhoca fantástica aos olhos dos espectadores e passava a mover uma minúscula manivela, para mudar as imagens, que por sua vez se resumiam a uns já surrados slides de São Paulo – o Viaduto do Chá, o edifício do Banco do Estado, a Praça dos Correios, o monumento do Ipiranga, ruas e avenidas espetaculares. E do Rio de Janeiro: o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, Copacabana, o mar, o mar – eta marzão pai-d`égua – e mulheres lindas, estonteantes, maravilhosas... de maiô! E essas eram mesmo de desmaiar. Com que então existia um mundo assim, lá longe, como esse deslumbrante Brasil de cinema? Isso era demais para os olhos de quem nunca havia mirado mais do que uns pés de grota.

Esta é a primeira leitura de Totonhim de cidades grandes, o livro número 1, a partir do qual ele escreverá/lerá a metrópole que escolheria para viver. Com o esquema semiótico de Gomes aplicado a essa malha literária de Torres, percebemos a diversidade de pontos que nascem da leitura da cidade.

Chave

Nesse sentido, Todas as cidades, a cidade é como uma chave que abre as possibilidades de leitura. Para a aventura do olhar, para a leitura de qualquer cidade dessas, o livro do professor Renato Cordeiro Gomes parece ser uma ferramenta realmente útil.

Segundo Gomes, o processo de metaforização são estratégias que buscam sustentar a leitura da cidade tal qual um texto cuja tessitura vai tornando-se cada vez mais volátil, rarefeita: o sentido da cidade como um lugar intimamente ligado aos obstáculos para dizer o que ela poderia significar.

Os “vestígios do efêmero” projetam a impressão de que a paisagem se retoca o tempo todo, gerando a visão de que tudo se move e de que o que fica é um vestígio do que já foi. O eco, como a “aparente fixação”, é a metáfora da recuperação do que passou e ficou como vestígio.

O Edifício Martinelli, por exemplo, encravado no centro histórico de São Paulo, traduz bem isso. É ao mesmo tempo um vestígio do que fora no passado, o prédio mais alto da capital paulista, símbolo de glamour e riqueza, e a fixação, o prédio está lá, ainda existe, mas já não é o que fora um dia. É um eco.


...

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O século das megacidades

                                                                                                                                            Foto: Wikipedia
Tóquio, capital japonesa, é a maior megacidade do mundo, com 35,7 milhões de pessoas    

Estamos caminhando para o consumo total de duas décadas do século XXI. E o que foi vivido nesse período já é amostra suficiente das tendências globais. Todas elas tangenciam de alguma forma a vida nas grandes cidades. A era do campo, pelo menos como hegemonia populacional, chegou ao fim. E não se trata de boa notícia, afinal, quem vai produzir alimentos?

Em termos proporcionais, desde 2008, a população urbana do mundo é maior do que a rural. Dois continentes gigantes ainda são essencialmente rurais, a África e a Ásia, mas já estão se despertando para a vida na cidade. Ano após ano, sua população migra vertiginosamente para morar em ambientes insalubres e dormir em quartos apertados em metrópoles como Xangai, na China, que atualmente conta com 23 milhões de habitantes.

Para se ter uma ideia, daqui a dez anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) prevê a entrada de mais nove megacidades no hall das que possuem mais de dez milhões de habitantes. Das novatas, duas virão da África e seis da Ásia (quase todas da China).

Segundo a ONU, em 2025, a cidade de Lagos, na Nigéria, terá 15,8 milhões de habitantes, e ela nem figura entre as megalópoles de hoje. Na África, até agora, só Cairo, no Egito, faz parte do hall das megacidades (quase 12 milhões de pessoas). Embora os centros urbanos asiáticos tenham também bolsões de pobreza, nada se compara aos desafios que a africana Lagos terá de enfrentar para melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos.

No Brasil, apenas duas megalópoles se desenham no corpo daquelas que ultrapassaram a casa dos dez milhões de pessoas: São Paulo e Rio de Janeiro. A rigor, apenas a capital paulista tem em seu município um volume demográfico atingindo a primeira dezena de milhões. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2016, o município de São Paulo contava com 12 milhões de habitantes. Já o Rio de Janeiro aparece com 6,5 milhões.

Mas as duas metrópoles, que hoje já podem ser chamadas de megalópoles, são vistas pela emenda de uma cidade na outra, contando a partir da principal, colocando-as no salão dos maiores conglomerados do mundo.

Caminhos de leitura

Partindo desse ponto de vista, das 19 cidades com este perfil atualmente, Tóquio, a capital japonesa, é a maior delas, com 35,7 milhões de pessoas. Para apontar perspectivas e descobrir qual é o futuro dessas cidades, que, no fundo, significa indicar caminhos de leitura sobre a humanidade inteira, o geógrafo norte-americano Laurence C. Smith realizou uma série de estudos no hemisfério norte do planeta.

Ele perambulou por lugares inóspitos como o Alasca, sentindo o efeito das mudanças climáticas, e se jogou à multidão de consumidores em efervescências como Nova York. O resultado de sua pesquisa é o livro O mundo em 2050: como a demografia, a demanda de recursos naturais, a globalização, a mudança climática e a tecnologia moldarão o futuro (Campus, 2011, 276 páginas, tradução de Ana Beatriz Rodrigues).

O livro de Smith tem uma importância fundamental para os que procuram entender a dinâmica das cidades. No cerne do seu trabalho está a constatação da dupla face do capitalismo, o agente da ascensão da humanidade a uma vida de conforto, pelo menos boa parte dela.

E é aí que entra o lado negro do sistema. Se por um lado, o capitalismo joga luz e aquece a alma de quem consegue ficar a favor de seus ventos, por outro, ele e sua sociedade de consumo são agentes – e serão cada vez mais – da queda brutal dessa mesma espécie. Isso porque, o que se nota, segundo Smith, é uma crescente indução ao consumo, criando um estilo de vida insustentável.

Veremos a predação dos recursos minerais, a demanda sem fundo de alimentos e a sofisticação tecnológica que exige da natureza cada vez mais a extração de minérios como aço, ferro e prata. Além disso, o uso da água, o bem mais precioso do planeta, será crescentemente mais agressivo.

Forças globais

Para entender como as tendências apontam para um futuro próximo – não mais de quarenta anos – cheio de  desafios e necessidade de readaptações, Smith levou em conta quatro forças globais nesse processo de transformação, que inclusive já vêm indicadas no subtítulo de seu libro: a demografia, a crescente demanda sobre os recursos naturais, a globalização e a mudança climática.

Todas as forças convergem para a vida urbana, já que o mundo na terra acaba de deixar o campo um pouco mais solitário e devagar. Por isso mesmo, o crescimento das cidades – e o que fazer para a vida se manter num quadro aceitável – é a discussão mais interessante do livro de Smith.

Ao longo da publicação, o autor enumera uma série de razões para nos preocuparmos com o futuro do planeta. Mas sempre encontra um meio de mostrar que ainda há um norte. Segundo Smith, o grande mal hoje em dia é o estilo de vida adquirido pelas sociedades de consumo.

As cidades crescem em função de pessoas que migram do campo em busca de empregos. Mas não é só isso. A dinâmica demográfica demonstra realmente que “a motivação da migração da população rural para as cidades é a possibilidade de ganhar melhor”. No entanto, indica também que as cidades já estão inchadas o bastante para fazerem seus bebês urbanos virem em maior número do que os bebês rurais.

Ou seja, as cidades se duplicam agora sem precisar do empurrão do êxodo rural. Tanto é assim que a ONU tem uma previsão de estabilidade da população do campo. Até 2018, esse número chegaria ao ápice de 3,5 bilhões, para em seguida declinar e se estabilizar em 2,8 bilhões, em 2050, dos 9,2 bilhões da população mundial nessa data.


O envelhecimento do mundo é a consequência


                                                        Foto: Viva-mundo.com

Cingapura: renda per capita é de US$ 50 mil, maior do que a dos EUA    


Segundo Laurence C. Smith, o capitalismo e suas revoluções produziram benefícios à humanidade, mas a um custo alto demais, cujo preço começamos a pagar. Num parágrafo ele introduz o leitor ao drama vindouro:

A Era Industrial trouxe consigo não apenas máquinas e medicamentos, mas também estímulos à migração do campo para a cidade. As pessoas passaram a comprar cada vez mais o que precisavam, em vez de produzir e fabricar. O custo da moradia aumentou; a economia cresceu. Um número maior de mulheres ingressou no mercado de trabalho, reduzindo o número de filhos que as famílias queriam ou podiam dar-se ao luxo de ter. As taxas de fertilidade começaram a cair, e o tamanho das famílias diminuiu. Quando as taxas de fertilidade finalmente caíram, igualando-se às taxas de mortalidade, o crescimento populacional cessou e as sociedades que haviam participado de tudo isso sofreram grandes transformações. Em lugar de populações pobres, pequenas, prolíficas e propensas à morte, surgiram populações numerosas, ricas e longevas, com poucos filhos.

O preço é justamente o envelhecimento do mundo. Neste caso, as nações precisarão investir mais em previdência e assistência médica. “Essas megatendências têm consequências pessoais. Eu, pessoalmente, aconselho a quem quiser investir no mercados financeiro a adquirir ações de indústrias farmacêuticas. Pois, a partir de agora, começarão a vir idosos por toda parte”, diz o geógrafo.

Megaexemplo

Se o crescimento populacional é inevitável, fazendo das grandes cidades mega-ambientes de convivência e conflito, resta trabalhar para descobrir os melhores meios de uma jornada interminável. Na amostra das tendências, há exemplos negativos como Lagos, na Nigéria, mas há também os modelos ultrapositivos, como é o caso da cidade-Estado Cingapura.

“Cidade portuária situada numa grande ilha no extremo sul da Península da Malásia, Cingapura começou como uma colônia britânica em 1819 e permaneceu sob domínio colonial durante 141 anos, até conquistar a independência, em 1960. Desde então, apesar de seu pequeno tamanho (menos de 700 quilômetros quadrados), escassos recursos naturais e nenhuma fonte nacional de combustíveis fósseis, seu crescimento e sucesso econômico têm sido fenomenais”, diz Smith neste texto veloz e bem informativo.

Cingapura não tem dez milhões de habitantes, mas é um lugar minúsculo para o gigantesco progresso que teve. Hoje é “um próspero centro tecnológico, financeiro e de serviços”, com uma população de cinco milhões de habitantes. É um “fornecedor global de componentes eletrônicos”, além de estar atraindo investimentos nas áreas de farmácia, medicina e biotecnologia.

A renda per capita dos cingapurenses é de US$ 50 mil, maior do que a dos americanos. A boa administração e o investimento maciço em educação e cultura dão a tônica da riqueza e da estabilidade da nação. Todas as variáveis em conjunto são o diferencial do livro de Smith, que é uma instigante provocação a quem se preocupa com o futuro da humanidade. Mas a análise demográfica é uma lição à parte.


A marcha da multidão

Em 1950, apenas duas cidades tinham mais de dez milhões de habitantes, Nova York e Tóquio. Vinte e cinco anos mais tarde, em 1975, Cidade do México entrou para o seleto grupo, do qual nem São Paulo fazia parte. Só entraria na década de 80.

Pouco mais de meio século depois, em 2007, 19 megacidades a desfilar sua densidade demográfica. Veja os três quadros que compõem o cenário das megacidades (contando a população de toda a região metropolitana).

1950
Nova York, EUA (12,3 milhões)
Tóquio, Japão (11,3)

1975
Tóquio, Japão (26,6)
Nova York, EUA (15,9)
Cidade do México, México (10,7)

2007
Tóquio, Japão (35,7)
Nova York, EUA (19)
Cidade do México, México (19)
Mumbai [Bombaim], Índia (19)
São Paulo, Brasil (18,8)
Nova Deli, Índia (15,9)
Xangai, China (15)
Calcutá, Índia (14,8)
Dhaka, Bangladesh (13,5)
Buenos Aires, Argentina (12,8)
Los Angeles, EUA (12,5)
Karachi, Paquistão (12,1)
Cairo, Egito (11,9)
Rio de Janeiro, Brasil (11,7)
Osaka-Kobe, Japão (11,3)
Beijing, China (11,1)
Manila, Filipinas (11,1)
Moscou, Rússia (10,5)
Istambul, Turquia (10,1)

...