quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Cool Heart – diário de viagem a Nova York (9)

                                                                                                                    Foto: Gilberto G. Pereira
Vista do calçadão da Coney Island, numa quinta-feira lúgubre de julho, à beira da praia do Atlântico Norte

Dia 9 (14 de julho de 2016)

“São os detalhes que me impressionam: os lixeiros usando luvas, o trânsito disciplinado, sem intervenção de guardas nos cruzamentos etc., ninguém nunca tem troco neste país e todo mundo parece sair de um filme seriado.”

Algumas coisas mudaram desde que Albert Camus visitou Nova York, em 1946, e presenciou a cena descrita acima por ele, publicada no livro Diário de viagem (Record, tradução de Valerie Rumjanek, 4. ed., 1997). Entre as coisas que mudaram, estão a imagem do trânsito disciplinado e a persistente falta de troco.

Houve uma inversão nestes dois casos. Ninguém cruza uma rua movimentada em Downtown, Manhattan, sem competir com um carro querendo atravessar a faixa com sinal fechado para ele. Mas o contrário também é verdadeiro. Nenhum pedestre espera seu sinal abrir para travessar a rua. E troco é coisa que nunca falta nos bares, restaurantes e lojas de Nova York, em todos os lugares por onde passamos.

E olha que passeamos por lugares diferentes, incluindo os quatro cantos de Manhattan (embora não abarcando a ilha toda, muito menos frequentando a alta roda do Upper East Side), três points importantes do Brooklyn e um do Bronx. O Queens não rolou por falta de tempo.

Mas há uma coisa que permanece em Nova York, que Camus em sua época estendeu aos americanos de modo geral: o lado bom da sociedade americana, aquela parte que não é racista, pelo contrário, é gentil e receptiva. “Generosidade americana. Sua hospitalidade, sua cordialidade são da mesma natureza, imediata e simples. O que há de melhor neles”, disse Camus em seu diário. Senti isso nas ruas, uma espécie de civilidade. Vez ou outra presenciava uma hostilidade ou um certo sarcasmo, mas isso não era a tônica habitual.

Não estou falando dos cidadãos do mundo que vão para Nova York fazer a América. Estou falando dos americanos simples quase camuflados em meio a tantos estrangeiros. Eles estão ali, trabalhando como vendedores de lojas, atendentes de livrarias, atendentes de museus, ou mesmo nas ruas quando nos dão uma informação ou outra. Nasceram por ali no Brooklyn, no Queens, no Bronx, na vizinha Nova Jersey ou vieram de alguma parte longínqua do país.

Passeio
Na manhã de 14 de julho, pegamos o metrô e fomos apreciar duas coisas específicas no Brooklyn Sul, mais precisamente em Coney Island: o Aquário de Nova  York e a bela, mas um tanto melancólica, paisagem da praia do Atlântico Norte e suas geladas águas.

Foi uma experiência maravilhosa, principalmente para a Penélope, que tomou banho de mar no verão nova-iorquino. Primeiro fomos ao Aquário. Vimos vários tipos de peixes. As espécies do Nemo e da Dory, do filme Procurando Nemo, dividiam o mesmo espaço.

Havia inclusive peixes de origem brasileira, como pacus e piaus, numa aquário que representava as imensas floretas submersas da Amazônia, em que os peixes comem frutas e ajudam a espalhar sementes pela vasta galeria submersa.

Vimos tubarões, arraias, peixinhos coloridos, peixões sisudos, lontras e um show de focas amestradas, evento que se repetiria, com orquestração melhor, no zoológico do Central Park, posteriormente.

Do Aquário, fomos para a praia, onde passamos por vários restaurantes ao longo da orla, como o Nathan’s, que se gaba de ter 100 anos com o convencido slogan “The flavor of New York since 1916” (“o sabor de Nova York desde 1916”, em tradução livre), e o Ruby’s (desde 1934). Mas acabamos almoçando no Tom’s Coney Island, que não tem placa de fundação, mas o atendimento era ótimo e conseguimos uma mesa mais ao fundo, onde havia sombra.

A Coney Island, como atração, existe mesmo há muito tempo. Foi criada como lugar de recreação dos nova-iorquinos que moravam basicamente em Manhattan. Segundo Rem Koolhaas, enquanto Manhattan estava sendo preparada para se tornar o que é hoje, Coney Island era seu laboratório.

Um dos estabelecimentos de diversão mais antigos é o Luna Park, que mantém uma série de brinquedos, como uma roda gigante, uma montanha russa razoavelmente assustadora de tão calculadamente contorcida que é, uma espécie de iô-iô gigante, e várias outras atrações à beira-mar, cujo calçadão é coberto por um piso de taco, enquanto a areia mais embaixo é limpa e branca, e a água se mantém fria pelas correntes geladas do Atlântico Norte.

Compramos um maiô para a Penélope. Fomos atendidos por um rapaz simpático, de cabelo moicano tingido de laranja nas pontas. Havia pouco sol, um vento fresco soprava o tempo todo, e a água, segundo depoimento da dona do maiô, estava uma delícia. A criança estava feliz ali, e o pai, fotografando e filmando, enquanto a mãe supervisionava a banhista.

Havia pouca gente na água, algumas outras crianças, mas a recomendação era que ficassem sempre na beirada. Ir para o fundo era um risco de se afundar nos sulcos marítimos logo adiante. Recomendação aceita, banho tomado, felicidade de turista garantida.


Ilha dos coelhos
Cortada da ilha maior - Long Island - por duas baías, Cravesand Bay, a oeste, e Sheepshead Bay, a leste, Coney Island se tornou a menina dos olhos dos nova-iorquinos a partir de 1823, quando foi artificialmente emendada à Long Island. Com isso, ela se transformou numa figura chamada maliciosamente por Koolhaas de “apêndice clitoriano na boca do porto natural de Nova York.”

Os holandeses a chamavam de Konijnen (coelhos, em holandês), daí os americanos rebatizá-la de Coney Island. Coney, diz Koolhaas, era “a opção lógica como local de lazer para Manhattan: a zona mais próxima com uma natureza virgem capaz de contrabalançar os estímulos enervantes da civilização urbana.” Não mais.

Hoje, já não conta mais com o glamour excitante do período em que foi o resort festivo dos ricos. Seus arredores se tornaram locais residenciais, e seu âmago de imenso paraíso artificial sossegou o facho.

Apesar de os velhos tempos terem ficado para trás, quando se vai ao Museu do Brooklyn, a memória do old point está preservada numa galeria inteira do grafiteiro provocador e artista plástico Stephen Powers.

Na abertura de uma instalação coletiva, a curadora Sharon Matt Atkins escreve um texto intitulado Coney Island is still dreamland (to a seagull) [Coney Island ainda é a terra dos sonhos (para uma gaivota), em tradução livre], em que narra a experiência de Powers em seu trabalho ICY Signs, sobre o lugar. O artista imprime o que chama de “o eterno agora de Nova York”. É mais ou menos o que será a experiência deste  diário (de impressões) para mim.


Wasteland
Em outros tempos, Coney Island funcionava 24 horas por dia. Lá tomou-se o banho elétrico, viveu-se a experiência dos tonéis do amor. Lá, o cachorro-quente foi inventado, em 1871, segundo informação de Rem Koolhaas (Nova York delirante), e também a montanha-russa (Roller-Coastering), em 1883, ainda chamada de Loop-the-Loop, “trilho que faz uma volta vertical completa sobre si mesmo”, patenteada no ano seguinte, já com os trilhos imitando “as curvas, os vales e as montanhas de um percurso ferroviário normal.”

Lá, foram criados três grandes parques com uma infinidade de atrações que realizavam sonhos e desejos de marmanjos (e suas crianças) endinheirados. “Coney é a opção lógica como local de lazer para Manhattan: a zona mais próxima com uma natureza virgem capaz de contrabalançar os estímulos enervantes da civilização urbana”, diz Koolhaas.

Primeiro foi erguida, em 1893, a Steeplechase (Corrida de obstáculos), “pista de corrida automática cuja força-motriz é a gravidade”, que funcionava 24 horas por dia, com uma série de obstáculos artificiais na paisagem natural do lugar. “Ao longo da pista, move-se uma tropa de cavalos mecânicos que podem ser montados por qualquer pessoa com total segurança”, argumentavam os idealizadores.

Em 1900, surge o parque Dreamland, o mais delirante de todos, com um cardápio de ambientes de fazer contorcer os lábios de qualquer hedonista: um salão de baile; a Lilliputia (ou Cidade dos Anões - onde cerca de 300 anões viviam numa “comunidade experimental permanente” e numa liberdade bizarra, em que “promiscuidade, homossexualidade, ninfomania, eram encorajadas e exibidas ostensivamente”).

Na Dreamland, havia também a Casa de Chá Japonesa (em que uma das atrações era o dirigível construído por Santos Dumont, número 9, “um balão em formato de charuto”), o passeio em um submarino (cujos destroços continuam submersos até hoje no local), um circo, um serviço de voo sobre Manhattan, os canais de Veneza, e muito mais.

Em 1911, um curto circuito na fiação elétrica alastrou um fogo incontrolável na Dreamland, com um massacre de animais: “elefantes, hipopótamos, cavalos, gorilas correm enlouquecidos, envoltos em chamas. Leões vagam pelas ruas num pânico assassino.”

Em três horas de fogo, a Dreamland é devastada para sempre. Só o Aquário de Nova York, construído posteriormente na área da catástrofe, pode ser tido como uma espécie de herança e memória dos velhos tempos da Terra dos Sonhos.

Mas antes do fim, os dois parques conviveram com um terceiro, erguido em 1903, o Luna Park (quando a Times Square sequer existia, pois foi batizada com este nome no final de 1904, com a inauguração do Prédio do jornal The New York Times, chamado Times Tower), citado anteriormente, bem menos glamouroso hoje em dia.

Apesar de tudo, olhando a imensidão do mar de Nova York – essa cidade engolidora de sonhos, detonadora de desejos, essa exuberante selva de pedra –, vendo seu mar, suas águas, em contraste com a imensa faixa de areia branca, solitária, sob um vento triste, senti também uma pontinha de dor de alguma coisa que não soube identificar o que era.

Aquilo não era mais Nova York. Coney Island parece ter voltado a ser uma ilha de verdade novamente, pelo menos de sentimentos, uma distanciada sensação de passado irrevogável. É como se alguma voz silente e reprimida dissesse a seus visitantes “o sonho acabou por aqui”.


Bruma cinzenta
Quando estávamos voltando, choveu. Foi a primeira grande chuva que pegamos desde que chegáramos a Nova York. No primeiro dia, tomamos uma leve borrifada na Times Square. Agora era pra valer. Estávamos longe de Manhattan, mas da West Eight Street Station deu ainda para observar o cinzento a que se referia um de meus escritores favoritos. Eu olhava na direção do mar. Não vi os prédios que se escondiam do outro lado, mas vi a mesma solidão.

“Chuvas de Nova York. Incessantes, varrendo tudo. E na bruma cinzenta erguem-se os arranha-céus esbranquiçados, como imensos sepulcros dessa cidade habitada pelos mortos. Através da chuva, veem-se os sepulcros, que vacilam sobre sua base”, disse um Camus já aborrecido com a cidade que lhe encantara no começo.

A visão de Camus é trágica. Talvez por isso, ele não tenha se segurado e escrevera: “Há um trágico americano. É o que me oprime desde que estou aqui, mas não sei ainda de que é feito.” Depois da queda das Torres Gêmeas, esse trágico se infiltrou no tecido diáfano da paisagem nova-iorquina, mas aí Camus já estava morto havia muito mais tempo.

Antes, no entanto, já houvera vários outros incidentes de natureza trágica na cidade. Ela recebeu o epíteto de “acúmulo de possíveis desastres que nunca acontecem”, mas que de fato aconteciam, como o vapor que pegou fogo e matou mais de mil pessoas, entre as quais, centenas de crianças, no East River. Uma visita a lugares dolorosos, seria minha jornada em Manhattan dentro em breve.


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