John Lithgow e Claire
Foy, como Churchill e Elizabeth II
A
realeza britânica sempre foi alvo do cinema. As histórias focadas em seus
dramas e alto teor de violência sempre foram muito rentáveis. Há diversos
películas sobre os reis, mas as rainhas também já mandaram ver, como a que
atualmente ocupa o trono há mais de 60 anos, Elizabeth II. E é justamente em
torno de seu período regencial que quase toda a série The Crown, lançada há alguns dias pela Netflix, vai girar o arco.
Criada
por Peter Morgan e dirigida pelo prestigiado cineasta Stephen Daldry, The crown não é a melhor série
produzida pela Netflix, nem figura entre as grandes séries de televisão, mas há
muitas qualidades a serem apreciadas nela. A trama retrata a vida da família
real inglesa da passagem do trono de Eduardo VIII, que abdicou em 1936, ao
irmão George VI e deste, que morreu em 1952, para sua filha Elizabeth II, até
os dias de hoje. A primeira temporada com 10 episódios cobre de 1936 até 1956.
A
série mostra as engrenagens do poder sendo movidas por dentro. Em outras épocas
da história secular dos reis e rainhas da Inglaterra, houve sangue escorrendo
sob os tapetes do Palácio de Buckingham. Marido matando esposa, irmão matando
irmão, ou tios. Mas não agora.
Realeza light
Ao
longo dos mil anos em que a coroa foi passando de cabeça a cabeça, conchavos
consanguíneos, conspirações e armadilhas corriam à solta, e cabeças rolavam por
qualquer vacilo. Historicamente, esta veia de violência e disputa foi a maior
tradição das casas reais inglesas. A civilidade entre os pares parece ser algo
recente na história da Inglaterra. Talvez os Windsor tenham algo a ver com
isso.
Em
vez do sangue, essa série mostra outros dramas correndo pelas veias reais, com
singelos sinais conspirativos, tipo barrar os arroubos da jovem rainha, depois
baixar o facho da princesa Margareth, irmã da rainha, manobras para se
resolverem as picuinhas do poder e da família real. Tudo isso dista das
escandalosas tramas de assassinatos dos séculos anteriores, perto das quais, a
acusação conspiratória de que Elizabeth II seria responsável pela morte da
princesa Diana é piaba de cacimba.
A
palavra assassino só entra na trama de The
crown quando Winston Churchill não gosta de seu retrato pintado pelo
modernista Graham Sutherland, mostrando-o velho e decadente como o era de fato.
Churchill chamou o pintor de assassino da imagem e mandou queimar o quadro.
Mesmo sendo o menos escandaloso dos séculos entre reis e
rainhas da Inglaterra, o século XX,
dominado pelos Windsor, rendeu filmes como A
rainha (2006, com roteiro de Peter Morgan), que levou Helen Mirren a ganhar
Oscar de melhor atriz, The Murder of
Princess Diana (2007, O assassinato da princesa Diana, em tradução livre), Diana, A jovem rainha Vitória, A
rainha virgem e Elizabeth, além
de séries como Elizabeth I: a rainha virgem
(2005), Os Tudors (2010, com
quatro temporadas) e agora The crown.
Há
uma infinidade de outros filmes e séries cobrindo toda a história desses mil
anos de realeza. O site da revista Rolling
Stones tem uma lista bacana sobre o assunto, A realeza britânica em dez filmes. Já o site Guia dos Curiosos traz 10 filmesque retratam rainhas da Inglaterra.
Ferida latente
O
grande valor da série The crown é o
fato de adentrarmos na intimidade (ainda que seja em parte imaginada apenas) dessa
realeza. Existe alguma coisa difícil de descrever, mas que dá vida à trama, que
o roteirista e o diretor conseguiram transpor para o ambiente da série.
Trata-se
de uma espécie de latejo real, algo como uma tremenda ferida latente que ameaça
romper em dor, ou uma diáfana luz de auto-condolência por serem soberanos. A
coroa é um fardo pesado, seria um dos lemas inefáveis desse drama.
O
antigo rei, Eduardo VIII, abdicou da coroa por amor. Viveu a partir daí no ostracismo
afetivo da família real, que o vê como covarde, pusilânime, e ele vê a família
do mesmo modo por odiá-lo. “A pusilanimidade e a vingança não têm limites
aqui”, diz ele, que passou a ser chamado de Duque de Windsor, sobre não
quererem que ele participe da coroação de Elizabeth II. “Como meus parentes são
vis, fúteis e mesquinhos, e que bando de hienas tristes e ressecadas a maioria
se tornou.”
A
série enfatiza os casos de amor dos membros das família real, algo adorado pela
imprensa sensacionalista inglesa, que enche a alma dos plebeus com conteúdo de
fofocas, algo muito em voga até hoje. No sexto episódio, por exemplo, a
imprensa entra em ação sobre o caso de amor entre o plebeu Peter Townsend,
membro da força aérea britânica e ex-cavaleiro do rei morto, e a princesa
Margareth. Contenda esta que segue no arco dramático até o fim da primeira
temporada, quando os dois apaixonados são vencidos pela decisão da coroa de não
permitir o casamento.
Jovem e ignorante
Os
microdramas reais seriam dramas comezinhos não fossem vividos no suntuoso mundo
da realeza. Em outras passagens, aparece a rainha querendo estudar humanidades,
filosofia, sociologia, buscando uma ilustração intelectual.
No
episódio intitulado Saber é poder, a rainha contrata um professor particular
secretamente para adquirir conhecimento e conseguir travar diálogos mais
interessantes com os espíritos mais sagazes que ela recebia no palácio.
O
tutor aparece e pergunta qual é a formação dela, que diploma ela tem, de modo a
demonstrar um nível a partir do qual ela seguiria com os estudos. A rainha fica
calada. Ensino médio?, ele pergunta. “Não”, diz ela. “Ensino primário?” “Não.”
Elizabeth
II era completamente ignorante quando foi coroada aos 26 anos. Suas únicas
instruções foram sobre a genealogia da família real e dos protocolos reais,
além de costura, tricô e aulas sobre a Constituição. “É muito mais do que sua
irmã recebeu”, diz a rainha mãe quando questionada pela filha. Mas Elizabeth II
não era burra, e tinha uma personalidade forte. Isso foi sua salvação.
Arquétipo sangrento
The crown é uma boa série, mas não oferece nada de
grandioso. Não fosse a tensão conseguida em dramas tão cotidianos pela competência
do roteiro e da direção, teria virado uma novela mexicana ou brasileira. Os
grandes acontecimentos na história da realeza britânica, e não foram poucos,
nem pouco dramáticos, traumáticos e violentos, não são desse período do século
XX e começo do XXI.
Além
disso, esses acontecimentos passados já estão sendo contados de modo fictício
na série Game of Thrones, baseada
nos romances do americano George R. R. Martin, que certamente usou os
arquétipos históricos da realeza britânica com uma boa pitada de Shakespeare e
um profundo conhecimento de governança medieval.
Esse
arquétipo é riquíssimo. Para ficar só na história das casas de Lancaster e de
York, protagonistas da Guerra das Rosas (1455 - 1485), os inúmeros assassinatos
entre as famílias eram frequentes. Acabada a guerra, muitas cabeças ainda
rolaram.
Henrique
VIII (1491 - 1547) mandou matar duas das seis mulheres que teve. Entre as
rainhas da Inglaterra, uma foi Maria I (1516 - 1558), também chamada de Mary, a
cruel, que morreu sem deixar herdeiros e então foi sucedida por outra mulher, Elisabeth
(1533 - 1603), outra filha de Henrique VIII, batizada no trono como Elisabeth
I, meia-irmã de Mary I. Elisabeth I era inimiga mortal de Mary Stuart, sua tia,
rainha da Escócia, bisneta de Henrique Tudor.
Mary
Stuart não era flor de se cheirar. Casou-se três vezes, uma delas com um primo,
chamado Henrique Stuart, que foi assassinado pelo homem que viria a ser o
terceiro marido dela, Jaime Hepburn (há controvérsias quanto sua autoria desse
assassinato).
Lá
pelas tantas, a rainha Elisabeth I, a protetora de Shakespeare, mecenas das
artes, culta e querida pelos súditos, manda executar Mary Stuart. Eis aqui uma
mínima parte da história da realeza britânica.
Uma boa série
The crown compensa essa falta de elementos
contundentes com um apurado senso de narrativa dramática. Cotidiano é amor
mesmo, disputa de interesses, conspirações e tentativas de um impor sobre o
outro sua vontade. Os confrontos entre realeza e governo também são mostradas
em várias ocasiões. Elizabeth II foi aprendendo aos poucos a usar os protocolos
e ser dura também.
Ao
longo desse período em que morre George VI e assume Elizabeth II, vemos um
Winston Churchill decadente, apelidado de bebê chorão, retratado de vez em
quando como um velho urubu tentando dar as últimas bicadas na carcaça do poder.
Era a segunda vez que ele assumia o cargo de primeiro-ministro, abdicando de
vez em 1955, aos 80 anos.
Em
muitas cenas aparecem cigarros fumegando o tempo todo entre os membros da
realeza, outra realidade temporal. A fotografia é belíssima, e a trilha sonora
é sóbria e competente. Os atores são ótimos, com destaque para Claire Foy, que
faz a rainha Elizabeth II, e John Lithgow como Winston Churchill.
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