Foto: Agência Brasil
Vista do calçadão do bairro de Ipanema, paisagem icônica do Rio de Janeiro
Quando
se chega a uma cidade desconhecida, uma possibilidade é que o recém-chegado
deseje dominar os caminhos dela, captando as imagens mais relevantes que podem
servir como referenciais. Se essas imagens, ou imagens análogas, já estão no
imaginário do visitante, pode-se traçar um paralelo entre a cidade imaginada e
a paisagem urbana real.
Outra
possibilidade é que o espaço urbano que se percorre seja o berço do observador;
então, procura-se identificar os caminhos e aperfeiçoar o reconhecimento deles,
recriando-os de diversos ângulos.
A
isso, se pode dar o nome de leitura, e essa leitura, dependendo do tamanho da
cidade, pode durar a vida toda. Cada esquina dobrada pode ser interpretada como
uma página que se vira. Um exemplo de pesquisa acerca de como o ambiente urbano
foi e deve ser lido é o livro Todas as
cidades, a cidade: literatura e experiência urbana, de Renato Cordeiro
Gomes.
Publicado
originalmente em 1994, o livro foi relançado em 2008, em edição ampliada (Editora Rocco, 208 páginas).
Trata-se de uma crítica literária que se propõe a ler a cidade como livro de
registro, cujo discurso tem “fios secretos e descontínuos”. Essa crítica traz
uma junção de rigor analítico e amor ao objeto analisado.
Na
primeira parte, o autor explora os códigos da cidade por meio de conceitos
criados a partir de Paul Klee, Giulio Carlo Argan, Carlos Drummond de Andrade e
Italo Calvino. No segundo ensaio, Gomes recorre aos olhares de grandes
cronistas do Rio de Janeiro para ler a Cidade Maravilhosa. Mas é mesmo no
primeiro ensaio que se encontra o cerne da leitura semiótica do autor, porque é
mais universal. Os recortes indicados como essenciais na análise podem ser
aplicados a qualquer cidade.
A
grande aventura dessa busca pelos signos da cidade é a tentativa de encontrar
nela os vestígios do efêmero, impresso pela modernidade, em meio à aparente
fixação das coisas. Nos grandes centros urbanos, tudo muda vertiginosamente. O
espaço não é o mesmo de um dia para o outro, a paisagem se retoca a cada
instante.
Para
ilustrar sua leitura, Gomes utiliza um conceito de Paul Klee (1879-1940), no
quadro Uma folha do livro de registro
das cidades, de 1928. Nesse quadro, o pintor alemão retrata a cidade como
um livro aberto, fugindo da tradição arquitetônica de representação: “Uma folha
do livro de registro das cidades serve de metáfora operatória e teórica para a
leitura da cidade cifrada, da ‘cidade código’ (para repetir a imagem de
Drummond), de múltiplas e complexas inscrições”, diz Gomes.
A
complexidade dessas inscrições pode ser captada por meio de uma série de
metáforas. Uma delas é crucial: o eco. Em um grande centro urbano, tudo vira
eco, como se as configurações do espaço não dessem tempo de se acentuar,
partindo imediatamente após o grito de sua chegada. Mas há também o eco das
experiências distantes no tempo.
A malha semiótica
Para
ler a cidade é preciso, portanto, contar com a imaginação e a memória: aqui
ficava uma livraria, alguém pode dizer, e agora o que há é uma lojinha de R$ 1,99,
ou uma floricultura, que nada impede de, ao passar amanhã, poder-se ver um
grupo de pedreiros enfurecidamente colidindo o pequeno prédio para construir um
edifício moderno e liso, sem os adornos de outrora.
A
cidade é isso, segundo Gomes. É um conjunto de signos que podem ser levados a
qualquer momento pelo tempo implacável. E o que permanece está apenas em seu
livro de registro, na história da arte, na literatura, no olhar de cada um, mas
nunca em forma geométrica certinha.
Neste
sentido poético e fugidio, nessa mistura de visão crítica e protesto sutil
contra o efêmero, o discurso da cidade é um labirinto. “A memória condiciona a
leitura da cidade, uma busca de sentido explícito e reconhecível, que a
sociedade moderna já não permite.”
As
metáforas que podem ser ordenadas nesse livro de registro seguem linhas
diversas e, todas elas, são importantes para a leitura. Podem ser metáforas
visuais, determinadas pelos espaços. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem o Pão
de Açúcar, o Maracanã, as praias, o mar, baías e pontes, que são a cara da
capital fluminense, e que, na produção do discurso, servem como imagens
recuperadoras de uma cidade que se refaz diariamente.
Já
São Paulo tem a Avenida Paulista, a Praça da Sé, o Parque Ibirapuera, o MASP, o
Morumbi, o Pacaembu, o Teatro Municipal, o Vale do Anhangabaú, o Mercado
Municipal, a 25 de Março, a Estação da Luz, os Jardins, o Rio Pinheiros, o
Tietê.
As
metáforas também podem ser orgânicas: “(o corpo ou o vegetal) expressam uma
concepção da cidade.” Nesse sentido, há rios e esgotos (nas metrópoles, isso,
às vezes, é sinônimo) que cortam o perímetro urbano e que são as veias. Mas há
também outras artérias, o sangue, o coração da cidade, e assim por diante.
Há
metáforas diagramáticas, bem representadas pela imagem dos átomos, os
aglomerados que se unem e que se tornam indivisíveis, como bairro e morro, como
centro e bairro. As metáforas arqueológicas são outro grupo de imagens que
ajuda o leitor a se encontrar no registro histórico do espaço urbano,
sugerindo, na interpretação de Gomes, “a escavação dos significados, para
recuperar as ruínas da memória.”
A
cidade é uma malha semiótica. Gomes salienta que quem a lê também a escreve ao
mesmo tempo: “Ler/escrever a cidade é tentar captá-la nessas dobras; é inventar
a metáfora que a inscreve, é construir a sua possível leitura. Cidade:
linguagem dobrada, em busca de ordenação”, diz o autor.
Em
Todas as cidades, a cidade: literatura e
experiência urbana, oferece-se um instrumento crítico útil para a
construção do texto das cidades: “Ler a cidade é escrevê-la, não reproduzi-la,
mas construí-la, fazendo circular o jogo das significações. Assim, uma outra
cidade pode ser inscrita na margem do livro de registro da cidade.”
Essa
perspectiva tem guiado o labor dos cronistas, mas também dos romancistas e dos
poetas que assumiram o espaço urbano como um elemento repertorial da sua
produção. Inclusive, aqueles que pressupõem retratar a cidade como ela é, os
jornalistas, também reescrevem a cidade, relendo-a e oferecendo ao leitor mais
um livro sobre a cidade-alvo, uma chave de leitura a mais, muitas vezes menos
poética, dura demais, como se fosse a face definitiva do urbano.
Rio de Janeiro et alii
O
Rio de Janeiro tem sido objeto de abundantes e múltiplos tratamentos nos três
gêneros da escrita literária. Bastaria citar, como exemplo simbólico, Machado
de Assis. Outros escritores que têm focado o Rio de Janeiro na sua produção são
Lima Barreto, Antônio Cícero (em A
cidade e os livros), Rubem Fonseca, Carlos Drummond de Andrade, Manuel
Bandeira, Rodrigo Lacerda (com Vista do
Rio).
Em
se tratando de crônicas, então, há simplesmente o panteão: Marques Rebelo,
Rubem Braga, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Paulo Mendes Campos, João do
Rio, Ruy Castro etc. Em relação a outros espaços urbanos brasileiros houve
também seus respectivos construtores de cidades imaginadas e imaginárias.
Drummond cantou Itabira e Rio. Ferreira Gullar fez louvores a São Luís do
Maranhão e Rio.
Seria
uma lista interminável, incluindo Mário de Andrade para São Paulo, junto com
Menotti del Picchia. O mineiro Luiz Ruffato escreveu Eles eram muitos cavalos, que também se insere nesta leitura
paulistana, além da pentalogia Inferno
Provisório, em que aponta uma ligação entre o interior do país e a malha
semiótica da cidade. José Castello (em O
fantasma), Dalton Trevisan, Jamil Snege, Miguel Sanches Neto, Fábio
Campana, escreveram Curitiba.
Mapa metafórico
Nesse
marco de projetos literários de apropriação e reconstrução de cidades,
insere-se a trilogia do baiano Antônio Torres, Essa terra, O cachorro e o
lobo e Pelo fundo da agulha,
três romances que abordam a relação imaginária, sonhadora e desejosa entre os
moradores de uma cidadezinha do sertão da Bahia e a grande São Paulo da década
de 1970 aos anos 2000.
Na
trilogia de Antônio Torres, uma das pontes dessa relação é o narrador,
Totonhim, que viaja para São Paulo e se estabelece lá, tornando-se um
deslocado, sem se adaptar completamente, sem se esquecer de todo da sua terra,
e quando volta lá, também não a reconhece como o lugar onde nascera e vivera a
infância.
Gomes
nos oferece elementos semióticos para mostrar como foi feita a leitura da
cidade na obra de Torres. Numa das passagens do segundo volume, O cachorro e o lobo, Totonhim se lembra
de quando era menino e um caixeiro viajante passou por Junco, sua terra natal,
e causou um alvoroço ao mostrar fotografias do Rio de Janeiro e de São Paulo à
população:
O homem viajado e portador do
objeto mágico, cuspidor de palavras persuasivas como um exímio propagandista de
remédio para unha encravada e dor de dente, ajeitava os visores da sua
engenhoca fantástica aos olhos dos espectadores e passava a mover uma minúscula
manivela, para mudar as imagens, que por sua vez se resumiam a uns já surrados
slides de São Paulo – o Viaduto do Chá, o edifício do Banco do Estado, a Praça dos
Correios, o monumento do Ipiranga, ruas e avenidas espetaculares. E do Rio de
Janeiro: o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, Copacabana, o mar, o mar – eta
marzão pai-d`égua – e mulheres lindas, estonteantes, maravilhosas... de maiô! E
essas eram mesmo de desmaiar. Com que então existia um mundo assim, lá longe,
como esse deslumbrante Brasil de cinema? Isso era demais para os olhos de quem
nunca havia mirado mais do que uns pés de grota.
Esta
é a primeira leitura de Totonhim de cidades grandes, o livro número 1, a partir
do qual ele escreverá/lerá a metrópole que escolheria para viver. Com o esquema
semiótico de Gomes aplicado a essa malha literária de Torres, percebemos a
diversidade de pontos que nascem da leitura da cidade.
Chave
Nesse
sentido, Todas as cidades, a cidade
é como uma chave que abre as possibilidades de leitura. Para a aventura do
olhar, para a leitura de qualquer cidade dessas, o livro do professor Renato
Cordeiro Gomes parece ser uma ferramenta realmente útil.
Segundo
Gomes, o processo de metaforização são estratégias que buscam sustentar a
leitura da cidade tal qual um texto cuja tessitura vai tornando-se cada vez
mais volátil, rarefeita: o sentido da cidade como um lugar intimamente ligado
aos obstáculos para dizer o que ela poderia significar.
Os
“vestígios do efêmero” projetam a impressão de que a paisagem se retoca o tempo
todo, gerando a visão de que tudo se move e de que o que fica é um vestígio do
que já foi. O eco, como a “aparente fixação”, é a metáfora da recuperação do que
passou e ficou como vestígio.
O
Edifício Martinelli, por exemplo, encravado no centro histórico de São Paulo,
traduz bem isso. É ao mesmo tempo um vestígio do que fora no passado, o prédio
mais alto da capital paulista, símbolo de glamour e riqueza, e a fixação, o
prédio está lá, ainda existe, mas já não é o que fora um dia. É um eco.
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário