O
jornalista americano George Packer, de 55 anos, tarimbado repórter de
coberturas internacionais, também sabe falar sobre como funciona o próprio
país. Seu livro Desagregação – por
dentro de uma nova América (Companhia das Letras, 2014, tradução de Pedro Maia Soares) é um dos mais sensacionais sobre a situação da
sociedade americana depois das décadas brilhantes do pós-guerra (até 1960).
Neste
livro ganhador do National Book Award, Packer traça o perfil e acompanha o
desenrolar das vidas de alguns personagens cujas ações e cenários onde atuam
vão jogando luz sobre a sociedade americana em ebulição. Há histórias tocantes
de pobreza, persistência e riqueza de anônimos e de personalidades públicas,
que ora caminham paralelamente, e ora se cruzam, como no caso de Tammy Thomas,
mulher negra que lutou a vida toda para não ver seus filhos serem puxados pelo
crime e pela pobreza absoluta que avizinha seu universo na pequena Youngstown, Ohio,
uma das cidades mais violentas de todos os EUA, ou a experiência tocante da
família Hartzell (pai, mãe e um casal de filhos), que só tinha um ao outro para
contar, lutando para sobreviver num cenário de mudanças econômicas e de valores.
Packer
é brilhante no modo como conduz sua narrativa. Pontua bem como a miséria
começou a mais que cintilar na nação das oportunidades e passou a destruir a
base da classe média, enquanto cingia outros fios que amarrariam a sociedade de
um modo diferente.
São
494 páginas indo e vindo no tempo para captar o espírito da América se diluindo
pelos fracassos coletivos, enquanto certos indivíduos surfam na onda de
oportunidades de um novo tempo. À medida que o leitor vai acompanhando o texto
de Packer, vai descobrindo a América anunciada no título, sob um terreno
devastado. Descobre-se uma nação corroída por dentro. O autor expõe as ligas
desfeitas, os laços rotos, um tapete social gasto sob o qual um novo jogo de
interesses é germinado, pautado pelo lobby político e pelas jogadas financeiras
de Wall Street.
Há
uma grandiosidade no sentimento da sociedade americana que marca as histórias
também, e ela aparece junto com a sordidez de certos elementos. O livro de
Packer fala dos sonhos, das lutas diárias para se conseguir concretizar alguma
coisa, fala sobre trabalho, sobre ação do Estado, sobre carreira política,
sobre anônimos e famosos, sobre pobreza, sobre vencer e perder, lutar para a
possível revanche, a volta por cima, sobre violência, atitudes violentas, sobre
brancos e negros, cidades pequenas e metrópoles, sobre fragilidade e força,
sobre sensibilidade e abismo.
É
tocante o modo como Packer escreve sobre Raymond Carver, por exemplo. Autor de
livros como De que falamos quando
falamos de amor, Carver nasceu numa geração bem anterior às que protagonizam
o tema central do livro de Packer, mas sua obra é prefigurada como uma espécie
de prenúncio da derrocada, ou como o catalisador da desgraça americana.
A
história de vida de Carver é semelhante à de Oprah Winfrey, com a diferença de
que esta é mais bem sucedida, porque venceu as adversidades e descobriu o filão
do sucesso a tempo de se salvar, ao contrário de Carver. Este se afundou na
bebida e no cigarro e só foi se livrar do vício nos últimos dez anos de sua
curta vida, embora tenha dado tempo de morrer sob o manto do sucesso e do
respeito literário aos 50 anos na década de 1980, a mesma década em que Oprah
despontava para o sucesso absoluto.
Os
EUA são o país mais rico do mundo, com um PIB de US$ 17,35 trilhões (2014). Sua
malha produtiva abraça o mundo com a indústria de armamentos, a indústria
farmacêutica, a indústria de fast food, a indústria cinematográfica, a
indústria de tecnologia de ponta (Vale do Silício). Não é o Estado americano,
portanto, que está em xeque, por enquanto, mas sua base social.
Não
se trata de uma América empobrecida. Trata-se de uma sociedade perdida nos vãos
da individualidade, do culto à grana e ao hedonismo, uma sociedade pobre de
valores nadando no espaço líquido de uma nação podre de rica, em que as escolas
públicas “estão deixando os filhos de todo o povo semianalfabetos”, em que a
desigualdade socioeconômica está sempre aumentando.
Grandes
indústrias que durante muito tempo fizeram a economia americana robustecer
foram sendo eliminadas em fusões gigantescas com empresas de capital aberto,
controladas pelos magnatas de Wall Street. Tudo isso começou a dominar a vida
econômica do país. Centenas de milhares de empregos foram ceifados e famílias
se afundando no precipício financeiro e moral, com o uso de drogas e álcool se
tornando cada vez mais frequente na vida dessas pessoas.
Uma
imponente força empobrecedora se alastrou no meio da classe média americana.
Esse é o dado terrível. É realmente um livro grandioso em sua concepção, com
diversas chaves de interpretação dessa sociedade.
Quando
você lê Desagregação, você tende a
ter mais respeito pelo povo americano, mais compaixão pela sua luta diária. A
nação do Tio Sam não é feita só de figuras do poder que usam o robusto PIB – e tudo
que se consegue fazer com ele – para intimidar o mundo. Há os operários dessa
grande máquina que dão duro para subir à superfície, mas que muitas vezes só
conseguem, tal como certos peixes, pôr a cara de fora para uma célere respirada
e já voltam para a base, de onde suspiram para empurrar a grande nau americana
sabe-se lá para onde.
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