terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A verdadeira Mãe do "Lavoura Arcaica"

Juliana Carneiro da Cunha e Selton Mello em cena de Lavoura Arcaica

Luiz Fernando Carvalho é um dos diretores de cinema e televisão brasileiro que eu mais admiro. Não me lembro de ele ter feito outro filme, mas Lavoura Arcaica (2001), baseado no livro homônimo de Raduan Nassar, valeu pela década inteira.

Carvalho também fez uma série de trabalhos na TV Globo que vão desde novelas como Esperança e seriados como Os Maias, até a série em duas temporadas Hoje é Dia de Maria e a genial obra do Projeto Quadrante, incluindo aí A pedra do reino, baseado no Romance d'a Pedra do Reino e o príncipe do sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna, e Capitu, uma leitura poética de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Nesta terça-feira, na Folha de São Paulo, há um depoimento de Carvalho sobre Juliana Carneiro da Cunha, a excepcional atriz que faz a mãe do André (Selton Mello), em Lavoura. O texto do diretor é comovente, beirando à pieguice, mas é tocante.

Como a Folha de S. Paulo nem sabe que eu existo, peço a ela permissão para reproduzir o texto de Carvalho aqui no Leituras, e agradeço pelo consentimento (caso soubesse de mim). Segue abaixo.

Juliana desde sempre foi a verdadeira Mãe do "Lavoura"

LUIZ FERNANDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mãe. Não havia um nome próprio, apenas Mãe, mas isto para mim era tudo. Eram poucas as falas, poucas as passagens, mas para mim era um mundo. ‘Lavoura Arcaica’, de Raduan Nassar. Na sala de meu apartamento, Juliana estava diante de mim.

Eu, certamente avistando a imagem de minha mãe lá no fundo dos olhos dela, repousei o livro em suas mãos -mas isto acontecia contra suas palavras, que diziam: "Não poderei...".

Eu lutava. ‘Mas você não entende?’ Eu lutava, mas era em vão. ‘Não poderei, é quando estreamos o novo espetáculo no Soleil...’ Foi aí que parei: ‘Então é um presente, fique com o livro’.

Muitos meses se passaram. Muitas outras atrizes entrevistei e conheci. Todas pareciam prontas para fazer a Mãe, mas Juliana era ‘a’ Mãe [isso eu sabia por dentro, por fora era apenas mais um diretor em busca de uma intérprete para seu filme].

Muitos e muitos meses depois, em passagem por Paris, já convencido de que não poderia contar com ela, ligo para Juliana: ‘...um café?’.

‘Mas, espere’ - disse com aquele sotaque de quem há muito não falava o português – ‘Como vai o filme?’.

Ainda não havíamos começado a filmar. Também ainda não havia encontrado a atriz para a Mãe. ‘E para quando será?’

Não me recordo a data que lhe disse exatamente, mas nunca esquecerei do ruído da madeira quando ela depositou o telefone sobre algum móvel, depois de me pedir gentilmente que a aguardasse, e também do barulho de seus passos apressados pelo ambiente, seguido pelo alvoroço das folhas de papel que eu via suas mãos debulhando. E logo sua voz retornou: ‘Eu posso!’.

E não me lembro de mais nada que eu tenha dito, já habitava território estranho, uma lâmina afiada que poderia me sangrar a qualquer momento.

Coincidências não existem, o que existe é mesmo a Providência Divina. E ela falou claramente: ‘Pela primeira vez na história do Soleil o espaço do teatro será cedido para uma outra companhia e caberá a cada um de nós decidir se gostaria ou não de participar desta montagem. Vou levantar a mão e dizer que não, que tenho um filme no Brasil’.

Assim um ciclo se fechou enquanto outro, cheio de luz, amanhecia no centro do meu quintal. Era Juliana que vinha vindo, aquela que desde sempre foi a Mãe do ‘Lavoura’.

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