Em 1947, quando a editora José Olympio publicou a segunda edição de cinco romances de Graciliano Ramos (1892 – 1953), Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas e Infância, o autor enviou os livros para o crítico Antonio Candido, cada um com uma dedicatória. Na de Caetés, Ramos dizia: “a culpa não é apenas minha: é também sua. Se não existisse aquele seu rodapé, talvez não se reeditasse isto.”
A dedicatória está clara. Revela modéstia, mas também uma rara sinceridade, porque o autor não coloca o primeiro à altura de seus outros livros. Vidas Secas, por exemplo, não é apenas o melhor romance do autor, mas também uma das mais altas expressões da literatura brasileira de todos os tempos.
A advertência e a confissão presentes no texto a Antonio Candido se referem a cinco ensaios sobre os cinco romances de Ramos, que o crítico paulista havia escrito em 1945, quando saíra o quinto romance do escritor alagoano, Infância. Em 2009, o grupo editorial Record, que é o atual dono do selo José Olympio, relançou Caetés, em edição de bolso pela BestBolso, resgatando o romance de estreia do Velho Graça.
Embora não seja o melhor do autor, trata-se de um livro para leitores cultivados na boa literatura. Não custa nada lembrar aos interessados em ampliar os horizontes o lucro que se tem em mergulhar num texto agradável até hoje, um livro que ainda traz intacta a beleza da narrativa.
Depois de tanto tempo, e por ser obra de um autor tão estudado, o que prevalece na leitura de Caetés é o interesse individual. As leituras sistematizadas já estão aí. Por ser um livro situado num dado momento histórico, o que devemos buscar são as impressões que casam nosso entendimento de mundo com a do autor, principalmente se já lemos seus outros livros.
O próprio Candido, em Ficção e Confissão, diz que “para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais.”
Canibalismo
Caetés é a história narrada em primeira pessoa por João Valério, jovem de 24 anos de idade, que se apaixona por Luísa, mulher de Adrião Teixeira, dono do armazém onde Valério trabalha como guarda-livros. Nas horas vagas, o rapaz colabora no jornal Semana e também tenta escrever um romance sobre os índios caetés, tribo de canibais, famosa pelo episódio antropofágico do século XVI, quando mataram e comeram o bispo Sardinha.
No ambiente narrado, que se passa na década de 20 do século XX, na cidade alagoana de Palmeira dos Índios, vemos o cruzamento de duas imagens sugestivas: a do movimento antropofágico de Oswald de Andrade, que pregava a assimilação dos elementos da cultura brasileira no universo da criação artística, e a própria identificação posterior de João Valério com as raízes indígenas locais, ele, que era branco de olhos azuis.
Além disso, há também o desejo de Valério de devorar a mulher do chefe. Dentro desse drama, o personagem se sente angustiado por querer a mulher de um homem que o tratava bem e depositava-lhe confiança. Luísa, por sua vez, parecia não corresponder à investida. Valério, nessa situação, nutria um sentimento de inferioridade, uma sensação de que não era nada, que vai cortando o texto inteiro, marcando a tensão do romance.
Mesmo na esfera da criação, até quando o artista põe-se a trabalhar toda sua técnica de forjar tipos humanos, ainda assim, a personalidade do autor pode ser pescada em algum traço do texto. Certamente, essa característica não é a mais importante na apreciação da obra, a menos que ela tenha um caráter autobiográfico muito forte. No caso de Caetés, não há um marcação autobiográfica, mas há o sentimento de confissão.
Essa maneira de sentir a miséria humana e de se identificar com o homem simples do Nordeste já está presente em Caetés, sentimento que foi levado a cabo em Vidas Secas. Em Caetés, João Valério passa o tempo todo se achando abaixo dos homens da elite de Palmeira dos Índios. Esse sentimento de inferioridade leva-o a se autodescrever com frases pouco edificantes.
Vida de cão
Embora, fosse um homem lido e inteligente, se considerava de natureza preguiçosa, quer por não conseguir ir adiante com o romance que escrevia (não chegou à décima página), quer por não reagir diante das dificuldades de seus planos. Chegou a pensar no suicídio e dizia “sou apenas um inseto, mas, para inseto, recebi tratamento exagerado.”
Em uma das cenas, a conduta de João Valério especifica a maneira tal como ele mesmo se vê, e esta caracterização feita pelo autor dialoga com a caracterização de outro personagem, agora de Vidas Secas, a cachorra Baleia.
João Valério gozava da intimidade da casa onde queria dar o bote. Almoçava junto com os patrões, participava dos saraus, conversava abertamente com Luísa e até partilhava dos livros franceses que ela lia. Até quando ele roubou-lhe um beijo, ainda no começo da narrativa, e a partir daí, o que veio foi uma chuva de indiferença e distanciamento por parte de Luísa.
Em certo almoço, ele, fechado em si mesmo e se sentindo mal com a situação, não quis almoçar. Luísa brincou dizendo que o rapaz tinha um parafuso a menos. Valério respondeu que não era verdade, apenas julgava-se um homem desnecessário no mundo, e foi-se embora. “Cheguei a casa resolvido a insultar alguém. Não insultei, ou antes insultei mentalmente”, diz ele.
Algo semelhante sucede com a cachorra Baleia, que detestava “expansões violentas”, mas que muitas vezes era tratada como cachorro mesmo e recebia algumas caneladas, como que escorraçada de algum lugar, tal como se sentiu Valério, escorraçado pela indiferença de Luísa.
Para Baleia, diz o narrador em Vidas Secas, “os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários. Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa e uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se.”
Presença machadiana
Para um romance de estreia, publicado em 1933, mas escrito entre 1925 e 1928, Caetés é exemplar. Raros são os livros de estreia com tamanho vigor. Talvez nem Machado de Assis tenha conseguido isso. Este que foi um dos mestres da narrativa do escritor alagoano, junto com Eça de Queirós.
A presença machadiana está visível no primeiro livro de Ramos não só no jogo de ironia, na visão, às vezes, sarcásticas de João Valério, mas também na releitura de uma famosa frase de Brás Cubas, que dissera: “... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.”
João Valério perpassa seu drama desejando a morte de Adrião Teixeira, para assim se casar com a viúva. Mas para isso teria de conquistar de vez o amor de Luísa, que estava difícil. No desespero de não realizar o desejo, ele cogitou a possibilidade de se casar com uma moça rica da cidade, chamada Marta Varejão.
Casaria com Marta, pensava ele, porque “o amor de Luísa, se ela me tivesse amor, só me renderia desgostos, sobressaltos, remorsos, trezentos mil-réis por mês e oito por cento nos lucros dos irmãos Teixeira.”
Nenhuma literatura que se preze pretende segurar o leitor apenas pela trama. Isto é fato. O que vale é a construção do romance, o feixe de tensão que ele traz, a unidade na diversidade, para citar Aristóteles e fazer uma referência à beleza dessa construção. É por isso que vale a leitura de Caetés até hoje.
Quem leu os outros livros do Velho Graça poderá comparar e ver como os romances futuros se manifestam como germe nesse primeiro. Por ser narrado por João Valério, ainda traz parcos floreios de luar que “anda brincando com as nuvens”, de janelas “onde o sereno afluía.” Mas já é o escritor que conhecemos de prosas futuras, com sua “tendência angustiada para o silêncio”, conforme disse Antonio Candido.
Ramos fez desfilar aqui um pelotão de personagens bem articulados. Uma das cenas mais bem trabalhadas, em termos de diálogo permeado pela tensão, talvez seja a da discussão feroz entre Valério e o promotor da cidade, o doutor Castro, que havia deixado um assassino ser absolvido pelo júri popular. A essa altura, Valério já havia atingindo seu fim e alcançado a alcova de Luísa. Segue o trecho como apreciação e convite à leitura de um bom livro.
Trecho
Ia retirar-me, convencido de que o promotor era um grande canalha, quando Nicolau simulou uma tentativa de pacificação, inteiramente inoportuna:
― Não se afobem, meus amigos. Contenham-se. Um fuzuê a esta hora, as portas abertas, gente na rua! Não briguem. Amanhã sabem...
― Quem é que está brigando, seu Varejão? Retorqui com mau modo.
― É que os senhores conversam aos gritos. E o Neves passou por aí em frente, parou acolá na esquina. Quando andarem fuxicando, não vão pensar que fui eu.
― E o senhor julga que eu me importo com o Neves? Não me importo, não tenho medo dele. Nem dele nem de ninguém, bradei com falsa coragem, porque todos aqui temem o Neves.
― Exatamente o que eu ia dizer, declarou o dr. Castro. Não tenho medo de ninguém. Nem do Neves nem de ninguém. De ninguém! Tenho a minha consciência. Era o que eu ia dizer. A minha consciência. E sou bacharel.
― Ah! é bacharel? Meus parabéns.
E olhei-o com escárnio por cima do ombro do Pascoal, que se meteu de permeio. Aparentando calma, comecei a escovar a gola do paletó, esforçando-me por ter firmes os dedos, que tremiam ligeiramente.
― João Valério, gritou Isidoro com raiva, você vem ou fica?
― Já vou, Pinheiro. Foi você que perguntou ao dr. Castro se ele era bacharel? Eu não fui. Foi você, Pascoal? Foi o senhor, seu Varejão? Também não foi. Está aí.
O dr. Castro deu dois passos, apoiou a mão gorda na tabela do bilhar:
― Senhor Valério!
― É discurso?
― Com mil diabos! exclamou Isidoro.
― Não senhor, gaguejou o promotor, roxo. Não sou nenhum tolo, está ouvindo? E não tenho medo de ninguém, compreende? Nem do senhor, nem do Neves, nem de ninguém. Não sou nenhum tolo.
― o senhor já disse.
― Já. Era o que eu queria dizer. E a minha consciência é limpa.
― Qual consciência! Soltou Manuel Tavares porque lhe mandaram que não apelasse. Ora consciência!
― Consciência, sim senhor. Consciência. E não admito. Sou amigo de todos, não gosto de questões, mas não admito. Nas atribuições inerentes ao meu cargo... É isto mesmo, está certo. Tenho integridade, não vergo, tenho... tenho integridade.
― Bonito! Recebeu ordem...
― Não recebo ordens, não me submeto. Firme, entende como é? Escravo da lei, fique sabendo. Comigo é em cima do direito, percebe? Desde pequeno. A minha vida é clara. Cabeça levantada, com desassombro, na trilha do dever, ali na linha reta, compreende? Ora muito bem. Não ando seduzindo mulheres casadas.
― Como?
― é isto mesmo. Não vivo com saltos de pulga, ninguém encontra em mim rabo de palha. Amigo de todos, mas com seriedade, sem maroteiras.
― E quais são os saltos de pulga? Quais são as maroteiras que um pulha de sua laia descobriu...
― João Valério! bradou Isidoro intervindo.
― Tenha paciência, Pinheiro, isto vai longe.
E afastei o Silvério, que suplicava:
― Aqui não, meus senhores. Vou fechar as portas. Em minha casa não. Se vier a polícia... O promotor metido num rolo!
― Pelo amor de Deus! balbuciou Nicolau Varejão. É um mal-entendido. Eu explico. Calma! No tempo da monarquia... Ouçam, é uma história interessante.
Empurrei brutalmente o Pascoal:
― Deixe-me, com os diabos! Eu sou alguma criança? O que eu quero é que este idiota me diga...
― idiota é sua mãe.
―... quais são as maroteiras minhas que ele conhece.
― As que todo mundo sabe. Safadezas com a mulher do outro. Passeios na Lagoa, no Tanque... e o pobre do Adrião sem desconfiar.
Com um pulo, desprendi-me das mãos do italiano e agarrei um taco, resolvido a quebrá-lo na cabeça do promotor:
― Repita isso, canalha. Repita, seu filho de uma...
Não acabei o insulto. Isidoro segurou o braço do bacharel e cochichou:
― Não repita, doutor, não repita. Porque se repetir, quem lhe parte a cara sou eu, palavra de honra. Aconteça o que acontecer, juro por todos os santos que lhe quebro as costelas. E não torne a aparecer lá. Sou amigo da casa e hei de achar meio... Não apareça. O senhor é um caluniador. Vamos embora, seu Valério.
Serviço
Título: Caetés
Autor: Graciliano Ramos
Editora: BestBolso, 2009, 210 páginas
Gênero: Romance
Preço: R$ 14,90
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