Com cinco anos de atraso, em 2010 saiu no Brasil a tradução de A turma que não escrevia direito (Record, 2010, 392 páginas, tradução de Bruno Casotti), de Marc Weingarten. Publicado nos Estados Unidos em 2005, o livro conta a história do Novo Jornalismo, gênero narrativo-informativo que se utiliza de técnicas da escrita de ficção para revelar a verdade da vida.
O Novo Jornalismo nasceu para dar conta de um mundo multifacetado e veloz, ao qual a linguagem preguiçosa da pirâmide invertida (que põe o fato principal no primeiro parágrafo) não se adequava mais. Nasceu em Nova York, a cidade mais diversa do planeta, numa época em que ainda não havia a internet, e a televisão dava os primeiros passos rumo ao domínio da informação e do entretenimento.
Nesse ínterim, entre o jornalismo objetivo e a televisão, informação e entretenimento eram encontrados pelos novaiorquinos no jornal New York Herald Tribune e em revistas como Esquire, berço do Novo Jornalismo, New York e The New Yorker. Esta última, de proposta relativamente sisuda, via a nova narrativa com certa desconfiança. Seus jornalistas acreditavam mesmo era que a nova turma não sabia escrever.
Mesmo assim, foi a New Yorker que deu os primeiros passos rumo a um estilo diferente de texto. A reportagem Hiroshima, de John Hersey, publicada em 1946 foi um grande sucesso. Hersey narrou sob um ponto de vista bem particular os efeitos da bomba Atômica que havia caído um ano antes na cidade japonesa de Hiroshima.
Na opinião de Weingarten, Hersey foi um precursor pela maneira de descrever “assiduamente as reações internas de seus personagens, os pensamentos correndo por suas cabeças quando o ‘clarão silencioso’ aparece sobre Hiroshima.”
Depois disso, em 1959, Truman Capote escreveu para a mesma New Yorker a série de reportagens que daria origem ao livro A Sangue Frio, em que recria os acontecimentos em torno do assassinato de uma família de agricultores no interior dos Estados Unidos, “usando a voz onisciente de um romance”.
Mas foi na Esquire que apareceram os primeiros textos realmente com a cara do novo formato, com reportagens de Gay Talese, por exemplo. Uma delas foi sobre a cidade de Nova York. Juntaram-se a ele outros nomes como Tom Wolfe, Jimmy Breslin, Joan Didion, John Sack, Micheal Herr e Hunter S. Thompson, autor de textos memoráveis, falando de coisas sérias e esculachos geniais, que o puseram não só na categoria de novo jornalista, mas na de criador do gênero Jornalismo Gonzo.
Criatividade
Este grupo de escritores que apareceu no final da década de 1950 “aparentemente do nada”, na visão do autor, sacudiu a poeira da velha imprensa americana. “Eles apareceram para nos contar histórias sobre nós mesmos de maneiras que nós não podíamos contar, histórias sobre como a vida estava sendo vivida nos anos de 1960 e 1970 e o que aquilo tudo significava.”
É nesse grupo, cujos textos foram chamados de reportagem criativa, que Weingarten se concentra para contar a história do Novo Jornalismo, termo dado por Tom Wolfe em coletânea publicada por ele em 1973. Wolfe foi a grande estrela do movimento que fez circular um “fluxo sem precedentes de não ficção criativa, o maior movimento literário desde o renascimento da ficção americana nos anos 20”, diz Weingarten.
Todos eles apuravam os fatos como bons repórteres que eram. Prestavam atenção nos mínimos detalhes, reconstruíam em seus textos cada miligrama de informação que pudesse dar à história o tom exato da verdade que pretendiam fixar. Criavam fluxo de consciência, brincavam com as onomatopeias e perscrutavam a mente dos personagens.
Uma das reportagens de Wolfe falava da febre de carros customizados em Los Angeles. O título, retirado por seu editor do corpo do texto, era uma saraivada de sons e ritmo intraduzível, mas facilmente compreendido até mesmo por quem não sabe pedir sequer um doce em inglês. “There goes (VAROOM! VAROOM!) that Kandy-Kolored (THPHHHHHH) tangerine-flake streamline baby (RAHGHHHH) around the Bend (BRUMMMMMMMMMMMMMMMM)”.
Bem antes dos uivos e salvas de palmas ao Novo Jornalismo de Nova York, no Brasil um escritor já causava furor, mas de raiva, por causa de alguns textos enviesados. Era Vinicius de Morais escrevendo sobre cinema, em 1951, para a Última Hora, jornal de Samuel Wainer.
Uma dessas crônicas, intitulada UH-UHUHUHUH-UH-UHUHUHUH!, falava do novo filme de Tarzan. Ao longo de todo o texto, o sarcástico e traquinas Vinicius escrevia de modo a reproduzir a caótica sintaxe do rei da selva. “Tarzan cai cachoeira, atira faca certeira cabeça cobra mecânica, mata sete cada vez feito alfaiate contos carochinha. Tarzan vê Jane dormindo faz olho morto.”
Aquarela
É claro que no caso de Vinicius era uma curtição tremenda com a película que ele não curtiu. Os novos jornalistas, por outro lado, escreviam trechos entre o tatibitate e a reflexão profunda com o intuito sempre de reproduzir certas ideias com mais clareza.
Tanto é que um dos dogmas do Novo Jornalismo levado mais a sério era “colorir os fatos e personagens como um aquarelista para chegar a uma verdade emocional e filosófica maior.” Mas isso não é algo fácil de se fazer. Segundo Weingarten, essa época de ouro das reportagens criativas cravou uma profunda influência sobre a nova geração.
É esta nova geração que atualmente dá as cartas nas redações americanas. “Foi assim que tudo degringolou”, provoca Weingarten, não sem cochilar sobre a razão. Nos dias de hoje, há uma trupe ferozmente boa, que escreve tão bem ou melhor, na observação de um leitor atual, claro, do que Norman Mailer ou o próprio Tom Wolfe.
Entre esses talentosos novos novos jornalistas, para frisar o título do livro de Robert Boynton, que aborda o assunto em The New New Journalism (2005), estão John Lee Anderson, Philip Gourevitch e Anthony Lane. Todos da New Yorker. Para se diferenciarem daquilo que ficou para trás, chamam suas matérias de Embedded Journalism [Jornalismo de Imersão (não só no campo como também na cabeça dos entrevistados)].
Além disso, estes não brincam com títulos maravilhosamente provocantes como fazia Wolfe. O futuro autor de best-sellers como Fogueira das Vaidades publicou uma reportagem sobre Las Vegas, por exemplo, com o sugestivo título Las Vegas (What?) Las Vegas (Can’t Hear You! Too Noisy) Las Vegas!!!. [intercalando o nome da cidade com as exclamações “O quê?”, “Não escuto nada, barulho demais”].
Rally
Em outra reportagem sobre o piloto de Stock Car, Junior Johnson, que estava na crista da onda em 1964, Wolfe escreveu: “Ggghhzzzzzzzhhhhhhggggggzzzzzzzeeeeong! – gawdam!”, simulando o barulho do carro do velocista, para no fim soltar um entusiasmado “p.q.p.”.
Por causa de títulos e trechos como este e matérias com jeitos irreverentes de contar uma história, outra grande repórter da época, a autora do best-seller de 1952, Filme, Lillian Ross, publicou uma comentada reportagem com o perfil de Wolfe.
O título era simples: “Red mittens” (Luvas vermelhas). Mas o início da matéria já desenhava o riso e o tino de Lillian: “Zonzzzzzzzzzz! Innnnnnnnn! Balançando! Eles são quentes! Eles vão tão longe que estão chegando ao outro lado. E não aguentam mais os adolescentes.”
A reportagem, claro, foi publicada em The New Yorker, em 1965. Wolfe se sentiu elogiado na mesma proporção em que se impeliu a responder numa voltagem arrasadora, que obteria tréplica, e as páginas da imprensa mais interessante dos Estados Unidos ganhavam um rally de polêmica.
“A New Yorker”, disse Wolfe em sua réplica, “sai uma vez por semana, tem um prestígio cultural impressionante, paga preços altos a escritores – e há quarenta anos mantém um nível de alcance literário extraordinariamente baixo.”
E assim, entre uma rixa e outra, nessas duas décadas nasceram os grandes clássicos da reportagem, muitos dos quais viraram livros, e depois filmes, como Medo e delírio em Las Vegas: uma jornada selvagem pelo coração do sonho americano, uma das duas ou três obras-primas escritas por Hunter S. Thompson, sem dúvida o mais louco e comentado dos novos jornalistas.
Apesar do nome e da aceitação do público especializado como tal, o Novo Jornalismo possui raízes fincadas no século XIX e nas primeiras décadas do XX, com Charles Dickens e Jack London no primeiro e George Orwell, no segundo. Esses três escreveram livros com base nas observações cotidianos que eram vistas como grandes reportagens.
Rastro
Muitos daqueles textos inclusive foram publicados primeiro nos periódicos. É o caso se Street Sketches, de Dickens, com histórias cavadas nas ruas de Londres, ambiente onde London também encontrou material para escrever seu O povo do abismo, livro que influenciou Orwell a escrever Na pior em Paris e Londres.
Do mesmo modo, os novos jornalistas eternizaram seus trabalhos em livros que se tornaram verdadeiros clássicos da literatura de não ficção. Os talentosos escritores não cobriam apenas as mudanças culturais e sociais da época, mas mergulhavam na política e nas relações internacionais e cobertura de guerras.
Além dos livros que já foram citados, há outros como Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas, de Thompson, Os nus e os mortos e Os exércitos da noite, ambos de Norman Mailer, e O reino e o poder: uma história do New York Times, de Gay Talese. Despachos no front, de Michael Herr, nasceu das reportagens sobre a Guerra do Vietnam entre 1969 e 1970.
O livro, no entanto, saiu mesmo só em 1977, se tornando um clássico visitado por todos os roteiristas de Hollywood que fizeram filmes sobre o assunto, inclusive Francis Ford Coppola para Apocalipse Now e Oliver Stone, para Platoon.
Todas essas histórias – apuradas e escritas num tom criativo de sondagem e narração – foram produzidas por grandes escritores, mas graças a editores que sabiam descobrir os talentos e apostavam neles, como Jim Bellows e Clay Felker, cujos perfis também são contados no livro de Weingarten.
A Turma que não escrevia direito não está à altura de seu objeto de estudo, no que diz respeito ao texto. Mas há boas passagens, além de ser um documento imprescindível para quem se interessa em entender como funciona o jornalismo. (Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 2/01/2010)
Serviço
Título: A turma que não escrevia direito
Autor: Marc Weingarten
Editora: Record, 2010, 392 páginas
Gênero: Jornalismo
Preço: R$ 54,90
4 comentários:
Ótimo, Gilberto! Uma aula, especialmente para mim que não sou do ramo, digamos assim. Valeu! Abraços.
Obrigado, Webston! Grande abraço!
Tb gostei! Dá para falar tb do Teste de Ácido do Refresco Elétrico? A reportagem foi de quem mesmo, do Wolfe?
Abs!
Sim, a reportagem é de Tom wolfe, que saiu primeiro como uma série de reportagens para a revista New York (não The New Yorker) e depois virou livro, com texto retrabalhado, em 1968. Esse livro foi publicado no Brasil pela Editora Rocco, em 1993, justamente com esse título: O teste do ácido do refresco elétrico. Infelizmente não li esse livro. Pra falar a verdade fiquei mais fã de Talese e Thompson, de quem li alguns livros. A verdade, verdade, mesmo, é que eu não tenho dinheiro pra tanto. Sou um duro. Infelizmente não posso comprar tudo que eu queria e as bibliotecas que frequento não me oferecem tudo que quero (Gurdjieff, por exemplo). A de Curitiba, quando morei lá, foi a melhor biblioteca pública que já frequentei. Melhor, em termos de acesso e serviços, do que a própria Mário de Andrade, em São Paulo, onde também morei. Enfin, é isso, Lúcio. Abç!
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