quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A música e a paz segundo Barenboim


É atribuída ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche a observação segundo a qual a vida sem música seria um equívoco. Pode-se dizer qualquer bobagem ou qualquer verdade sobre o pensamento nietzschiano (tão poético quanto filosófico, em seu conjunto), mas discordar dessa sentença seria um atestado de burrice.

A música é instrumento de todos os campos da ação humana. É fulcral na religião, na ciência do comportamento, no cinema, nas campanhas políticas, na vida diária. Em 2005, o maestro e pianista argentino Daniel Barenboim veio ao Brasil com a orquestra West-Eastern Divan ((Divã Ocidental-Oriental). Em suas entrevistas, enfatizou que a música toca a essência da existência.

E agora, no livro A música desperta o tempo (Martins Fontes, 2010, 168 páginas, tradução de Eni Rodrigues [inglês] e Irene Aron [alemão]), criva o texto de máximas tais como “a música possui um poder que vai além das palavras.” E aqui ele se refere ao suprassumo da arte, não a qualquer melodia desfavorecida de harmonia, ritmo, volume e velocidade (passagem do tempo).

O pensamento de Barenboim nasce da verdade da música, mas também de uma tríade alemã, para dizer pouco: Schopenhauer, o próprio Nietzsche e Wagner, o compositor antissemita confesso. Este último está no cerne da preferência musical de Barenboim, que é judeu.

O maestro soube diferenciar com sabedoria o fio de conduta pessoal do compositor e a expressão universal e profunda da música wagneriana, como Parsifal, procurando provar a inefabilidade do significado musical, seu efeito na alma acima do bem e do mal.

É claro que Barenboim precisou da linguagem verbal para explicar de que forma essa força que vem da música pode nos guiar. Ele necessitou das palavras para falar de algo que vai além delas, e por isso tentou argumentar que o pensamento da música é metafísico, que o acesso a ele é pelo caminho inefável. Exprimir o inexprimível.

Afora esse quiproquó, o que o autor elabora como pensamento e argumento em torno da música é de grande valor. Na verdade, o que Barenboim quer com este livro é chamar a atenção para o fato de que, além de ser essencial à vida em si, a música também pode ser instrumento de ação a favor da vida ativa.

A música pode ser usada em prol da convivência entre as diferenças, uma ferramenta capaz de criar o entendimento entre as pessoas, entre as nações. “A música é um instrumento muito mais valioso com o qual podemos aprender sobre nós mesmos, sobre a nossa sociedade, sobre a política”, argumenta Barenboim.

A arte de ouvir

Neste caso, o ouvido é o canal máximo. Saber ouvir é essencial. A música, diz Barenboim, dá ao ser humano outra ordem de compreensão e de expressão, algo que entrelaça razão e emoção, porque, para o maestro, na música, “é impossível emocionar-se sem que haja a devida compreensão intelectual, assim como não é possível ser racional sem ter emoções – mais uma vez um paralelo claro com a vida”, diz.

Isso significa que a emoção pura pode ser veículo do ódio ou de paixões desagregadoras, assim como a razão pura carrega uma frieza incapaz de harmonizar qualquer coisa que seja. No caso da música, é diferente, diz Barenboim. Ela prima pela ambiguidade, dentro da qual é possível o diálogo entre dois pensamentos divergentes, a partir do qual nasce a compreensão.

O problema é que a audição nunca foi tão suprimida, tão negligenciada e tratada com pouco caso como o é atualmente, principalmente quando se trata de ouvir música. Pouca gente a usa como reflexão, como parte essencial da vida, que toca no íntimo do ser. Hoje em dia, dança-se a música ou faz-se dela som ambiente, “onipresença caótica e desagradável em restaurantes, aviões e outros locais.”

“Nenhuma escola eliminaria o estudo de idioma, matemática ou história de seu currículo, no entanto, o estudo da música, que abrange tantos aspectos dessas áreas do conhecimento e pode até contribuir para uma melhor compreensão deles, muitas vezes é inteiramente ignorado”, desabafa o maestro em sua introdução.

Mais adiante ele argumenta: “A educação do ouvido talvez seja muito mais importante do que se imagina, não só para o desenvolvimento de cada indivíduo, mas para o funcionamento da sociedade e, portanto, dos governos.”

A partir deste ponto, Baremboim completa seu raciocínio, levando a força da música para o campo da política e da diplomacia. Segundo ele, a música é o diálogo entre o intelecto e a emoção, uma arte que exige atitude. “A arte de tocar música é a arte de tocar e ouvir simultaneamente”, diz ele.

Neste sentido, ela seria fundamental para promover a harmonia entre os povos, como árabes e judeus, que se digladiam há décadas, e antes disso já trocavam sopapos e insultos, séculos adentro. Foi com esse objetivo que Barenboim e o intelectual palestino Edward Said criaram a orquestra West-Eastern Divan, em 1999. Said, falecido em 2003, morava nos Estados Unidos, dava aulas na Universidade de Columbia.

A orquestra reúne jovens estudantes de música palestinos, israelenses, sírios, libaneses, egípcios e jordanianos, na tentativa de criar um ambiente de diálogo e de compreensão mútua entre as duas culturas conflituosas, fazendo-os entender suas diferenças, convencendo-os da paz.

“Nossa convicção desde o início é a de que os destinos de nossos dois povos – palestinos e israelenses – estão indissoluvelmente ligados e que, portanto, o bem-estar, a dignidade e a felicidade de um indivíduo devem, inevitavelmente, ser os de outro”, escreve o maestro.

É claro que a atitude dos dois amigos, Said e Barenboim, está longe de por fim num conflito tão arraigado. Mas o maestro conseguiu, já na ausência do companheiro, levar a West-Eastern Divan para tocar em Ramallah, em 2004, a cidade principal da Palestina, com todos os membros israelenses da orquestra.

O relato dessa aventura diplomática proporcionada pela música também é narrado em A música desperta o tempo. Segundo Barenboim, Said teve um mérito especial na criação da orquestra, porque ele combinava um raro conjunto de qualidades, entre elas, a capacidade de ver “as conexões e os paralelos entre assuntos diferentes” e a consciência de que “paralelos e paradoxos não são contradições.”

O intelectual palestino era um crítico ferrenho do conflito entre árabes e judeus no Oriente Médio. Seu livro mais conhecido é Orientalismo, que debate a maneira como o Ocidente vê e julga aquela região do Mediterrâneo. Em toda sua obra, Said, nascido em Jerusalém em 1935, é contundente com a visão míope dos dois lados desde a criação do Estado de Israel, em 1948.

“Said foi bastante crítico em relação à falta de capacidade dos líderes israelenses em realizar os necessários gestos simbólicos que devem preceder qualquer solução política. Os árabes, por outro lado, foram e ainda são incapazes de aceitar a sensibilidade de Said com relação à história judaica, limitando-se a repetir que não tiveram culpa pelo sofrimento vivido pelo povo judeu”, diz Barenboim.

Aproximação poética

Uma ironia tácita que perpassa as escolhas de Barenboim para expressar o inexpressável é a íntima relação entre o sentido da música e as palavras. West-Eastern Divan, por exemplo, é título de uma coleção de poemas de Goethe, que fala do outro, mais precisamente, da perspectiva da cultura árabe-islâmica, o primeiro a fazer isso na poesia ocidental.

“Ele [Goethe] originalmente descobriu o islã”, diz Barenboim, “quando um soldado alemão, que havia sido combatente numa das campanhas espanholas, trouxe consigo uma página do Alcorão para lhe mostrar. Seu entusiasmo foi tão grande que ele começou a aprender árabe aos sessenta anos de idade.”

Já o título do livro do maestro foi retirado de um trecho de A montanha mágica, de Thomas Mann, escritor que tinha estreita ligação com a música, tendo inclusive escrito um romance, Doutor Fausto, que se baseia nas personalidades de Nietzsche e Schoenberg para criar seu personagem principal, Adrian Leverkühn.

O trecho em questão diz que a música “é o semiarticulado, duvidoso, indiferente. A música desperta o tempo, ela nos desperta para o mais fino prazer do tempo.” O que Barenboim não diz, nem faz referência, é que a poesia se aproxima da música, e muito, em termos de expressão visceral.

É talvez a única arte verbal capaz de invadir a alma do leitor com a intensidade de uma música de Beethoven. Aliás, é justamente pela força, pelo ritmo e musicalidade, além do significado profundamente ligado ao que Beethoven queria expressar, que ele pôde musicar o poema "Ode à alegria", de Friedrich Schiller, na "Nona Sinfonia".

A literatura também se faz por uma gramática que não a convencional. A gramática poética é outra, é a primeira coisa que se aprende ao estudar literatura. Começa-se a buscar o significado de um poema pelo ritmo, não pelo que se encontra de regras sintáticas nele.

O significado do poema se encontra no jogo da palavra, no bojo dos versos construídos coordenadamente, tal como a música cujas frases se coordenam e não caem na armadilha da subordinação.

Uma das dificuldades de compreensão, e ao mesmo tempo, uma das fontes de beleza dos textos de Nietzsche é justamente esse jogo entre a retórica formal e a gramática da música e da poesia.

Nietzsche queria ser poeta e também músico. Chegou inclusive a compor sonatas e sinfonias. O livro de Barenboim não entra nesses detalhes. Sua função é outra, é de mostrar o poder que a música tem de transformar um ambiente hostil, bem como o poder de dar à alma outro contorno. Mas a paixão pela música não elimina a arrogância de ninguém.

Exemplos há muitos no mundo. Mesmo assim, talvez falte música, até para ambiente de balada, aos espíritos que estão se formando e abrindo os olhos para o mundo agora. Esta é a perspectiva de Barenboim, e também é a de muitos outros músicos, que veem na música essa mesma força capaz de criar novas perspectivas.

Há vários exemplos positivos no Brasil, como o do maestro João Carlo Martins e seu belíssimo trabalho com adolescentes pobres da favela de Paraisópolis e outros bairros de São Paulo.

Outro exemplo é o do maestro Mozart Vieira, que na década de 1990 mudou a vida de várias crianças no interior de Pernambuco, ensinando a eles música clássica. Sua história ficou conhecida no filme Orquestra dos Meninos, de 2007, com Murilo Rosa e Priscila Fantim.

A música, como diz Barenboim, maestro conceituado internacionalmente, é um espelho da vida. Daí sua capacidade de fazer a pessoa conhecer a si mesma e, a partir desse olhar reflexivo, tomar a atitude de mudar sua própria vida.

Serviço
Autor: Daniel Barenboim
Editora: Martins Fontes, 2010, 168 páginas
Preço: R$ 35,90

(Gilberto G. Pereira. Texto publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto, em março de 2010)

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