quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A literatura não tem gênero, tem voz


Não sou especialista, mas acredito que a literatura não tenha gênero sexual, por mais tentadora que seja tal ideia. Do mesmo modo que nenhum texto literário possui cor, no sentido étnico, a literatura não pode ser encarada como sendo feminina ou masculina.

É um tipo de discussão que nasceu recentemente, encabeçado pelos movimentos femininos, que são legítimos sociologicamente, antropologicamente, politicamente, filosoficamente. Mas na esfera literária, o que deve prevalecer é a estética.

A literatura tem voz (leia mais aqui). Se o escritor é mulher, a voz do autor provavelmente será feminina, mas não necessariamente a voz dos personagens, a voz do narrador, por exemplo. Madame Bovary não era um homem. Sua condição de mulher é incontestável.

Sua voz está ali, entre a criação do autor e as vozes narrativas veiculadas por um testemunho que dá unidade ao narrador. A voz de Bovary está ali, como a de uma legítima alma feminina, embora Flaubert, ao ser pressionado no Tribunal, acusado de ofensas morais, tenha dito ser ele mesmo no papel da mulher que ele criara. E era, tão nitidamente quanto Bovary era uma mulher e não homem.

Quando a literatura tem a intenção de ter gênero desemboca na militância, no engajamento, pernicioso e prejudicial à apreciação estética. É claro que existe literatura engajada dona de alto valor estético. Romances históricos, romances-ensaios são exemplos disso. Mas a questão da identidade deve estar ligada primeiramente ao fator estético, ao modo de dizer, não ao gênero feminino ou masculino, não à etnia.

Quando se diz que a literatura é judaica, é porque a voz do autor, ou do personagem, está intimamente ligada à questão judaica. Os instrumentos narrativos utilizados por Ralph Ellison em Homem invisível, por exemplo, são claramente da tradição literária criada por autores brancos, como James Joyce e Dostoievski. Mas sua voz é negra e é isso que dá ao livro um caráter diferenciado na abordagem.

Literatura não tem gênero, não tem cor. Tem voz, que emerge do texto por meio de procedimentos estéticos.

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