Winslet: seu corpo, mesmo com os sinais do tempo e da vida real, é um belo poema
Todo leitor sabe, ou deveria saber, que a literatura é carga explosiva. Para cultivar a arte da citação, lembrando aqui Ezra Pound, literatura “é linguagem carregada de significado em seu grau máximo.” Essa carga de significação explode sempre no encontro sinestésico do leitor, procurando atingir todos os sentidos ao mesmo tempo.
Em função disso, o texto literário se inscreve no campo da subversão, do perigo iminente. Com essa ideia na cabeça, fica fácil ver O leitor, filme de Stephen Daldry, com Kate Winslet e Ralph Fiennes, e entender por que os livros estão no cerne do drama dos dois personagens principais.
Adaptada do livro homônimo do alemão Bernhard Schlink e ambientada na década de 1960, a história é simples: Michael (David Kross/Ralph Fiennes) é um garoto de 15 anos que passa mal na volta da escola para casa e Hannah (Winslet) o socorre na casa dela. Ela, 20 anos mais velha do que ele, mora sozinha, é bela, sedutora e misteriosa. Os dois passam a ter um caso, que dura o verão todo.
Durante esse período, o garoto lê para ela o que há de melhor da literatura: Homero, Rainer Maria Rilker, Pasternak, Dostoievski, Lesser, Goethe, Shakespeare etc. É a primeira parte da trama, em que o destino dos dois se cruza e a literatura aparece como elemento de desejo e prazer. Ele gosta de ler, ela gosta de ouvir.
O corpo e o livro
O prazer da leitura alia-se aí ao do sexo, ao das descobertas. Tirar a roupa – mostrar o corpo nu, fazer amor – e virar as páginas de um livro para ler seu conteúdo polissêmico se equivalem.
A descoberta ou o re-encontro da beleza das palavras, para ela, bem como a descoberta da beleza do corpo feminino e do gozo oferecido, para ele, são prazeres harmônicos. Os dois se deliciam.
Mas no jogo literário, as descobertas se fazem num labirinto que também oferece resistência, cria segredos. Em troca de certas revelações, escondem-se peças fundamentais do jogo. O leitor precisa estar atento. No jogo do sexo e das relações amorosas acontece algo semelhante. E é aí que se faz o drama.
Logo no começo do filme, o professor de literatura de Michael, diz que, na tradição da literatura ocidental, a trama traz sempre um segredo depositado em um ou mais personagens, que vai sendo desvendado aos poucos, quer para o bem quer para o mal.
É nesse modelo que se encaixa o papel da literatura no filme, tanto como arte quanto como metáfora dos microdramas de cada personagem. Sabemos que a literatura é transgressora de todo pensamento estabelecido, mas em O leitor, acrescenta-se a isso um novo componente: a insígnia do mal.
Hannah gostava de ouvir a leitura que Michael fazia para ela, sim. Havia, no entanto, outro componente: ela não sabia ler. Quando os dois se separaram, alguns anos depois, com Michael já homem feito, advogado formado, ele a encontra como ré, no tribunal que julgava os criminosos do Holocausto. O drama de Michael começa aí, mas o de Hannah já existia há muito tempo.
Michael fica sabendo que Hannah foi guarda em Auschwitz. Durante o Holocausto, ela era encarregada de selecionar e enviar as prisioneiras à câmara de gás, enquanto as outras ficavam nos alojamentos trabalhando, conforme a história que todos conhecem e que os judeus jamais deixarão que se perca no tempo ou mofe nos livros didáticos.
O filme traz pelo menos três dramas: o do rapaz que descobre que a mulher que o fez homem, que o despertou para o mundo das sensações físicas de prazer, é ex-carrasco do Holocausto; o da mulher que é analfabeta e não quer revelar esse segredo; e o das vítimas do Holocausto, o drama dos judeus, sempre.
Na voz das meninas-cadáveres
No decorrer de seu julgamento, as testemunhas revelam outro segredo de Hannah: enquanto escolhia quem iria para a morte, ela selecionava algumas meninas para ficar lendo para ela. Aqui a literatura entra no rol da culpa. A literatura e o mal se tornam cúmplices.
A acusação deixa no ar o prazer mórbido da ré, que se abstrai da situação perversa para sentir, na voz das meninas-cadáveres, o efeito gozoso de seu objeto de desejo, o grau máximo do prazer da leitura.
Alguém lembra que imaginava que o ato da leitura fosse sinal de que havia um sentimento de humanidade em Hannah, mas o que se viu foi o comportamento atroz de um carrasco, a frieza do emissário da morte.
Alguém interpretou mal a literatura, achando que fosse o instrumento ajustador das atrocidades do mundo, além de julgar que o que é humano é bom e só a monstruosidade é capaz de fazer o mal. Hitler também lia. Joseph Goebbels tinha a inteligência e a sensibilidade refinadíssimas e lia a nata da literatura.
Literatura e morbidez podem andar juntas, sim, e não só na ficção. Mas, também, qualquer coisa pode ser parceira da morte, como o prazer, a felicidade, o encantamento, a alta dose de otimismo. Desconfiemos sempre do otimismo como palavra de ordem. Tudo pode ser objeto do sentimento mórbido.
Um parêntese para Winslet, ou o drama maior de Hannah
Kate Winslet está deslumbrante no filme. Tão simples, tão marcadamente mulher. Seu corpo, com todos os sinais do tempo e da vida real, equivale a um belo poema. Na interpretação, seu olhar de tristeza revela um pouco o drama maior da personagem.
Mas não nos enganemos. O drama maior de Hannah não é o fato de ter matado judeus e não conseguir conviver com a carga da culpa. O que ela esconde de verdade, e não revela nem sob a ameaça da pena de prisão perpétua, é a sensação de não ser ninguém por não saber ler.
Aliás, há uma fina sugestão de que o fato de não saber ler determinou seu ingresso na carreira de carrasco, o que nivela todos, instruídos e ignorantes, na atitude do extermínio. Ninguém é inocente. Todos são humanos.
Nesse caso, a literatura se redime. É por causa desse prazer que Hannah quer aprender a ler, e o faz da maneira mais literária possível, por si mesma, como é em si, em sua maior parte, o texto literário.
Todo leitor sabe, ou deveria saber, que a literatura é carga explosiva. Para cultivar a arte da citação, lembrando aqui Ezra Pound, literatura “é linguagem carregada de significado em seu grau máximo.” Essa carga de significação explode sempre no encontro sinestésico do leitor, procurando atingir todos os sentidos ao mesmo tempo.
Em função disso, o texto literário se inscreve no campo da subversão, do perigo iminente. Com essa ideia na cabeça, fica fácil ver O leitor, filme de Stephen Daldry, com Kate Winslet e Ralph Fiennes, e entender por que os livros estão no cerne do drama dos dois personagens principais.
Adaptada do livro homônimo do alemão Bernhard Schlink e ambientada na década de 1960, a história é simples: Michael (David Kross/Ralph Fiennes) é um garoto de 15 anos que passa mal na volta da escola para casa e Hannah (Winslet) o socorre na casa dela. Ela, 20 anos mais velha do que ele, mora sozinha, é bela, sedutora e misteriosa. Os dois passam a ter um caso, que dura o verão todo.
Durante esse período, o garoto lê para ela o que há de melhor da literatura: Homero, Rainer Maria Rilker, Pasternak, Dostoievski, Lesser, Goethe, Shakespeare etc. É a primeira parte da trama, em que o destino dos dois se cruza e a literatura aparece como elemento de desejo e prazer. Ele gosta de ler, ela gosta de ouvir.
O corpo e o livro
O prazer da leitura alia-se aí ao do sexo, ao das descobertas. Tirar a roupa – mostrar o corpo nu, fazer amor – e virar as páginas de um livro para ler seu conteúdo polissêmico se equivalem.
A descoberta ou o re-encontro da beleza das palavras, para ela, bem como a descoberta da beleza do corpo feminino e do gozo oferecido, para ele, são prazeres harmônicos. Os dois se deliciam.
Mas no jogo literário, as descobertas se fazem num labirinto que também oferece resistência, cria segredos. Em troca de certas revelações, escondem-se peças fundamentais do jogo. O leitor precisa estar atento. No jogo do sexo e das relações amorosas acontece algo semelhante. E é aí que se faz o drama.
Logo no começo do filme, o professor de literatura de Michael, diz que, na tradição da literatura ocidental, a trama traz sempre um segredo depositado em um ou mais personagens, que vai sendo desvendado aos poucos, quer para o bem quer para o mal.
É nesse modelo que se encaixa o papel da literatura no filme, tanto como arte quanto como metáfora dos microdramas de cada personagem. Sabemos que a literatura é transgressora de todo pensamento estabelecido, mas em O leitor, acrescenta-se a isso um novo componente: a insígnia do mal.
Hannah gostava de ouvir a leitura que Michael fazia para ela, sim. Havia, no entanto, outro componente: ela não sabia ler. Quando os dois se separaram, alguns anos depois, com Michael já homem feito, advogado formado, ele a encontra como ré, no tribunal que julgava os criminosos do Holocausto. O drama de Michael começa aí, mas o de Hannah já existia há muito tempo.
Michael fica sabendo que Hannah foi guarda em Auschwitz. Durante o Holocausto, ela era encarregada de selecionar e enviar as prisioneiras à câmara de gás, enquanto as outras ficavam nos alojamentos trabalhando, conforme a história que todos conhecem e que os judeus jamais deixarão que se perca no tempo ou mofe nos livros didáticos.
O filme traz pelo menos três dramas: o do rapaz que descobre que a mulher que o fez homem, que o despertou para o mundo das sensações físicas de prazer, é ex-carrasco do Holocausto; o da mulher que é analfabeta e não quer revelar esse segredo; e o das vítimas do Holocausto, o drama dos judeus, sempre.
Na voz das meninas-cadáveres
No decorrer de seu julgamento, as testemunhas revelam outro segredo de Hannah: enquanto escolhia quem iria para a morte, ela selecionava algumas meninas para ficar lendo para ela. Aqui a literatura entra no rol da culpa. A literatura e o mal se tornam cúmplices.
A acusação deixa no ar o prazer mórbido da ré, que se abstrai da situação perversa para sentir, na voz das meninas-cadáveres, o efeito gozoso de seu objeto de desejo, o grau máximo do prazer da leitura.
Alguém lembra que imaginava que o ato da leitura fosse sinal de que havia um sentimento de humanidade em Hannah, mas o que se viu foi o comportamento atroz de um carrasco, a frieza do emissário da morte.
Alguém interpretou mal a literatura, achando que fosse o instrumento ajustador das atrocidades do mundo, além de julgar que o que é humano é bom e só a monstruosidade é capaz de fazer o mal. Hitler também lia. Joseph Goebbels tinha a inteligência e a sensibilidade refinadíssimas e lia a nata da literatura.
Literatura e morbidez podem andar juntas, sim, e não só na ficção. Mas, também, qualquer coisa pode ser parceira da morte, como o prazer, a felicidade, o encantamento, a alta dose de otimismo. Desconfiemos sempre do otimismo como palavra de ordem. Tudo pode ser objeto do sentimento mórbido.
Um parêntese para Winslet, ou o drama maior de Hannah
Kate Winslet está deslumbrante no filme. Tão simples, tão marcadamente mulher. Seu corpo, com todos os sinais do tempo e da vida real, equivale a um belo poema. Na interpretação, seu olhar de tristeza revela um pouco o drama maior da personagem.
Mas não nos enganemos. O drama maior de Hannah não é o fato de ter matado judeus e não conseguir conviver com a carga da culpa. O que ela esconde de verdade, e não revela nem sob a ameaça da pena de prisão perpétua, é a sensação de não ser ninguém por não saber ler.
Aliás, há uma fina sugestão de que o fato de não saber ler determinou seu ingresso na carreira de carrasco, o que nivela todos, instruídos e ignorantes, na atitude do extermínio. Ninguém é inocente. Todos são humanos.
Nesse caso, a literatura se redime. É por causa desse prazer que Hannah quer aprender a ler, e o faz da maneira mais literária possível, por si mesma, como é em si, em sua maior parte, o texto literário.
4 comentários:
Parabéns, Giba. Seu texto está ótimo. Adorei e deu vontade de ler e ver o filme também.
Beijos
Joana Eleutério
Obrigado, Joana!
Bom carnaval!
eu só li agora, depois de ler o filme. queria comparar a minha leitura com a sua. beijo
E aí, Laura, qual é o resultado da comparação?
Um beijo!
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