terça-feira, 5 de agosto de 2008

AS REMINISCÊNCIAS DO TRÁGICO: dois livros de Arthur Schnitzler

Novela de Schnitzler em que também nos defrontamos com o elemento do trágico

Arthur Schnitzler, médico e escritor vienense, nasceu em 1862. Escreveu seu primeiro livro (A canção de amor da bailarina) aos 18 anos e aprendeu a andar de bicicleta aos 31. Casou-se aos 41. Publicou sua obra-prima (Aurora) aos 64 e morreu aos 69.

Contemporâneo de Freud, era tão admirado quanto o pai da Psicanálise, senão mais. Seus livros, entre romances, contos e peças de teatro, fizeram muito sucesso em sua época. Freud chegou a escrever para Schnitzler dizendo que não lia seus livros porque lidavam, de maneira diferente, com o mesmo material de sua psicanálise.

Schnitzler era um craque na construção clássica do trágico. Mas hoje seu trabalho mais famoso não é uma tragédia, é Breve Romance de Sonho (1925), de especulação psicológica e sondagem surreal, que deu origem ao filme de Stanley Kubrick, De olhos bem fechados.

Fazer o quê? Não se podem ganhar todas as batalhas. O que importa mesmo é vencer a guerra. Esta Schnitzler venceu. Ah, sim, venceu. Seu teatro até hoje é encenado. Seus contos de amor e de morte ainda são lidos com atenção. Seu valor estético prevalece na contemporaneidade desses primeiros anos de um longo século.

Schnitzler retomava a temática clássica, mas em outra roupagem. Fazia o trágico numa linha nova, em que a burguesia vienense sofria as conseqüências de uma causa errante. Neste sentido, Aurora é um de seus romances mais interessantes.

Em Aurora, um jovem boêmio, perde tudo no pôquer e tem de pagar ao ganhador, caso contrário morrerá. Entra em desespero e recorre ao melhor amigo para pedir empréstimo. Mas este também não tem o dinheiro e recorre ao jogo para ganhar o valor devido.

Ele ganha. Mas não consegue parar, e joga mais, e ganha mais. Só que depois perde. E perde tudo. E se desespera também. Não sabe o que fazer. Não agüenta a pressão da idéia de ter que pagar uma fortuna inteira e se mata.

Eis o trágico. A história é isso, ou tudo isso. Numa lavrada, Schnitzler joga toda a concepção trágica do mundo em nossa consciência. Na tragédia, quem morre ou sofre sanções não é exatamente o culpado, é o inocente, e por isso é trágico. Em Senhorita Else, pequena obra-prima, também nos defrontamos com esse elemento.

Else, de 14 anos, se vê às voltas de uma tarefa sórdida e alheia, incumbida por seus pais. Eles estavam devendo uma pequena fortuna e tinham de pedir dinheiro emprestado. O que fizeram? Recorreram à Else, ordenando-lhe que fosse a um senhor muito rico solicitar o empréstimo, porque já sabiam que o velhote estava de olho na menina.

Ela foi, pediu o dinheiro, e o tal senhor disse que só emprestaria se ela, Else, ficasse nua para ele. A garota se viu numa sinuca de bico, e teve uma idéia, a de ficar nua num baile, na frente de todo mundo.

Se era para se vender e mostrar seu corpo nu, que fosse para todos verem e não apenas um velho escroto. Seu esforço para acompanhar a tamanha exigência pedófila, numa sociedade burguesa do começo do século XX, hipócrita, contraditória, tal como ainda o é, foi além de seus limites e Else cai morta no ato da execução.

A narrativa de Senhoria Else é em primeira pessoa. Nada de extraordinário não fosse o fato de ser narrado no momento exato do acontecimento. A consciência trabalhando, Else externando vontades e repulsas num estágio de consciência pura.

Em A Náusea, de Sartre, isso também acontece, mas não em tempo real. Sucede apenas em registro no diário de Antoine de Roquentin. Neste sentido, Senhorita Else é um marco na narrativa em primeira pessoa, sem dúvida.

Talvez, Memórias do Subsolo, de Dostoievski, seja o precursor desse fluxo de consciência. Mas ainda assim, não alcança a pequena obra de Schnitzler.

Em obras como Aurora e Senhorita Else podemos perceber a eficácia da arte. A literatura não é só um passa-tempo inócuo. É o exercício da consciência em que a reta de nossa vida tangencia o que foi a vida do outro – ciclo realizado – por meio de sua criação.

“Viver é perigoso”, diz Riobaldo, personagem de ficção de Guimarães Rosa. Esse perigo também percebemos no encontro da vida com a arte, no centro da estética, permeando os sentidos.

4 comentários:

Anônimo disse...

Contrariamente ao que se espera de uma jovem senhora aspirante a especialista, primeiramente vi e, secundariamente, li. De olhos bem fechados, além de uma fotografia lindíssima e um casal protagonista que também contraria o Hollywood fake way of life (pois são muito bonitinhos e nem um pouco ordinários), Tom e Nicole - magistralmente regidos por Kubrick - apresentam uma delicada e perturbadora história. Com o livro em mãos e com olhos bem abertos, conheci a original versão já assistida, e, surpresa! Tal e qual! É um dos raríssimos casos (só verifiquei neste e no caso Lavoura Arcaica), que as duas formas artísticas tão diferentes entre si tocam-se apaixonadas e fundem-se em um mesmo texto visual - letras/imagens - sem prejuízo nenhum a nenhuma das partes. Evoé.
Flávia.

Em tempo: Riobaldo foi/é um sábio matuto, mas acrescentaria ao viver outros dois verbos intranquilamente perigosos: pensar e sonhar...

Gilberto G. Pereira disse...

Perfeito!

Anônimo disse...

Gostei da análise e apreciação crítica do texto.
Vou seguir este blogue, para me actualizar com a literatura barsileira, dado que sou portuguesa.
Não encontrei nada sobre o Sandór Marai, para mim, o melhor escritor de sempre (apenas!), terei procurado bem?

Felicidades,

Constança de Portugal

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Constança! Tenho pensado em ler Sandór Marai, por ele ter tido um vínculo com o Brasil e ter escrito Veredicto em Canudos, que fala sobre um fato importante da história do Brasil, a Guerra de Canudos. Mas até agora essa vontade ainda não se transformou em ato. Vou lembrar de você quando eu o ler. Li recentemente uma jovem escritora portuguesa de que gostei muito, que é Faíza Hayat, autora de O evangelho segundo a serpente. É isso.
Grande abraço!