Contemporâneo de Freud, era tão admirado quanto o pai da Psicanálise, senão mais. Seus livros, entre romances, contos e peças de teatro, fizeram muito sucesso em sua época. Freud chegou a escrever para Schnitzler dizendo que não lia seus livros porque lidavam, de maneira diferente, com o mesmo material de sua psicanálise.
Schnitzler era um craque na construção clássica do trágico. Mas hoje seu trabalho mais famoso não é uma tragédia, é Breve Romance de Sonho (1925), de especulação psicológica e sondagem surreal, que deu origem ao filme de Stanley Kubrick, De olhos bem fechados.
Fazer o quê? Não se podem ganhar todas as batalhas. O que importa mesmo é vencer a guerra. Esta Schnitzler venceu. Ah, sim, venceu. Seu teatro até hoje é encenado. Seus contos de amor e de morte ainda são lidos com atenção. Seu valor estético prevalece na contemporaneidade desses primeiros anos de um longo século.
Schnitzler retomava a temática clássica, mas em outra roupagem. Fazia o trágico numa linha nova, em que a burguesia vienense sofria as conseqüências de uma causa errante. Neste sentido, Aurora é um de seus romances mais interessantes.
Em Aurora, um jovem boêmio, perde tudo no pôquer e tem de pagar ao ganhador, caso contrário morrerá. Entra em desespero e recorre ao melhor amigo para pedir empréstimo. Mas este também não tem o dinheiro e recorre ao jogo para ganhar o valor devido.
Ele ganha. Mas não consegue parar, e joga mais, e ganha mais. Só que depois perde. E perde tudo. E se desespera também. Não sabe o que fazer. Não agüenta a pressão da idéia de ter que pagar uma fortuna inteira e se mata.
Eis o trágico. A história é isso, ou tudo isso. Numa lavrada, Schnitzler joga toda a concepção trágica do mundo em nossa consciência. Na tragédia, quem morre ou sofre sanções não é exatamente o culpado, é o inocente, e por isso é trágico. Em Senhorita Else, pequena obra-prima, também nos defrontamos com esse elemento.
Else, de 14 anos, se vê às voltas de uma tarefa sórdida e alheia, incumbida por seus pais. Eles estavam devendo uma pequena fortuna e tinham de pedir dinheiro emprestado. O que fizeram? Recorreram à Else, ordenando-lhe que fosse a um senhor muito rico solicitar o empréstimo, porque já sabiam que o velhote estava de olho na menina.
Ela foi, pediu o dinheiro, e o tal senhor disse que só emprestaria se ela, Else, ficasse nua para ele. A garota se viu numa sinuca de bico, e teve uma idéia, a de ficar nua num baile, na frente de todo mundo.
Se era para se vender e mostrar seu corpo nu, que fosse para todos verem e não apenas um velho escroto. Seu esforço para acompanhar a tamanha exigência pedófila, numa sociedade burguesa do começo do século XX, hipócrita, contraditória, tal como ainda o é, foi além de seus limites e Else cai morta no ato da execução.
A narrativa de Senhoria Else é em primeira pessoa. Nada de extraordinário não fosse o fato de ser narrado no momento exato do acontecimento. A consciência trabalhando, Else externando vontades e repulsas num estágio de consciência pura.
Em A Náusea, de Sartre, isso também acontece, mas não em tempo real. Sucede apenas em registro no diário de Antoine de Roquentin. Neste sentido, Senhorita Else é um marco na narrativa em primeira pessoa, sem dúvida.
Talvez, Memórias do Subsolo, de Dostoievski, seja o precursor desse fluxo de consciência. Mas ainda assim, não alcança a pequena obra de Schnitzler.
Em obras como Aurora e Senhorita Else podemos perceber a eficácia da arte. A literatura não é só um passa-tempo inócuo. É o exercício da consciência em que a reta de nossa vida tangencia o que foi a vida do outro – ciclo realizado – por meio de sua criação.
“Viver é perigoso”, diz Riobaldo, personagem de ficção de Guimarães Rosa. Esse perigo também percebemos no encontro da vida com a arte, no centro da estética, permeando os sentidos.
4 comentários:
Contrariamente ao que se espera de uma jovem senhora aspirante a especialista, primeiramente vi e, secundariamente, li. De olhos bem fechados, além de uma fotografia lindíssima e um casal protagonista que também contraria o Hollywood fake way of life (pois são muito bonitinhos e nem um pouco ordinários), Tom e Nicole - magistralmente regidos por Kubrick - apresentam uma delicada e perturbadora história. Com o livro em mãos e com olhos bem abertos, conheci a original versão já assistida, e, surpresa! Tal e qual! É um dos raríssimos casos (só verifiquei neste e no caso Lavoura Arcaica), que as duas formas artísticas tão diferentes entre si tocam-se apaixonadas e fundem-se em um mesmo texto visual - letras/imagens - sem prejuízo nenhum a nenhuma das partes. Evoé.
Flávia.
Em tempo: Riobaldo foi/é um sábio matuto, mas acrescentaria ao viver outros dois verbos intranquilamente perigosos: pensar e sonhar...
Perfeito!
Gostei da análise e apreciação crítica do texto.
Vou seguir este blogue, para me actualizar com a literatura barsileira, dado que sou portuguesa.
Não encontrei nada sobre o Sandór Marai, para mim, o melhor escritor de sempre (apenas!), terei procurado bem?
Felicidades,
Constança de Portugal
Obrigado, Constança! Tenho pensado em ler Sandór Marai, por ele ter tido um vínculo com o Brasil e ter escrito Veredicto em Canudos, que fala sobre um fato importante da história do Brasil, a Guerra de Canudos. Mas até agora essa vontade ainda não se transformou em ato. Vou lembrar de você quando eu o ler. Li recentemente uma jovem escritora portuguesa de que gostei muito, que é Faíza Hayat, autora de O evangelho segundo a serpente. É isso.
Grande abraço!
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