“Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal”.
A declaração em tom de ironia e chiste é do poeta português Almeida Garret (1799 – 1854) no livro de prosa Viagem na minha terra, publicado em 1846. Ele riu de Xavier de Maistre (1763 - 1852), autor de Viagem à roda de meu quarto, mas sabia que o escritor francês era melhor e mais influente que ele. Pelo menos deveria saber.
Com seu pequeno romance, Maistre influenciou muita gente boa, como Machado de Assis, cujo Brás Cubas faz questão de pagar a dívida, em nome de seu criador, citando o mestre francês na apresentação de Memórias Póstumas, onde aparece também Laurence Sterne (1713-1842).
Para quem ainda não leu e não quer seguir o conselho de Pierre Bayard, eis uma boa dica. A Estação Liberdade acaba de lançar a segunda edição do livro de Maistre, não trazendo nada de novo, mas tirando da lista de esgotados um belo romance.
Viagem à roda de meu quarto é gostoso de ler. O narrador mantém sempre um riso por trás das letras. Trata-se de um gênero romanesco chamado por Northrop Frye de sátira menipéia, na qual também se encaixam Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, e A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy, de Sterne.
Xavier de Maistre era filho de uma família nobre de origem francesa, que vivia em Savóia, região que mais tarde foi anexada à França. Era o irmão mais jovem de Joseph de Maistre (1754 – 1821), diplomata e influente pensador da época, que gostava de escrever livros polêmicos, segundo dizem.
Mas a razão de Joseph ser citado aqui é que Xavier tinha um grande respeito pelo irmão, que pagou a primeira edição de Viagem à roda do meu quarto, publicado em 1794.
Reza a lenda que Maistre escreveu o livro todo numa cela, em Turim (daí a ironia de Garret), preso em conseqüência de um duelo. Tinha formação militar, tendo chegado às altas patentes, e, pelo visto, era um brigão.
Trechos:
“Nas longas noites de inverno, é algumas vezes agradável e sempre prudente nela nos recostar-mos indolentemente, longe do fragor das assembléias numerosas. — Uma boa lareira, livros, penas; quantos recursos contra o tédio! E que prazer, também, esquecer os livros e as penas para atiçar o fogo, entregando-se a alguma doce meditação, ou compondo umas rimas para alegrar os amigos! As horas então deslizam sobre nós, e caem em silêncio na eternidade, sem nos fazer sentir a sua triste passagem.”
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“Percebi, por diversas observações, que o homem é composto de uma alma e de uma besta. — Estes dois seres são absolutamente distintos, mas de tal modo estão encaixados um no outro, ou um sobre o outro, que é preciso que a alma tenha uma certa superioridade sobre a besta para estar em condição de distinguir-se.”
OBS: Sobre esta passagem, devo dizer que muitas vezes o homem deixa escapar sua alma e a besta toma conta de todo o seu ser.
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“Não, o meu amigo não entrou no nada; qualquer que seja a barreira que nos separe, hei de tornar a vê-lo. Não é num silogismo que eu fundo a minha esperança — o vôo de um inseto que atravessa os ares basta para me persuadir; e muitas vezes o aspecto do campo, o perfume dos ares, e não sei que encanto derramado em torno de mim, elevam de tal modo os meus pensamentos que uma prova invencível da imortalidade entra com violência na minha alma e a ocupa inteira.”
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“Éramos felizes pelos nossos erros — e agora: Ah! Já não é nada disso! Fomos obrigados a ler, como os outros, no coração humano; e a verdade, caindo no meio de nós como uma bomba, destruiu para sempre o palácio encantado da ilusão.”
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