segunda-feira, 18 de junho de 2018

Breve história de sete assassinatos: o vórtice interminável de horror


Breve história de sete assassinatos, de Marlon James (Intrínseca, 736 páginas, tradução de André Czarnobai, 2017) imprime uma radiografia topográfica da miséria e da violência. Obviamente, o livro não é só isso, mas toda sua construção narrativa carrega essa marca distinta, de modo dialógico, que faz dele um romance clássico, indispensável para quem se interessa por literatura e, sobretudo, pela literatura da diáspora africana.

O romance traz um conjunto de histórias impactantes que se costuram e dão forma a um cenário revelador da miséria do mundo e suas consequências no indivíduo e na sociedade. Dividido em cinco partes, as duas primeiras narram o que se passa em 2 e 3 de dezembro de 1976, na periferia de Kingston, capital jamaicana, em torno de uma conspiração para matar O Cantor (Bob Marley), às vésperas de seu show pela paz chamado Smile Jamaica, em 5 de dezembro. 

A tentativa de assassinato houve realmente, na própria casa de Bob Marley, na cidade alta, região nobre de Kingston, enquanto lá embaixo, gangues loteavam seus domínios. O show no National Heroes Park também houve, com Marley inicialmente disposto a cantar só uma música, já que estava ferido, mas que acabou cantando durante uma hora e meia.

Na ficção, no centro da trama, está a figura de Bob Marley. De algum modo, todos estão querendo alcançá-lo, quer para matá-lo, quer para explorá-lo. Desfilam na passagem do enredo uma coorte de dominadores do crime, como Josey Wales, Chorão, Fumaça, Bam-Bam, Papa-Lo, e tantos outros, além de um jornalista (Alex Pierce) e um agente da CIA e dezenas de outros personagens.

Quando foi lançado na Jamaica, em 2014, até ganhar o Man Booker Prize, em 2015, o romance ganhou fãs que passaram um tempão reatando os fios da maçaroca para descobrir o que era fato e o que era ficção, uma vez que os personagens têm nomes de figuras reais da história jamaicana, e muitas de suas ações coincidem no emaranhado de textos dispostos em 736 páginas de pura verve literária.

Embora a riqueza do romance esteja nas filigranas do caos, e na análise arrebatadora sobre a realidade da periferia de Kingston, a palavra violência não sai da órbita do texto e, portanto, não escapa ao vocabulário da crítica. É impossível não a repetir várias vezes, impossível não entender a intenção do autor como quem quer saturar a evocação da violência como um sintoma, mesmo recuando no tempo para vir puxando o estado de coisas até o novo século.

O que nos espreita

O livro de Marlon é o desafio de uma viagem ao inferno, e ele, o autor, nos ciceroneia, desafiando-nos a conviver com uns dos personagens mais violentos da história da literatura, vivendo num dos mundos mais violentos da história da literatura, expondo-nos a uma das mais violentas realidades fictícias, e o que é mais terrível, inspirada na realidade factual de um mundo que a gente conhece, um mundo que a gente sabe que existe, que a gente faz de tudo para ignorar, de que a gente quer fugir, mas que, sendo um pouco crítico e observador, a gente sabe o quanto ele está ao nosso redor, nos espreitando. 

Para além disso, Breve história tem uma dimensão épica muito acentuada. Seus personagens, todos anti-heróis, percorrem uma jornada grandiosa no cotidiano da cidade, da periferia, desconstruindo as noções de civilidade do centro, da riqueza. A mentalidade do crime está toda na trama, como um dispositivo instalado. 

Os personagens narram suas histórias como testemunhos de um fato em tempo real. Na primeira parte, o fato é o atentado contra o Cantor. Mas sobretudo, eles testemunham a vida, o tempo. A narração é feita a partir de várias perspectivas, que vão dando conta dos elementos que compõem a história toda, iluminando novos pontos da ação. 

O mais interessante é que o abre da narrativa, a perspectiva é fora do tempo. Os personagens estão mortos e veem o tempo passar. Veem a vida passar, veem as pessoas nascerem e morrerem. E a razão disso, um bandido chamado Demus dá a dica: “Alguém, em algum lugar, de algum modo, vai julgar os vivos e os mortos.” A perspectiva da narração colada ao tempo da ação é interessante porque permite esse movimento extratemporal.

Breve história é um périplo que começa em Kingston e vai até Nova York, mas não termina lá. Discute a violência em dimensões variadas, da violência contra a mulher ao racismo. E cada leitor que conhece a realidade de qualquer periferia se identificará com as cenas violentas, de discriminação, com o descaso das autoridades, com a corrupção, com a maldade da polícia, com a maldade dos bandidos, com o estado de abandono de todos.

É a Jamaica como metáfora, primeiro do Caribe, depois da América Latina pobre e suas ramificações na América branca, e por fim, do mundo inteiro, o mundo pobre, atravessado pelo paradigma da economia de mercado. “Copenhagen City e Eight Lanes são muito grandes e toda vez que você chega ao limite, o limite anda um pouco mais pra frente que nem uma sombra, até que o mundo inteiro seja a favela”, diz um dos narradores. É isso. Esses bairros (fictícios ou não), junto com os outros que aparecem na topografia da periferia, são a metáfora da miséria em qualquer lugar.

Raízes

Neste sentido, o romance oferece um importante conteúdo sociológico sobre pobreza e dominação, violência e poder. Enquanto a elite branca se refestela na cidade alta, os pobres vivem como gado repartido pelo PTJ, que representa o capitalismo, e o PNP, que representa o socialismo. E nada muda.

Com seu romance, Marlon abraçou a história da Jamaica independente, algo que só ocorreu em 1962, quando o Reino Unido largou o osso. No momento da narração da primeira parte, o país, cuja população é majoritariamente negra e sem poder, via sua capital Kingston com "as taxas de criminalidade subindo meteoricamente".

A violência nasce da ação, mas atravessa a consciência, vira um hábito, e como hábito se arraiga nos gestos e no modo de pensar, fixa-se no cotidiano. “Matar um moleque não significava nada. E pior que eu já sabia disso, talvez fosse uma coisa que todo moleque da favela já nasce sabendo”, diz um dos bandidos.

Como diz Alex Pierce, um dos personagens, jornalista americano que aparece em Kingston para escrever sobre a cidade do Cantor, ao falar de um dos bairros mais pobres da capital jamaicana, Trench Town, outra metáfora para qualquer favela: “A beleza possui um espectro infinito, mas a miséria também, e a única maneira de capturar com precisão e integralmente seu vórtex interminável de horror é usando a imaginação.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 17 de junho de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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