terça-feira, 17 de novembro de 2009

ENCONTROS E DES-ENCONTROS: a dignidade da literatura



Há alguns dias recebi o livro Encontros e des-encontros (Ateliê Editorial, 2005, 112 páginas), de Maria Teresa Hellmeister Fornaciari. Embora o título esteja no esteio comum, representa bem aquilo que a autora quer dizer nos textos. Gostei do que li, principalmente pela preocupação com a linguagem, que no fim das contas é o que dá o efeito estético em qualquer literatura.

Toda vez que vamos ler o livro de um autor desconhecido para nós, do qual nunca ouvimos falar, de quem nenhum crítico que conhecemos escreveu ou, se escreveu, não lemos, procuramos as falhas, em vez da delícia dos acertos. Se vamos ler Ian Mcewan, por exemplo, já queremos ver aquilo que se falou dele, a profunda reflexão das ideias, a grande capacidade de concisão etc.

Mas sobre um autor que não faz parte do ciclo da crítica, é preciso esforço para compreender se há algo de valor ou não em seu texto. E aí, fica mais fácil apontarmos os defeitos, porque, geralmente, são os mesmos que teríamos se fôssemos escrever.

Encontros e des-encontros tem defeitos, mas quero falar aqui do que tem de bom. Trata da casualidade da vida, girando em torno de expectativas, desilusões e momentos de êxito, sob o reflexo específico de um comportamento urbano, com algumas lembranças do mundo rural.

É como se a autora revisitasse sua história, a memória de sua família, e ao mesmo tempo fizesse um retrato da cidade de São Paulo, onde nasceu. É como se houvesse ali uma busca de identidade, um exercício de autoconhecimento.

Nesse sentido, desenha bem o sentimento de quem mora nas metrópoles brasileiras, especialmente a capital paulista. Todo mundo é meio perdido ali, e os encontros (poucos) e desencontros (tantos) abarrotam a vida dos paulistanos (nascidos ou vindos).

Há inclusive um texto intitulado “Identidade”, que diz: “O tempo passa deixando rastros e marcas.” Nesse trecho o leitor sente o peso das palavras e o quanto o próprio tempo pesa sobre a vida.

Mais adiante, uma narradora se coloca como alguém que estranha a chegada da maturidade, que procura no espelho a juventude e não encontra, e começa a puxar a memória para se redescobrir: “Procurei sempre ser tão carinhosa, gostei tanto de que minha dedicação proporcionasse momentos felizes, fiz tantas comidas que deram água na boca e ainda sei tantos poemas de cor ...”

Uma das definições da crônica diz que ela é a mais literária das linguagens jornalísticas e a mais jornalística das linguagens literárias. Os textos de Maria Teresa estão entre o conto e a crônica. Embora catalogados como crônicas, não têm a marca da publicação em jornal, mesmo retratando o cotidiano, e assim criam uma atmosfera de narrativa interessante. É um livro que alcança a dignidade do literário.

Os primeiros textos se assemelham a aquarelas, pinturas configurando o cenário do dia a dia, fixo. Como se o leitor estivesse de frente a uma tela, lendo a narração da imagem pintada. Aliás, em matéria de pintura, a autora conhece bem, porque também é pintora e poeta, o que pode até reivindicar, num nível mais modesto, é claro, o velho mote de Horácio ut pictura poesis (poesia é como pintura). No caso dela, a literatura inteira é como pintura, talvez impressionista.

Pincelando o drama

Depois das aquarelas, a autora escolhe narradores diversos que também pintam histórias do cotidiano, porém, mais dramáticas. Tristes, às vezes. Em tom confessional, outras tantas. E aí, entre encontros e desencontros, os textos vão tecendo o caráter literário do livro. Nenhum deles nomeia os personagens. Ficam sem nomes como num quadro, sendo descritos pelo que sentem, veem, vivem, enfim.

Dois textos trazem uma carga de emoção bem acentuada: “Tempo de Quaresma” e “Tentação”. No primeiro, um casal experimenta a passagem do tempo e o efeito que isso causa no relacionamento amoroso. Já não havia mais diálogo, mais sexo, mais afabilidades, embora houvesse a intenção, o afeto escondido na espessa camada do tempo.

Pelo silêncio dos dois na sala, numa Quarta-Feira de Cinzas, o leitor acompanha os pensamentos de ambos. Mas na mesa, “o que se ouvia, naquele fim de quarta-feira, era apenas o barulho de duas pessoas mastigando, sentadas frente a frente, além do latido do cachorrinho.”

Em “Tentação”, uma menina de nove anos vive a solidão da escolha que fez pelo mundo das palavras. O pequeno drama poético se passa numa feira de livros. A garota se afasta do grupo e se perde no rumor das letras até se achar na palavra ‘quimera’.

Esse conto, esse pequeno memorial, recria uma atmosfera bem na linha de Clarice Lispector, a claricinha ainda menina no Recife, que ficou dias namorando o livro da amiga até consegui-lo emprestado e não devolver mais. Há inclusive uma epígrafe com texto de Lispector.

Trilha sonora particular

A nota dos textos é triste, quase sempre. O timbre é do violino, que substituiu o tambor dos verdes anos. Esta é a impressão maior do ritmo. Ao longo do livro há sempre uma nota musical, uma citação que inclui a história num ambiente de música. Uma trilha sonora bem particular, que está no íntimo de cada personagem.

Dessa leitura, muitas frases cintilam na malha textual de Maria Teresa, apontando sua capacidade de ler o cotidiano, como ao dizer: “Por que as pessoas teimavam em reivindicar a mesma violência e o mesmo tédio de suas rotinas em seus momentos de lazer?”.

Mas há também frases que demonstram o rigor do trato com a linguagem e o talento da autora. Frases de efeito: “Tão racional e habilidoso, sabia subtrair-se com esmero quando se tratava de não se fazer compreendido.” Perspicácia e sensibilidade: “Como somos incapazes de ver o avesso das coisas.”

Tino poético: “Neste momento de tantas perdas, tenho medo de que também o amor escape feito lágrima.” Bem antes, em outro texto, já havia escrito: “Duas lágrimas emergiram e suicidaram-se”. Machadiana: “A vida pareceu-me abrir parênteses, sem ao menos preocupar-se com alguma explicação.”

Maria Teresa Hellmeister Fornaciari é professora de literatura, graduada em Letras, com mestrado em Língua Portuguesa pela PUC de São Paulo. É editora do blog Ouvindo Meus Botões e autora também do livro de poesia Tambores e Violinos.
Serviço

Este livro pode ser comprado no site da Livraria Cultura.

Título: Encontros e des-encontros
Autora: Maria Teresa Hellmeister Fornaciari
Editora: Ateliê Editorial, 2005, 112 páginas
Gênero: Crônicas/Contos
Preço: R$ 23,00

2 comentários:

Laurene disse...

Olha que belas frases do livro da professora! Vc corretamente identificou a influência machadiana.

PS; parece que o blog encontra sua vocação quando opina sobre as polêmicas do momento (q era o objetivo original, aliás), assim como as cria!

Abs do Lúcio Jr.

Gilberto G. Pereira disse...

Maravilha, Lúcio! Obrigado pelo comentário, e, como sempre, estou de olho nas polêmicas e nas contrapolêmicos de seu blog.
Grande abraço!