terça-feira, 18 de agosto de 2015

Da solidão à vertigem de ser plural

Vista parcial do Parque Ibirapuera (2015, domingo por volta das 14 horas): São Paulo é um organismo vivíssimo e em transformação

De 1554 até 1900, São Paulo se restringiu a uma pulsação urbana tímida e solitária nas dependências que se restringiam entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, com poucas saliências além. Bom Retiro, Vila Buarque, Higienópolis eram terrenos de chácaras que começaram a ser loteados nas últimas décadas do século XIX e começo do XX. É nesse período que o censo percebe que a capital está reagindo e começando a crescer, já contando 240 mil habitantes.

Se esta história foi narrada em A capital da solidão, de Roberto Pompeu de Toledo, este mesmo autor adianta o passo para contar como tudo virou, dando início à vertigem do crescimento, em A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954, quando São Paulo completou 450 anos e já tinha 2,8 milhões de pessoas, não apresentando mais os sinais da quietude que lhe fora peculiar durante todos aqueles séculos anteriores.

Os tempos agora eram de faustismo e movimento, com tantas coisas acontecendo simultaneamente. A riqueza do café, a badalação cultural dos modernistas, a chegada de tanta novidade arquitetônica e urbanística, a ocupação dos imigrantes que burlaram a política de substituição dos escravos nas fazendas e se aboletaram na cidade, tudo isso, em poucas décadas, faria a cara de sampa mudar vertiginosamente.

Roberto Pompeu de Toledo já havia provado seu valor de narrador soberbo no primeiro volume, em que diz coisas como: “Para recriar na imaginação a vida de São Paulo nos primeiros anos, é preciso incluir a escuridão, profunda e primitiva, de suas noites. Acrescente-se o silêncio. Talvez seja recomendável adicionar um pouco de tristeza. Era um burgo solitário, o mais solitário de todos.”

O que Toledo fez agora foi ampliar essa verve, mostrando-nos São Paulo e suas mil faces, desde o motor econômico, com a arrojada gestão de Antonio Prado (seu primeiro prefeito), até as novas ideias modernistas que tomaram conta da Pauliceia. Na década de 1920, com a chegada dos revolucionários da estética modernista, os paulistanos, segundo Pompeu de Toledo, já sentiam a sensação de aceleração do tempo “com mais força do que os outros brasileiros.” Eis a vertigem, produzida nos “anos confiantes, em que a cidade ousou tornar-se maior pela força da arte e da cultura”.

A cidade acordada

A vertigem também se dá pelos inúmeros projetos de urbanização da nova São Paulo quando ainda não havia o termo urbanização – entre eles a inauguração do Theatro Municipal, o reordenamento do Vale da Anhangabaú – e pelo aparecimento do primeiro automóvel na capital, o surgimento do cinema, o barulho de todas as coisas da modernidade, acordando a cidade de seu silêncio secular.

Essa aceleração não parou até hoje. Se o autor chamou o período entre 1900 e 1954 de vertiginoso, o que dizer de 1954 para agora, em que a cidade saltou de 2,8 milhões de habitantes para 11 milhões e ainda puxou a seu redor outra dezena de milhões de pessoas? Prudente, Toledo contextualiza: “Perto do que é hoje”, diz ele, a São Paulo dos modernistas ainda ostentava “o ar de vila interiorana.”

Em A capital da vertigem, Toledo demonstra um domínio absoluto da história de São Paulo, transversalizando temas como urbanização, movimentos artísticos, economia, vida noturna e social, política, comportamento, a dinâmica dos setores produtivos, imigração e o problema das águas. O autor não deixa nada de fora da biografia, nem mesmo a ascensão pelo mercado do sexo, narrando histórias de mulheres que alcançaram a alta sociedade paulistana por meio da prostituição de luxo, como Nenê Romano, como ficou conhecida Romilda Machiaverni, protagonista de uma tragédia em que foi assassinada por um dos amantes, Moacyr de Toledo Piza, da alta sociedade, que depois se matou.

Madame Sanchez seria outra figura conhecida da noite de luxo paulistana. Ela teria sido a inspiração para Hilário Tácito (pseudônimo do engenheiro José Maria de Toledo Malta) escrever o romance conhecidíssimo Madame Pommery, “uma aula sobre São Paulo”. Até onde se sabe, Roberto Pompeu, Moacyr Piza e Hilário Tácito dialogam entre si no sobrenome em comum (Toledo), mas não se avizinham no parentesco (mas vá saber).

Os muitos nomes, as muitas coisas

No período narrado por Toledo desfila uma série de eventos históricos e personalidades diversas, muitas das quais se tornariam nomes de ruas. Vemos eventos sinistros como a gripe espanhola e a aparição de nomes importantes na saúde pública do país como Emílio Ribas, Vital Brasil e Adolfo Lutz, a Revolução de 1932 e o surgimento da Semana de Arte Moderna.

Esta última entra para a história imprimindo nomes como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Anita Malfatti (descoberta em 1917), Menotti del Picchia, Vitor Brecheret (1920), Juó Bananére (Alexandre Ribeiro Marcondes Machado), o carioca radicado em Sampa Di Cavalcanti, o maranhense Graça Aranha, que entra como medalhão da semana de Arte Moderna de São Paulo (embora “de modernista não tivesse nada”), o intelectual da aristocracia paulistana Paulo Prado, Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral (que não participou da Semana de Arte Moderna, porque estava em Paris) etc.

A vertigem está presente na chegada do navio japonês Kasato Maru em Santos (1908) – que faria surgir o Bairro da Liberdade em Sampa – na aglomeração de sonhos e realizações dos italianos, alemães, árabes, no prenúncio dos arranha-céus, na criação da USP (1934), na inauguração do Pacaembu (1940), na inauguração da TV Tupi (1950) etc.

Segundo Augusto Nunes, em sua resenha sobre o livro de Toledo, na revista Veja, o biógrafo da maior metrópole da América do Sul ainda trará à luz um terceiro volume. Pois que venha, e será bem-vindo. Afinal, São Paulo não cessa de produzir e reproduzir suas memórias.

Suas ruas estão cheias de história, e, embora ela se modifique a cada segundo, com novas fachadas de prédios, estabelecimentos que fecham e no lugar abrem outros com novas tendências, a cidade tem um DNA acessível, dentro do qual está o registro da passagem do tempo e de tudo que ela viveu. São Paulo é um organismo vivíssimo, e por isso, ainda hoje, pulsa como um espaço em transformação.

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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Avesso sentido, o novo livro de Maria Teresa Hellmeister Fornaciari


Maria Teresa Hellmeister Fornaciari é uma escritora tranquila, no que diz respeito à produção. Em 2000, ela apareceu com o livro de poemas Tambores e violinos, e depois partiu para a prosa, publicando a coletânea de contos Encontros e des-encontros, em 2005.

Dez anos depois, ela volta à literatura com seu segundo livro de contos, com um título polifônico, Avesso sentido (11 Editora, 112 páginas, R$ 38), em que avesso, sendo o lado contrário das coisas, pode atrair a ambiguidade da palavra sentido, que tanto pode ser o particípio do verbo sentir, quanto o substantivo querendo dizer orientação, significado, capacidade de sentir ou tantas outras acepções registradas nos dicionários e uso frequente na vida vivida.

O novo livro de  Fornaciari traz 26 contos divididos em cinco grupos, em que a autora parece mais uma vez brincar com a dicotomia dos mundos. “Os contos vieram à tona aos poucos e convergiram, coincidentemente, para esse eixo de sentidos e de sensações que me atraiam e que me faziam, muitas vezes, anotar uma palavra ou uma ideia em lugares ou momentos nada convencionais”, diz ela no release de divulgação do livro.

Avesso Sentido sai pela 11 Editora, pequena casa editorial independente localizada em Jaú, interior paulista. A obra pode ser adquirida pelo site da editora (www.11editora.com.br).

Maria Teresa Hellmeister Fornaciari mora em São Paulo e atualmente trabalha com oficina de escrita para crianças e adolescentes, além de ministrar cursos de aperfeiçoamento de redação para adultos. É mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, tendo trabalhado por mais de 30 anos como professora de Língua e Literatura Brasileira e Portuguesa, sempre incentivando a leitura e a escrita.


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sexta-feira, 17 de julho de 2015

Wifredo Lam no MON - Curitiba


Artista cubano Wilfredo Lam em foto-montagem publicada no site Afropunk.com


Entre as diversas mostras em cartaz no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, agora em julho, a do Wifredo Lam (1902-1982) me chamou a atenção, não por ser uma obra toda marcada pelo surrealismo e o cubismo, flertando o tempo todo com Picasso, havendo inclusive uma imensa foto do pintor com seu mestre, mas pelo sincretismo que nos arrebata. A mistura dos credos entre o cristianismo, o imaginário chinês e as religiões afros são sensacionais.

Lam é negro e chinês ao mesmo tempo. Seu cabelo afro e seus olhos orientais são imaginados na configuração da sua obra, antes mesmo de lermos seu nome ou vermos sua figura. Há dragões e pretos velhos recortados pela geometria cubista dos quadros. Adorei conhecer esse artista cubano. 

Artes visuais não são minha praia, infelizmente (se é que tenho alguma), mas tenho aprendido tanto com esse lance de espaço e textura, e sobretudo com a ideia de narrativas no interior do quadro, quando não uma alegoria inteira por meio do jogo de luzes, linhas e espaços que flerta com meu imaginário, que acabo vislumbrando a história da arte e as grandes narrativas, os grandes mitos, os discursos antropológicos e psicológicos das formas.

Tenho aprendido tanto com isso nos últimos anos que já faz parte da técnica de mover espaços e redesenhar caminhos com as palavras em meus textos. Achei que à medida que eu fosse envelhecendo, eu fosse desistindo das letras, parando de ler, aceitando a morte da palavra dentro de mim. Mas tudo isso está vivaço. Tudo isso é vida, é o universo dançando e me conduzindo na dança da existência.

Infelizmente, um passeio pela mostra de um artista não é suficiente para quase nada. Eu teria de ver Lam muito mais vezes. Mas posso complementar essa visita com outras visitas a outros artistas, ler livros, ver filmes, e continuar a jornada da vida e da arte. Cada um, em sua inteireza de consciência, escolhe o modo como quer exercitar sua existência. Escolhi passear no bosque das artes, já que não posso viver dentro dele.

Lam reavivou isso de algum modo, inclusive porque me fez lembrar de um escritor cubano respeitável esteticamente, com uma narrativa que não faz concessão a ninguém, nem mesmo no nome, Severo Sarduy (1937 - 1993), na novela De donde son los cantantes (onde pretos, brancos e orientais se misturam de modo incrível), que me levou à canção popular cubana, à dança, à cultura cubana, e me deixou um pouco mais conhecedor desse povo tão rico.


Se de um lado Cabrera Infante (1929 - 2005) me apresentou ao cheiro, à sensualidade e à vida cubana de modo geral, Sarduy me envolveu na mistura de cores e significados que é esta mesma cultura. Lam pareceu-me tudo isso, ou pelo menos me levou a tudo isso. Estou vivo. Viva Cuba. Cuba livre. Cuba Libre! Tintim!

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Violência e fé

Há um fosso imenso entre pensar - e sentir - que matar um homem, sob qualquer circunstância, é um mal e não matar ninguém. Da mesma forma, existe uma tremenda lonjura entre acreditar em Deus e se sentir bom, achar que vai para o céu, e não desejar matar ou ferir, insultar, quem comunga outra fé. Podemos ir além da premissa sartreana, retroceder o grau dessa violência e dizer que ferir alguém, não importa o motivo, também é fazer o mal.

As ressalvas para acidentes e legítimas defesas são da involuntariedade e da vontade e não do ato em si. Neste sentido, há quem se contente em desejar o mal a quem não comunga a mesma fé. E há quem sinta a necessidade orgânica de praticar o mal, e para tanto, arranja um jeito de conciliar a consciência do mal à mensagem religiosa que professa.

Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, divulgados em reportagem da Folha de S. Paulo, no dia 27 de junho, a cada três dias o Disque 100 recebe uma denúncia de intolerância religiosa. As religiões mais discriminadas são as de matrizes africanas, como umbanda e candomblé. Das 504 queixas de violência registradas entre 2011 e 2014, 75 vítimas eram de fés afros. Esse tipo de perseguição é notório, inclusive em discursos inflamados de certos pastores em programas de TV na calada da noite.

O curioso é que a segunda corrente de vítimas é de evangélicos, donos de 58 denúncias registradas. Se a mostragem não permite reflexões profundas, por falta de cruzamentos do tipo quem maltrata membros das religiões afros e quem maltrata os evangélicos, pelo menos aponta para o coração da imbecilidade humana, da gratuidade, da maldade, da violência que corre em nossas veias, fatores para os quais temos de nos chamar a atenção sempre.

Quem comete esse tipo de violência - como as pessoas que apedrejaram uma garota praticante do candomblé no Rio de Janeiro, no dia 14 de junho - não faz profunda reflexão de si mesmo sem usar a muleta daquilo que acha que é a verdade. Não mergulha em si mesmo porque sabe que encontrará no fundo da consciência um monstro calado, e à espreita, pronto para agir ao primeiro comando, alimentado por restos ancestrais de animalidade, sem resquícios de outra linguagem que não seja a da intolerância e do ódio.

Esse tipo de comportamento é fruto da falta absoluta de compreensão da alteridade, aliada à falta absoluta de respeito ao outro, de reconhecimento do direito à existência do outro. Não é que o sujeito vê o outro praticando o mal e quer corrigir o mal, é que ele acha, em sua cabeça doentia e má, que a maneira de o outro exercer sua fé, por ser diferente da dele, é por si mesma intolerável.

Recuso-me em acreditar que a fé que fortalece a alma, que nos impulsiona para a vida, com vigor e vontade de viver, que nos enche de dignidade, é a força motriz dessa violência contra o outro.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal O Popular, 04/07/2015)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Wolverine

Wolverine é um dos mais emblemáticos personagens da série em quadrinhos X-Men, da Marvel. Quando o cinema começou a saga desses heróis, em 2000, o único que funcionou, mostrando-se em sua grandeza, foi ele (a atuação de Hugh Jackman reforçou o carisma do personagem, sem dúvida). Os outros se curvaram à sua sombra. Protagonista solo de dois filmes, X-Men Origens: Wolverine e Wolverine – Imortal, já tem outra sequência em produção.

Wolverine é um ícone dessas figuras imortais que não são deuses e que veem a imortalidade como maldição. Personagem angustiado e revoltado, ciente de nossa miséria, ele carrega para sempre a clareza da desgraça humana. Todos os outros X-Men podem morrer, ou estão envelhecendo aos pouquinhos, até que um dia só restará uma carcaça mutante definhada. Wolverine, não. Com capacidade regenerativa absurdamente desenvolvida pela mutação genética, suas células estacionaram na dimensão do eterno.

É o personagem mais trágico dos X-Men, o mais dionisíaco e por isso mesmo o que mais faz sucesso entre os fãs. Talvez porque tente amar. Apesar dos percalços, quer sentir o coração pulsando. Em Wolverine - Imortal, ele aparece em sua microtragédia, de modo inverso, repetindo o velho refrão poético que fala do sonho dentro de um sonho ("dream within a dream"), tendo pesadelos dentro de um pesadelo.

A verdade é que nosso herói não pode amar ninguém, porque todos que ama morrem. Não pode dormir com alguém, porque acorda no meio da noite com as afiadas garras de metal armadas e matando quem está do seu lado. Foi assim que feriu Jean (a Fênix), mutante poderosa e a mulher que ele amava. Seu pesadelo agora é sonhar com essa cena, em que vê a amada ao seu lado na cama e diz: "Não vou mais te ferir". Serenamente, ela diz: "É tarde demais." Ele olha e vê sua garra enfiada no ventre dela. Mais uma vez, desperta atordoado.

A morte é uma espécie de buraco negro móvel, que sempre ronda nossas sombras até que um dia acaba nos abocanhando de vez. É um emaranhado de fios delicados em meio à maçaroca da vida. Neste sentido, os atributos construídos para um sujeito que sofre de imortalidade nos ensinam sobre o caráter da vida que passa.

A imortalidade é uma quimera paradoxal, é apenas um modo de se referir à extensão indefinida de um tempo que vai além do tempo dos outros. Todo mundo morre, até os deuses. Há incontáveis maneiras de morrer, e nem sempre é uma maneira honrosa. O suicídio, para muitas culturas, é um modo terrível e ultrajante. Wolverine não quer morrer assim. É um herói. Mas se lança à procura da morte, sem encontrar uma força capaz de lhe tirar a vida.

O resultado dessa equação é a angústia de ser um herói imortal. Todo herói põe sua vida em risco para salvar o outro. Wolverine faz isso também. Mas todo herói tem uma fraqueza que, se descoberta, é sua ruína. Não Wolverine.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal O Popular, 27/06/2015)

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segunda-feira, 22 de junho de 2015

Proust e os novos bárbaros

Romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido é um legado da humanidade não só pelos procedimentos inovadores nas técnicas da narrativa, mas também pelo peso com que o autor arrasta o século 19 francês e seu lastro, no comportamento, na moda, na história da arte, na política, na genealogia, até o começo ebulitivo do século 20. Segundo Walter Benjamin, “somente Proust fez do século 19 um século para memorialistas.”

Em O Caminho de Guermantes, terceiro tomo do romance de Proust, o narrador puxa a árvore genealógica dos Guermantes, mostrando o filamento secular de uma elite arraigada na história da França, deixando nas entrelinhas um argumento para historiadores, de como as sociedades e o comando do destino humano mudam. A premissa é a seguinte: quando o vento da história passa (o sopro do tempo sob a ação dos homens, dos desejos e da vontade de poder), ajuste-se aos fatos, aprenda a lê-los, ou será varrido.

Oriane, a duquesa de Guermantes, por exemplo, “alta, com seu elevado penteado de cabelos louros e leves”, de olhos azuis, é elite. Ela provém de uma família no topo da nobreza francesa há mil anos. Mas os franceses e povos adjacentes nunca foram representados pelo louro do cabelo. Esses fenótipos estão ligados aos germânicos, que um dia foram elementos estranhos na sociedade de escol do grande Império Romano, incluindo a França.

Em Sodoma e Gomorra, quarto tomo de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel, o narrador, cita trechos em que um personagem, o príncipe real da Suécia, chamou de bávara a princesa de Guermantes, Marie, prima de Oriane. Ela não gostou da observação e respondeu melindrada: “Monsieur, não sou mais do que uma princesa francesa.” Naquela ocasião, ser loiro dos olhos azuis já era um sinal positivo diante da opinião pública, mas não para quem conhecia bem sua história de berço.

O príncipe, marido de Marie, “fazia a esposa sentar à esquerda quando passeavam de carro, porque era de sangue menos bom, embora real como o dele”, e ela mesma era chamada de princesa de Guermantes-Baviera, ou seja, da Bavária, região do alto alemão, representante direta dos godos, que até o século 4 eram tidos como grupos inferiores, disputando em filas uma vaga para adentrar o Império Romano.

Segundo o historiador italiano Alessandro Barbero, em O Dia dos Bárbaros: 9 de Agosto de 378, godos eram os germanos que viviam além dos rios Danúbio e Reno. “Eram altos e tinham cabelos louros ou ruivos, características negativas aos olhos dos romanos”, que eram “morenos e de baixa estatura. Ser alto e louro, portanto, era sinal evidente de inferioridade, de pobreza, de barbárie.”

A elite não é burra e sabe excluir. Não aceita se misturar. Nega até quando pode, nas relações e no percurso histórico, intromissões de qualquer gênero. A mistura sempre vem e muda tudo, mas à força. Como vem ocorrendo agora com os imigrantes africanos na Europa, os novos bárbaros.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 20/06/2015)

domingo, 14 de junho de 2015

Quem não ama é um simples fantasma

O amor é vário, mas deve se dividir em duas grandes categorias: o amor que se sente e o amor de que se fala. O primeiro, embora possa ser irradiante, poderoso e profundo (a depender de quem sente), é íntimo, pessoal e intransferível. O segundo é literário ou filosófico, está nos conceitos, vive no interior das palavras, nos textos, na poesia, na prosa, no fundamento estético, e é vasto.

Sempre que falamos eu te amo, corremos o risco de o outro entender o que dizemos como uma literatura particular. Do mesmo modo, o outro também corre o risco de ser tocado pelo próprio amor que sente no momento que dizemos eu te amo, quando na verdade dizemos apenas uma expressão meramente literária.

Pode parecer bobagem, ou complexo, mas isso só ocorre porque o amor mesmo é um paradoxo, tanto da moral (na subjetividade do homem), quanto da linguagem. Neste segundo sentido é que vemos poemas de amor se definirem no bojo das contradições, como em Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, para ficar no viés extraordinário da poesia brasileira.

Vinicius deixou versos como o Soneto do Amor Total: “Amo-te afim, de um calmo amor prestante/ E te amo além, presente na saudade/ Amo-te, enfim, com grande liberdade/ Dentro da eternidade e a cada instante.” Drummond escreveu coisas como as Sem Razões do Amor: “Amor é primo da morte,/ e da morte vencedor,/ por mais que o matem (e matam)/ a cada instante de amor.”

Tudo isso é literatura. Há uma infinidade de livros que analisam e comentam o assunto, como Do amor, de Stendhal, História do Amor no Ocidente, de Denis de Rougemont, passando por A Heresia Perfeita, de Stephen O’Shea, com a tese de que os cátaros inventaram o amor livre lá no século 13. Não é à toa que se diz que o amor de que se fala exerceu, e exerce, uma influência demasiada sobre o amor que se sente.

Na filosofia, o amor é objeto de interesse desde os gregos. Em todo caso, não muito distante de nós, um filósofo russo francófono, Vladimir Jankélévitch, debate o significado da moral e seus elementos no livro O Paradoxo da Moral, em que diz que o amor dá maleabilidade ao ser, mas em uma cadeia de paradoxos dentro da qual o homem precisa se equilibrar.

Por usar a lógica para explicar a moral como o principal problema filosófico existencialista, o livro de Jankélévitch é complexo, mas traz uma musicalidade ímpar. Pode ser lido como quem toca uma sinfonia de sentidos, em que o amor é emparedado pela lógica e se salva pelas contradições.

Em suas observações sobre o amor, vemos refletida a poesia de Vinicius e de Drummond. “O amor infinito, com sua abnegação infinita, tem necessariamente como sujeito um ser finito.” Eis o sofrimento. Ou: “Para amar é preciso ser, mas para ser é preciso, antes de tudo, amar: pois quem não ama é um simples fantasma.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 13 de junho de 2015)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Sobre dores e talvez delícias

Os romances do escritor americano Philip Roth sempre apresentaram personagens vigorosos, intensos, com os quais o autor trouxe à tona uma América cheia de dores e traumas, umas almas feridas, replenas de desejos e taras. Nas tramas da meia idade rumo ao envelhecimento, juntou-se a isso um medo eterno do câncer.

A temática da sua obra é um corpo cintilante carregado de sexo, incesto, condição judaica, política americana, sociedade americana, os medos, os delírios, os fracassos. Toda a literatura de Roth é um convite para um banquete literário em que está posta à mesa uma variedade de textos e citações.

Suas narrativas apontam perspectivas plurais, abordando vários pontos de vistas, oferecendo sempre um ou mais segredos absconsos na personalidade humana. Nessa pluralidade também está o tema da velhice, principalmente em dois grandes romances, um em cada lado dos dois de seus principais narradores, David Kepesh e Nathan Zuckermann, respectivamente, Animal Agonizante e Fantasma Sai de Cena. O corpo e o espírito no corpo decadente, “rebelião orgânica na qual o corpo se levanta contra o idoso.”

Em Fantasma Sai de Cena, Nathan Zuckermann, famoso escritor judeu narrador de vários dos romances de Roth, aparece com 71 anos, recém-curado de um câncer de próstata. A cura lhe rendeu uma incontinência urinária que o faz usar fraldas geriátricas. Havia se afastado de Nova York e se isolado no interior por mais de dez anos. Volta para consultar um urologista e acaba conhecendo mulheres e homens mais jovens do que ele, entre os quais está Jamie, de 30 anos, bonita e inteligente, com um sexy appeal extraordinário.

Por causa dela e por um fantasma do passado, a mulher de seu ídolo da juventude a quem desejou silenciosamente e agora está velha como ele, curando-se de um câncer, como ele o fizera, decide regressar a Nova York por um tempo. Nesse romance, Roth quer falar da velhice e das consequências do corpo envelhecido, mas quer falar também da contemporaneidade, da urgência simultânea da vida, do conflito de gerações, em dois níveis: velhice contra juventude e novos escritores contra o cânone - o cânone que cada geração cria.

Por causa da velhice, incompatível com a celeridade das coisas, Zuckermann faz uma espécie de descrição das impossibilidades, não pela carência material ou intelectual, mas pela passagem do tempo e a decadência física, que é quando se olha para todos os lados, inclusive para trás, e não se vê nada além de um imenso vazio, impossível de atravessar.

Philip Roth é um professor. Mais que um mestre dos desejos, é um tutor de espíritos que se interessam pela vida, que a acompanham pela luz da estética, das grandes lições dadas por uma inteligência superior. No meio da vida, se eu tiver a dádiva (e a missão) de envelhecer, continuarei tendo com este homem conversas sobre dores e talvez delícias.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 30 de maio de 2015)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Vocês entenderam errado

A sociedade brasileira é permeada pela ideia de que um negro deve ouvir, e até rir, das piadas racistas que lhe são contadas. Se não gostar e reclamar do escárnio, sua atitude é tida como fruto da má educação. “Reage porque é grosseiro, não tem senso de humor.” E é uma ideia aceita por todos que se sentem no direito de fazer piadinhas dessa natureza (semelhante àquela história de Brás Cubas na infância, que monta no menino negro e faz dele seu cavalo selado, dando-lhe chicotadas enquanto o cavalga no amplo espaço da Casa Grande, repreendendo o negrinho quando este reclama, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis).

Histórias como estas, registradas na ficção ou em fatos reais contemporâneos, são inúmeras. O caso mais recente é o do vídeo publicado pelo integrante da seleção brasileira de Ginástica Artística, Arthur Nory Mariano, em que aparece ele e mais dois zoando o colega negro Ângelo Assumpção, que reagiu timidamente. “Saquinho de supermercado é branco, o de lixo é preto. (...) Celular, quando funciona, sua tela é branca, quando estraga ...”

A observação em si não seria nada, mas há um contexto cujo cerne é a cor da pele do rapaz. Neste caso, a analogia das cores ultrapassa a configuração da realidade das coisas e atinge a consciência negra, não só na cor da pele, mas na sua condição humana, tanto histórica (negros na escravidão, considerados animais ou mercadorias com as quais se pode fazer qualquer coisa, dos quais pode-se dizer qualquer coisa, ou negros como cidadãos de segunda categoria nos dias de hoje) quanto subjetiva (o que sinto quando entendo a dimensão dessa investida contra mim). Logo, atinge a todos os negros conscientes dessa condição.

Arthur achou que a circunstância do fato era pouco e publicou o vídeo na internet para compartilhar a façanha. Diante dos protestos, já tinha sua desculpa: “Vocês entenderam errado.” Quando isso ocorre na esfera privada, geralmente o assunto morre ali, e o negro que vá lamber suas feridas pelos cantos. Mas quando os insultos em forma de brincadeira passam para a esfera pública, de modo geral, usa-se o recurso do cinismo como defesa. A frase “vocês entenderam errado” é apenas mais uma que entra para o rol do descaramento.

O que ocorreu entre esses jovens atletas não os coloca como racistas de fato, mas repetiram um discurso racista, que no fim das contas dá no mesmo, cometeram uma injúria racial. Há quem diga que injúria racial é só falta de educação (tal qual uma possível reação da vítima contra ela), que um Brasil mais bem educado deixaria de apresentá-la. Mas, na verdade, o arquétipo racista foi construído na camada mais bem educada da sociedade, influenciando o restante. Não é difícil perceber isso. Os garotos podem não ser racistas, mas souberam manejar bem facas e sabres do preconceito racial.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 23/05/2015)