Há um fosso imenso entre pensar - e sentir - que matar um homem, sob
qualquer circunstância, é um mal e não matar ninguém. Da mesma
forma, existe uma tremenda lonjura entre acreditar em Deus e se
sentir bom, achar que vai para o céu, e não desejar matar ou ferir,
insultar, quem comunga outra fé. Podemos ir além da premissa
sartreana, retroceder o grau dessa violência e dizer que ferir
alguém, não importa o motivo, também é fazer o mal.
As ressalvas para acidentes e legítimas defesas são da
involuntariedade e da vontade e não do ato em si. Neste sentido, há
quem se contente em desejar o mal a quem não comunga a mesma fé. E
há quem sinta a necessidade orgânica de praticar o mal, e para
tanto, arranja um jeito de conciliar a consciência do mal à
mensagem religiosa que professa.
Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, divulgados em reportagem da Folha de S. Paulo, no
dia 27 de junho, a cada três dias o Disque 100 recebe uma denúncia
de intolerância religiosa. As religiões mais discriminadas são as
de matrizes africanas, como umbanda e candomblé. Das 504 queixas de
violência registradas entre 2011 e 2014, 75 vítimas eram de fés
afros. Esse tipo de perseguição é notório, inclusive em discursos
inflamados de certos pastores em programas de TV na calada da noite.
O curioso é que a segunda corrente de vítimas é de evangélicos,
donos de 58 denúncias registradas. Se a mostragem não permite
reflexões profundas, por falta de cruzamentos do tipo quem maltrata
membros das religiões afros e quem maltrata os evangélicos, pelo
menos aponta para o coração da imbecilidade humana, da gratuidade,
da maldade, da violência que corre em nossas veias, fatores para os
quais temos de nos chamar a atenção sempre.
Quem comete esse tipo de violência - como as pessoas que apedrejaram
uma garota praticante do candomblé no Rio de Janeiro, no dia 14 de
junho - não faz profunda reflexão de si mesmo sem usar a muleta
daquilo que acha que é a verdade. Não mergulha em si mesmo porque
sabe que encontrará no fundo da consciência um monstro calado, e à
espreita, pronto para agir ao primeiro comando, alimentado por restos
ancestrais de animalidade, sem resquícios de outra linguagem que não
seja a da intolerância e do ódio.
Esse tipo de comportamento é fruto da falta absoluta de compreensão
da alteridade, aliada à falta absoluta de respeito ao outro, de
reconhecimento do direito à existência do outro. Não é que o
sujeito vê o outro praticando o mal e quer corrigir o mal, é que
ele acha, em sua cabeça doentia e má, que a maneira de o outro
exercer sua fé, por ser diferente da dele, é por si mesma
intolerável.
Recuso-me em acreditar que a fé que fortalece a alma, que nos
impulsiona para a vida, com vigor e vontade de viver, que nos enche
de dignidade, é a força motriz dessa violência contra o outro.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal O Popular,
04/07/2015)
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