segunda-feira, 6 de julho de 2015

Violência e fé

Há um fosso imenso entre pensar - e sentir - que matar um homem, sob qualquer circunstância, é um mal e não matar ninguém. Da mesma forma, existe uma tremenda lonjura entre acreditar em Deus e se sentir bom, achar que vai para o céu, e não desejar matar ou ferir, insultar, quem comunga outra fé. Podemos ir além da premissa sartreana, retroceder o grau dessa violência e dizer que ferir alguém, não importa o motivo, também é fazer o mal.

As ressalvas para acidentes e legítimas defesas são da involuntariedade e da vontade e não do ato em si. Neste sentido, há quem se contente em desejar o mal a quem não comunga a mesma fé. E há quem sinta a necessidade orgânica de praticar o mal, e para tanto, arranja um jeito de conciliar a consciência do mal à mensagem religiosa que professa.

Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, divulgados em reportagem da Folha de S. Paulo, no dia 27 de junho, a cada três dias o Disque 100 recebe uma denúncia de intolerância religiosa. As religiões mais discriminadas são as de matrizes africanas, como umbanda e candomblé. Das 504 queixas de violência registradas entre 2011 e 2014, 75 vítimas eram de fés afros. Esse tipo de perseguição é notório, inclusive em discursos inflamados de certos pastores em programas de TV na calada da noite.

O curioso é que a segunda corrente de vítimas é de evangélicos, donos de 58 denúncias registradas. Se a mostragem não permite reflexões profundas, por falta de cruzamentos do tipo quem maltrata membros das religiões afros e quem maltrata os evangélicos, pelo menos aponta para o coração da imbecilidade humana, da gratuidade, da maldade, da violência que corre em nossas veias, fatores para os quais temos de nos chamar a atenção sempre.

Quem comete esse tipo de violência - como as pessoas que apedrejaram uma garota praticante do candomblé no Rio de Janeiro, no dia 14 de junho - não faz profunda reflexão de si mesmo sem usar a muleta daquilo que acha que é a verdade. Não mergulha em si mesmo porque sabe que encontrará no fundo da consciência um monstro calado, e à espreita, pronto para agir ao primeiro comando, alimentado por restos ancestrais de animalidade, sem resquícios de outra linguagem que não seja a da intolerância e do ódio.

Esse tipo de comportamento é fruto da falta absoluta de compreensão da alteridade, aliada à falta absoluta de respeito ao outro, de reconhecimento do direito à existência do outro. Não é que o sujeito vê o outro praticando o mal e quer corrigir o mal, é que ele acha, em sua cabeça doentia e má, que a maneira de o outro exercer sua fé, por ser diferente da dele, é por si mesma intolerável.

Recuso-me em acreditar que a fé que fortalece a alma, que nos impulsiona para a vida, com vigor e vontade de viver, que nos enche de dignidade, é a força motriz dessa violência contra o outro.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente no jornal O Popular, 04/07/2015)

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