Coração das trevas, o livro mais famoso de Joseph Conrad, traz toda uma complexidade de espaços, um emaranhado de origens, ao falar de um marinheiro que navegou nas águas turbulentas do Rio Congo e se deparou com a enigmática figura do senhor Kurtz.
A narrativa tem traços interessantes. Cinco tripulantes estão num navio de exploração, na foz do Rio Tâmisa, esperando a noite passar para entrar no mar aberto e seguir viagem rumo à África. Apenas um deles, o velho Charlie Marlow, já estivera naquele continente quando jovem, e tinha uma história sombria para contar.
Quem narra a trama é um dos jovens, mas sua narração é completamente engolida pela narração de Marlow, como a noite em que se encontravam seria engolida pela noite da história do veterano. Ele havia servido a uma expedição que subira o Congo. “E o rio estava lá, fascinante e mortal como uma serpente”, cheio de curvas e silêncio, e em cada uma delas a morte espreitava.
Marlow caíra numa cilada do tio que o embarcara para se encontrar com o senhor Kurtz, um traficante de marfim que liderava um séquito de africanos que o adoravam. Ao longo do rio, em um “mundo estranho de plantas, água e silêncio”, Marlow testemunha negros sendo espancados e mortos, vive a experiência do medo de ser atacado por jacarés e hipopótamos, ou ser capturado por alguma tribo violenta.
As duas narrativas vão ecoando no espaço da noite, a noite dos marinheiros ouvindo Marlow, a noite de Marlow num barco rio cima em plena selva, cheia de medo e horror, com ameaças circundantes sob a água, ao redor do barco, lá fora na floresta e dentro da embarcação onde canibais à espreita podiam atacar a qualquer momento.
Essa atmosfera de frio na espinha, de medo de tudo que pode nos espreitar à noite, medo da figura de Kurtz que mesmo ausente assombrava, cala fundo no imaginário de todo leitor, como calou fundo na memória do próprio Conrad, que quando jovem fez viagens para a África e assimilou esse medo ancestral, transpondo-o para seu romance.
A trama do livro é mais do que isso, mas essa atmosfera cativou Michael Herr, quando cobria a Guerra do Vietnã em 1968, e cativou Francis Ford Coppola, quando fez Apocalypse nowem 1979. Essa atmosfera é uma das últimas coisas de que se fala do senhor Kurtz em Coração das trevas, trazida pelo vento na boca da noite, e é o eco que carrega o capitão Willard no filme de Coppola, após matar o coronel Kurtz: “O horror! O horror!”
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 27 de maio, no Jornal Opção, de Goiânia)
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