domingo, 13 de maio de 2018

O preço da sujeição – o negro que não quer ser negro

Publicado em 1990 pela editora Dandara, numa edição pouco profissional, sem paginação,
registro de expediente, nem revisão, romance de Ramatis Jacino prima pela qualidade narrativa

Toda identidade é uma construção. Acontece que algumas identidades são mais sólidas que outras, em função das conquistas, do poder que as sustenta, das forças sociais que as mantêm no centro ao longo do tempo, dos séculos ou dos milênios. Já outras ainda lutam para se afirmarem, para dizer que são, e lutam contra discursos poderosos, arraigados e com know-how sistêmico de negá-las enquanto se constroem. 

A dialética desse embate é um tanto mais complexa porque para toda identidade há que se considerar a diferença. E quando a diferença é vilipendiada, quando o que é diferente é visto como veículo da desgraça e do atraso, alguns, que são visivelmente diferentes, querem ser iguais, buscando o lado oposto ao de sua própria identidade.

É neste contexto que perpetua o racismo no Brasil, cujo discurso, cínico e escamoteado nos estratos da miséria, quer fazer crer que não somos racistas. Esse discurso naturaliza todo tipo de violência contra os negros, e torna-se natural, portanto, achar que ser negro é carregar com legitimidade o fardo da miséria humana, é ser obrigado a sentir na pele e na alma todos os níveis de violência e discriminação.

Ouvem-se então frases de ordem como “vive assim porque quer. Quem manda ser rebelde? Quem manda andar como maloqueiro? Deveria pelo menos amaciar esse cabelo. Deveria ser mais educado.” E aí, os incautos não aguentam. 

Os incautos querem ser iguais aos donos desse discurso, e o reproduzem. Fazem mais do que isso. Ao negarem sua própria identidade, passam a detestar a diferença e a perseguir os seus. 

A esse comportamento dá-se o nome de sujeição emocional, termo usado pela psicanalista Neusa Santos Souza, no livro Tornar-se negro. E a sujeição tem um preço, porque ao negarem sua origem, os incautos jamais serão aceitos do outro lado como um igual. 

Viu-se branco

Como a literatura consegue entrar nessas frinchas sensíveis e projetar de lá uma luz reveladora, um romance importante que retrata essa questão de identidade e sujeição emocional é O justiceiro (Editora Dandara, 1990), de Ramatis Jacino, 60 anos, escritor gaúcho radicado em São Paulo desde 1968.

Jacino publicou alguns livros, mas este é seu único romance. O justiceiro narra a história de Nazareno, vulgo Ganso, que aos 14 anos, cansado de apanhar do pai a rabo de tatu no sertão nordestino, possivelmente de Alagoas, depois de testemunhar o abuso sexual do pai, bêbado, contra a própria filha, das surras que a mãe levava, roubou o dinheiro do velho e fugiu para o Sul (leia-se São Paulo).

Ganso sonhava ser rico em São Paulo, queria conviver com as pessoas brancas e inteligentes da cidade grande. Para ele, o Sul era o fim de todos os sofrimentos. Mas o que conseguiu foi morar na Vila Mixirica e trabalhar numa fábrica onde todos os colegas eram parecidos com ele, pobres, negros ou mestiços, com sotaque nordestino. Evitava-os.

Ele queria ser importante, ter prestígio e poder, e para isso teria de ser igual aos sulistas em posição de comando, ou seja, ser branco. Rui, o gerente de produção da fábrica, tornou-se o modelo de Ganso. “A ideia de estar no lugar do seu Rui brincou na sua mente e se viu branco.”

Para atingir o topo, Ganso aproveitou um momento de greve, tendo sido assediado por Rui, traiu os colegas e virou chefe de almoxarifado. Ele estava namorando Marta, meio a contragosto, porque era bonita, mas era preta como ele. 

Quando Marta descobriu sua alcaguetagem, terminou o namoro em público, aos berros: “Você é a vergonha da raça. Você não é negro. Você é um branco pintado de preto.” Em vez de se sentir ofendido, Ganso gostou do que ouviu. “Aquilo para ele não havia sido uma ofensa e sim um elogio.” E ainda comentou: “Essa neguinha tá é com bronca, porque não quero mais comê-la.”

Grupo de extermínio

Ganso seguiu sua trajetória torta. Trabalhou 25 anos nessa fábrica e se aposentou ainda jovem, aos 43 anos. Ao longo desse tempo, perdeu qualquer aproximação com os seus e não havia ganhado nenhum prestígio entre os membros de comando, nem era visto como um branco, obviamente. 

Havia, isso, sim, conseguido se casar com uma mulher branca. “Loira, alta, filha de italianos, estudara até o colegial. Era feia e gorda, não exatamente como as das revistas, mas era do Sul.” Seus filhos, no entanto, não nasceram brancos como ele esperava. Saíram à sua cara, pretinhos, com o mesmo tamanho do corpo e da cabeça,  “até o sotaque os malditos negrinhos herdaram.”

O ódio contra negros e nordestinos só aumentava em Ganso. Já estava pagando o preço pela sujeição emocional. A derrocada veio quando se aposentou e montou uma mercearia na Vila Mixirica. Achou que estava sendo incentivado a matar uns ladrões que haviam assaltado seu estabelecimento, e os assassinou. 

Foi acobertado pela polícia que criou um grupo de extermínio. Policiais se juntaram a ele para matar, mas só seu nome aparecia como justiceiro, enquanto o esquadrão arrecadava dinheiro dos comerciantes, de cuja quantia 70% eram do delegado que encobria os assassinatos e de um apresentador de programa de rádio sensacionalista que influenciava a opinião pública.

O justiceiro consegue imprimir a tensão psicológica da sujeição. Sua narrativa é feita com frases curtas, parágrafos curtos, procurando ir direto ao assunto, na tradição impetrada por Graciliano Ramos, criando imagens claras, dando seu recado e indo embora.

Ganso pagou o preço emocional da sujeição. Perdeu a identidade e o resto de caráter; mergulhou no abismo da descaracterização. No final, matava sem distinção. As vítimas já eram mais de 200, segundo ele. Ao ser acusado de matar garotos inocentes que vinham de um baile na madrugada, ele disse: “Puta de uns neguinhos, com chapeuzinho na cara e gingando que nem malandro. Tão pedindo pra levar chumbo.”

“Depois, não é porque tem carteira assinada”, continua Ganso, “estuda em tal escola, que quer dizer que o cara não é malaco.” Seu discurso ecoa nas diversas falas distribuídas nas redes sociais de hoje. “Aqueles caras não mereciam viver mesmo. Os crioulos com cara de vagabundo, com jeito de vagabundo, só podiam ser vagabundos.” (...) Um bando de crioulos! Iam ser o quê, se não fossem bandidos?”

Senzala moral

A narrativa é entrecortada com discurso direito e discurso indireto livre. É um misto de romance confessional com uma pegada de documentário, um experimentalismo de linguagem, como se os personagens estivessem dando depoimento a um filme ou sendo entrevistados por um jornalista.

Na última parte, a memória do assassino, já preso, se confunde com seus delírios megalomaníacos e sua vontade de matar negros, todos bandidos. O discurso indireto livre surge com força para sintetizar uma mentalidade que existe até hoje. 

“Percebeu então que estes bandidos tinham as mesmas caras dos colegas da fábrica. (...) Não apenas se pareciam com os colegas. Eram as mesmas pessoas. Será que seus antigos colegas haviam se tornado bandidos? Ou os bandidos, na verdade, sempre haviam sido seus colegas sem que soubesse?”

A sujeição emocional sempre existiu. Desde a abolição da escravatura, os que se mantêm presos a uma espécie de senzala moral continuam contribuindo com a manutenção do racismo à brasileira, cínico, sorrateiro, misturado à ignorância e amarrado a uma estrutura eficaz e convincente, que sempre cobra seu preço. E há sempre gente disposta a pagá-lo.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 13 de maio de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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