quarta-feira, 30 de maio de 2018

Apocalypse Now, filho de dois livros e de uma realidade brutal

Em Apocallypse now, as ações dos personagens vacilam entre o drama e o riso, em alguns
momentos, em outros, o drama dá lugar à insanidade e à violência, e o riso já não existe mais

O capitão Willard (Martin Sheen) está deitado num quarto de hotel, perturbado, cigarro entre os dedos, esperando ordens para alguma missão. Ele está em Saigon. Ele está na guerra. Mas seu estado de desolação não será nada, comparado ao que virá. 

Apocalypse now, de 1979, é um filme assombroso sobre a transformação do homem na guerra, um clássico do cinema baseado na história de Michael Herr, que esteve no Vietnã cobrindo o conflito entre 1967 e 1968, quando publicou uma reportagem na revista Esquire que virou o livro Despachos do front.

O livro de Herr causou um impacto profundo nos americanos, inclusive em Francis Ford Coppola, que escreveu o roteiro e dirigiu o filme. Muita gente só se lembra de citar Coração das trevas, de Joseph Conrad, como base de Apocalypse now, mas o fulcro, o núcleo de ambientação física e bélica é mesmo a história de Herr, a única citada nos créditos. 

A estética e o impacto psicológico ganham uma fusão interessante com o romance de Conrad. É verdade. Mas essa fusão também está em Despachos do front. Herr era um grande leitor, e fez questão de apontar suas leituras no livro que escreveu. Fez questão de mostrar que sua narrativa se aproximava de algum modo, pela sensação de medo, terror e loucura, da de Conrad. 

Não é à toa que ele, Herr, refere-se a certo personagem da guerra como alguém que, de tão pirado e assustado, mais parecia um Artaud “voltando de alguma viagem ao coração das trevas.”

Coppola embarcou nessa viagem e fez um dos filmes de guerra mais emblemáticos da história do cinema, um filme tão marcante quanto Nascido para matar (1987), de Stanley Kubrick, baseado no livro homônimo de Gustav Hasford, também de 1968, com roteiro adaptado, veja você, por Michael Herr.

Vibe psicodélica

Tudo em Apocalypse now reverbera como uma imensa vibe psicodélica de violência e morte, entrecortada pelos assomos do riso e do prazer. Recheado de estrelas ascendentes da época – como Martin Sheen, Harrison Ford, Robert Duval, Dennis Hopper e Marlon Brando, a figura responsável pelas cenas mais sombrias e reveladoras –, o filme mantém uma escalada vertiginosa de assombro.

Entregue à angústia e às drogas num quarto de hotel, o capitão Willard recebe uma missão de primeira classe de subir o Rio Nung num barco-patrulha da Marinha para encontrar o coronel Kurtz do outro lado da fronteira, no Camboja, e aniquilá-lo. Este era um desertor que havia enlouquecido e liderava um grupo de fanáticos que matavam e morriam por ele.

Kurtz tem o nome do personagem de Coração das trevas, um traficante de marfim que também havia enlouquecido na selva africana, às margens do Rio Congo, e mantinha um séquito que o idolatravam. Charlie Marlow, o narrador do romance de Conrad, subira rio acima numa expedição inglesa quando era jovem e na velhice narrou sua história de encantamento e medo, rumo ao encontro que nunca chegava do senhor Kurtz.

Já Willard não só encontraria com seu Kurtz como viveria a mais amarga das experiências de loucura e morte, metaforizando toda a psicologia da guerra. As conexões com o livro de Conrad no filme de Coppola são o rio, a noite, a enigmática figura de Kurtz e o fascínio do narrador por ele.

Se não há crocodilos e hipopótamos em Apocalypse now, há corpos e homens dispostos a matar. A influência de Kurtz sobre a multidão de pessoas na selva cambojana é a de Kurtz sobre o Russo e seu séquito na selva africana. 

“O homem tinha preenchido sua vida, ocupado seus pensamentos, tomado suas emoções.” Esta fala é de Marlow, sobre o efeito do traficante nos seus seguidores. Ela é a tradução para o que ocorria com o Kurtz de Coppola, também ensandecido. O coronel Kurtz enlouqueceu num tipo de loucura que não perde a razão, e por isso é convincente, e por isso, muitos o seguem.

A tripulação do barco em que está Willard é composta de garotos, “roqueiros com um pé na cova”. Não sabem para aonde estão indo, nem para quê estão indo rio acima, metáfora dos recrutas da guerra do Vietnã. “A merda era tanta no Vietnã que você precisava de asas para ficar fora dela”, diz Willard.

Clássico indispensável

A câmera de Coppola está sempre encostada no objeto, ou quase sempre, construindo uma espécie de intimidade, convidando você a entrar no mundo da guerra, e quando você está lá dentro ela te mostra o horror sem método, o horror em estado puro. 

O ambiente é insano. As ações dos personagens vacilam entre o drama e o riso, em alguns momentos. Em outros, o drama dá lugar à insanidade e à violência, e o riso já não existe mais. Em uma cena, o recruta recebe uma fita com a gravação da mãe falando das novidades, e quando ele está ouvindo é alvejado e morre, enquanto a fita continua rodando.

O filme toma uma proporção gigantesca na parte final, quando entra em cena o coronel Kurtz (Marlon Brando), pela atuação minimalista de Brando e pelos planos escolhidos para focá-lo, e o jogo de luz, iluminando metade de seu rosto, enquanto a outra metade se une ao resto do cenário na escuridão ou na penumbra. 

Quando Willard chega ao local, vê escrito numa falésia "Apocallypse Now". Corpos boiando na água ou dependurados em árvores às margens do rio fazem parte da paisagem e, portanto, da proposta estética da narrativa. 

Corpos caindo de coqueiros debruçados sobre o rio, cabeças cuidadosamente ajeitadas em cepos e mais cadáveres em decúbito dorsal, como se descansassem, são expostos como num pesadelo de Salvador Dali. 

O rosto mascarado com pintura tribal de Kurtz deixa o branco dos olhos gritar uma sensação de horror e loucura. A morte e a violência, representados pelos corpos espalhados, são uma espécie de ornamento macabro que todo mundo vê, inclusive as crianças. E tudo flui como o rio e a noite.

Filmado nas Filipinas, o filme há muito tempo é um clássico indispensável. Passados quase 40 anos, Apocalypse now ainda nos ensina que a guerra é uma espécie de acontecimento fora de lugar e de hora. Quase tudo é uma grande piração. Nada acontece como se espera, nem a morte.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 27 de maio de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia).

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