quarta-feira, 2 de maio de 2018

“A Lua Vem da Ásia”: as aventuras de um tresloucado lúcido

Campos de Carvalho (1916-1998), mineiro de Uberaba, publicou uma obra pequena em números, 
foram só quatro livros que couberam num único volume de 378 páginas, mas grande em significação

Os loucos ou encantam ou assustam. Geralmente os que encantam são os loucos feitos de linguagem, donos de discursos incríveis que espalham no ar da sensatez o colorido da pretensão ou os dribles geniais em torno da lógica.

“A Lua Vem da Ásia”, de Campos de Carvalho (1916-1998), romance publicado em 1956, aborda essa temática com brilhantismo, narrada por um sujeito completamente fora de si, enfiado num mundo em que há tantos outros, seus iguais, tão encantadoramente alheios ao mundo compartilhado pelos que se ousam dizer donos da razão.

Em 2016, por ocasião dos 60 anos da publicação original e do centenário de nascimento do autor, a editora Autêntica pôs nas livrarias uma nova edição de “A Lua Vem da Ásia”. Nele, um homem chamado Astrogildo, se dispõe a contar sua história. As frases sem paralelismo são desencadeadas de modo alucinado, e o cenário também.

À medida que vai falando, vai exprimindo paisagens, algumas tristes, outras engraçadas, todas fora do prumo, que vão clareando sua trajetória. Suas frases ressoam como poemas sem métrica. “Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.”

Quando sua mãe vai visitá-lo em um hotel de luxo, onde ele diz estar hospedado, ele não a reconhece, e com pena da senhora diante de si dizendo ser sua mãe, finge ser seu filho, que de fato era. O título da novela é uma alusão ao estado de alma de Astrogildo, cujo nome também o leva para o mesmo lugar. 

Sensível, ele usa o conhecimento que tem, junto ao disparate de seu ponto de vista, para escrever aforismas, e um deles também faz referência ao itinerário da lua, que não deixa de ser a errância de sua própria jornada. “À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.” Ou seja, de fato, a lua nasce no Oriente, mas está fora de órbita, é uma lua exorbitante, como o espírito de Astrogildo.

Acredita ter um irmão gêmeo morto dentro dele, que um dia renascerá. E argumenta com lucidez sua ideia maluca. “Se há os que acreditam em metempsicose, eu tenho o direito de acreditar nessa dualidade de meu ser, ou antes, nessa existência oculta de meu irmão gêmeo dentro de mim e que um dia brotará de meu corpo como um dente de siso retardado.”

Caminhos que se bifurcam

Sua narração se bifurca entre estar confinado em um lugar por mais de 20 anos e ter passeado pelo mundo inteiro, como um Cândido cartográfico e imaginativo, sempre realizando uma glória e em seguida caindo em desgraça.

Essa bifurcação também se dá com o significado da narrativa, cujo conteúdo é ao mesmo tempo tresloucado e lúcido. O enredo é uma tênue linha entre o disparate e o drama, como a vida é um fio fino entre a insanidade e a razão. E assim o leitor segue o périplo narrativo de Astrogildo, percebendo que ele se aproxima cada vez mais de um desfecho terrível.

A princípio, ele está nesse hotel cinco estrelas, junto a um deputado, um representante do Imperador da Rússia, que não sabe russo, um potentado hindu, que se chama José, um professor de matemática, “que se diz nas horas vagas sobrinho torto de Napoleão Bonaparte”, um “famoso cientista anônimo”, um papa disfarçado, que trabalha no projeto de criar um novo Deus, “coisa nunca vista - que lhe permita, um dia, emancipar-se economicamente”, e por aí vai.

Astrogildo segue narrando sua história, contando os descalabros que só podem estar em sua mente. “O rio que ouço a distância continua a caminhar para a direita e só com a chegada da primavera é que ele se volta para a esquerda e se torna realmente belo.” 

Olhando por outro ponto de vista, no entanto, tudo faz sentido. “Sou um oásis cercado de deserto por todos os lados”, diz ele. “Jamais, porém, me farão dizer A quando é B ou J que eu deva dizer, nem me crucificarão impunemente, sem que eu lhes responda com um riso de escárnio na boca ensanguentada.”

Outra realidade

Do hotel de paredes brancas e iguais, com “um pátio cercado de altos muros (para evitar ataques aéreos)”, onde recebe um “soro da juventude que o Governo manda aplicar gratuitamente em todos os hóspedes”, ele passa a estar num hotel mal-assombrado, e depois num campo de concentração, “com tortura e tudo”, onde o que lhe aplicam é “soro da verdade”. 

O leitor vai acompanhando esse périplo, e vê que Astrogildo está num hotel simples e suspeito, para em seguida entender a realidade que já não se pode esconder. “Vendo o sol que nasce pela vulva da janela entreaberta (...), lembro-me de súbito de que passei a noite em claro, devido aos uivos da louca sob os meus pés, e de que necessito mudar-me para um hospício mais sossegado.” Mas a essa altura, outra realidade, mais pungente já terá sido deflagrada.

“A Lua Vem da Ásia” é sobre o estado de espírito de um homem que ao ser levado para um manicômio sente-se à vontade, mas depois, resultado de tudo que cerceia a liberdade, sente o desconforto da privação, sente a opressão do confinamento, sente a dor da violência e do descaso, sente o sufocamento da prisão do corpo e da alma, e o fim de tudo.

Para a literatura, é uma estética fundada na transgressão moral e da linguagem. Para a psiquiatria, é um discurso antimanicomial. Para o leitor, é uma deliciosa prosa erigida na labilidade emocional, uma obra-prima da literatura brasileira.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 29/04/2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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