segunda-feira, 9 de abril de 2018

A estética da demolição de Juliano Pessanha

                                                                                         Foto: Kaique Hector
Juliano Garcia Pessanha: “Alguns psicanalistas, etnólogos, cientistas naturais e filósofos
começam a narrar coisas mais interessantes que os escritores, e de melhor maneira”

Os colegas escritores podem até chamar Juliano Garcia Pessanha de traidor do movimento (não sei se chegam a tanto), por fazer uma literatura que nega a literatura (não faz mais sentido em si; todo mundo está repetindo fórmulas; “quem hoje habita o espaço literário necessariamente já se move no fracasso”), mas não podem acusá-lo de falta de originalidade. 

Pessanha, paulistano de 56 anos, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), faz mais que autoficção, moda na contemporaneidade. Ele se entrega totalmente a um tipo de escrita que está colada em seu corpo. 

Quando ele caminha pelas ruas de São Paulo, alguém que conhece sua obra pode dizer “aí vai uma linguagem, carregando uma mensagem que se pretende para muitos, mas que é para poucos". Em seu livro Recusa do não-lugar (Ubu Editora, 2018, 192 páginas), Pessanha nos convida a uma conversa invulgar sobre a existência, um misto de filosofia e literatura, num texto que pode ser chamado de autobiografia filosófico-literária.

Seu livro é catalogado pela editora como “ficção brasileira, filosofia, ensaio e memórias”. É tudo isso mesmo. Está no território da literatura contemporânea, onde nada se define por inteiro, tudo flutua, nada se confirma, tudo se estranha e se questiona.

Dentro e fora

O cerne da questão de Recusa do não-lugar é o conceito de esferologia, de Peter Sloterdijk, e o modo como o filósofo alemão explica a relação do sujeito com o mundo, tendo este sujeito nascido para fora, sem um eu, ou nascido para dentro, constituído de um eu. 

O que vai determinar essa condição de nascido para fora ou para dentro é o primeiro agente de contato do bebê com o mundo, a mãe, e a partir dela os outros seres ao redor, que Pessanha, via Sloterdijk, se recusa a dizer que são objetos nesse primeiro approach, uma vez que um assimila o outro em caráter de cooperação na construção da subjetividade. 

Ou seja, para o bebê, aquilo com o qual se relaciona nesse processo é um outro que também é um eu, numa relação que Sloterdijk chamou de ser-um-no-outro. Essas esferas de relações vão dando liga ao desenvolvimento do sujeito que nasce para dentro. 

Ele vai saindo de uma esfera e entrando noutra maior até ganhar o mundo. Se há calor e companheirismo da mãe, tudo começa a fazer sentido, e a interação com os outros passa a ser de aliança. Mas quem nasce para fora não tem essa cooperação, aliena-se do mundo (torna-se estrangeiro na própria casa). A única coisa que passa a ter é a linguagem no vazio. 

Pessanha diz que nasceu assim, para fora, e afirma que Nietzsche e Heidegger também. Eles escreveram toda sua filosofia convidando para fora quem nasceu para dentro, o que é um equívoco sem igual, diz Pessanha. Com este livro, ele procura trilhar uma nova maneira de olhar para o mundo, sob os auspícios de Sloterdijk, e recusa o lugar que lhe fora reservado ao nascer, o não-lugar.

É um texto denso, mas renovador do pensamento, ou pelo menos um texto que busca a instalação de novos paradigmas estéticos. Pessanha quer pensadores e poetas como leitores. Quer dizer, talvez queira qualquer um disposto a passear pela relva de sua escrita, mas só os familiarizados com o poético e o filosófico são capazes de sentir o cheiro desse raro cultivo.

Nietzsche, o forasteiro

Recusa do não-lugar não tem uma tessitura construída na limpeza narrativa. Veja aonde chegamos. A literatura do século 20 já era considerada misturada demais no confronto com o clássico. Mas Pessanha pega pedaços de sua tese de doutorado, justamente sobre Sloterdijk, e cola junto à narração ficcional, põe pitadas de aforismos livres e relatos psiquiátricos supostamente autobiográficos.

No primeiro capítulo, “O mundo estranhado: esboço de filosofia fisionômica”, Nietzsche é o narrador. O autor quer mostrar o equívoco de se aceitar o estranhamento do mundo quando se nasce para fora, achando que é uma espécie de profeta. JP pegou o pensamento de Nietzsche pelo chifre e o dominou de tal modo, e o levou adiante, que Nietzsche não só reconhece como agradece. 

Para Nietzsche, sua irmã e sua mãe, tanto quanto a universidade cafetinaram sua obra. Mas JP a resgata e a leva além. “Para me compreender é preciso mostrar que se tem sangue”, diz o narrador bigodudo. E JP tem sangue. Afinal, “JP levou o próprio corpo para o campo de batalha.” É irônico ver Nietzsche compondo a biografia de JP. pois de certa forma, o biografado é sempre mais importante que o biógrafo.

Se o primeiro parágrafo ridiculariza Nietzsche, a partir do segundo, a filosofia “séria” (Sloterdijk) entra em campo para falar dos novos conceitos e defender a ideia de que nascer para dentro, e ter amigos, gozar o mundo da tecnoesfera capitalista, trabalhar, pagar as contas, é melhor do que sofrer fora da bolha, comendo o pão que o diabo amassou e se achando um profeta.

O texto de Pessanha, nos elementos ficcionais, é marcado pela paródia, ironia, auto-referência, numa reescritura que retoma de outro modo algo que já foi dito. É um ensinamento do próprio Nietzsche sobre a modernidade. Daí a ironia se acentuar ainda mais, como se o pensador alemão estivesse sendo ferido com a própria arma, uma vez que é modificado, sob a alegação de que está sendo melhorado.

Sloterdijk, uma espécie de mãe

O autor dramatiza sua relação com o mundo de modo tocante. Usa a própria experiência da relação conturbada com a mãe, que o internava em clínicas psiquiátricas (pouco importa se é ficção ou realidade, para o autor dá no mesmo), para ilustrar o sofrimento de quem nasce para fora. E explora o pensamento filosófico de Sloterdijk, que agora também é seu, para verificar o outro lado. 

“Todos esses conceitos foram legítima e verdadeiramente plantados em meu próprio ser como sendo meus. (...) Penso que, nesse caso, o plágio está autorizado e podemos considerar tais obras como nossas também, pois a recriamos em nossas leituras”, diz o autor.

Mais do que uma influência sem angústia nenhuma, é o efeito máximo do renascimento no mundo para dentro, em que o sujeito encontra o ambiente de aliança e consegue angariar “todo o mobiliário de uma alma”, ou pelo menos pegar de empréstimo, como um veículo ou uma senha que o permite acessar o espaço interior onde há um eu. Sloterdijk foi a mãe que Pessanha não teve.

Recusa do não-lugar é uma inegável capacidade de síntese, porque o autor põe no texto toda a filosofia de Sloterdijk, dialogando ou confrontando com a massa da tradição filosófica e psicanalítica do século 20.

Neste sentido, não é uma leitura resenhística que vai esgotar a mina funda desse livro. Ele requer seguidas leituras. Quem gosta de literatura, e tem a consciência de que seus paradigmas estão em processo de transição, Recusa do não-lugar poder ser uma luz.


Serviço


Livro: Recusa do Não-Lugar
Autor: Juliano Garcia Pessanha
Editora: Ubu Editora (2018, 192 páginas)
Preço: R$ 42,00


(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado em 8 de abril de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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