Umberto Eco (1932-2016): “A partir de uma pergunta tola, se podem produzir muitas respostas sábias” |
Ao discursar na aceitação do título de Doutor Honoris Causa em Comunicação
e Cultura na Universidade de Turim, em 2015, o escritor e semiólogo Umberto Eco
(1932-2016) disse o seguinte: “As mídias sociais deram o direito à fala a
legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de
vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a
boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio
Nobel.”
Desde que os idiotas descobriram a frase, ela não parou de ser repetida...
na internet. Eco era um grande frasista, mas acima de tudo, um sujeito antenado
com as minúcias da cultura e do comportamento, com os mínimos relevos da mente,
faculdade que lhe permitiu falar sobre a mais alta filosofia e sobre a
banalidade da existência. Por isso, não encanta esta observação tola feita por
um homem sábio, em algum momento de despeito, por estar sendo atacado na mata
cega da web.
Frases mais dialéticas já foram ditas antes de Eco abrir a boca pela
primeira vez para chorar. “É difícil compreender os raciocínios de um prensador
profundo, mas também é difícil de compreender os de um idiota.” O caráter
ambivalente da frase de John Ruskin (1919-1900) é interessante porque é uma
espécie de bumerangue sem freio, pois no mesmo momento em que é usada contra
alguém, este alguém pode devolvê-la a seu agressor.
Há ainda outra frase que joga luz sobre a de Umberto Eco, e que em vez de
bumerangue é reflexiva, proferida por um amigo do mestre, antes de este lançar
ao mar sua garrafa. “Ninguém
chama impunemente o outro de imbecil sem se dar conta de que a burrice alheia é
nada menos do que um espelho que nos reflete. Um espelho permanente, preciso e
fiel.”
Ela foi dita por Jean-Claude
Carrière, e registrada em um livro escrito a quatro mãos, as do autor de O nome da rosa e as de Carrière, roteirista
de Godard e Luis Buñuel. A obra em questão é Não contem com o fim do livro. A frase clarearia o lobo frontal de
Eco, onde se pode enxergar uma mínima mancha de estupidez pairando sobre um
momento de bobeira.
Origem do ódio
Mais interessante que
o Eco da imbecilidade é o Eco capaz de elucidar fatos e hábitos. Um ator e poeta
americano, negro, chamado Theo Wilson, relatou na internet mais do que a
experiência do racismo que sofria, relatou um acompanhamento do discurso
racista, ao se fazer passar por branco. O que leu de racistas falando sobre os
negros em geral, logo, também sobre ele, foi chocante.
Wilson então se
pergunta: “Por que sou odiado por aquilo que não posso evitar ser? Não
interessa o que fazemos, sempre haverá muita gente que nos odeia. Como podem
ficar tão bravos se apenas sobrevivemos ao que nos fizeram passar?”
A observação de Wilson
é deste mês, embora seu acompanhamento tenha começado em 2015. Umberto Eco
morreu em 2016, mas suas frases e observações sobre a vida valem por afirmações
como esta que se segue e que responde o questionamento de Wilson.
“Algumas pessoas
acabam odiando alguém porque lhe fizeram mal - veja bem, não odeio alguém
porque alguém me fez mal, mas porque eu lhe fiz mal e depois o odeio. Mas por
quê? Porque tento esquecer que eu sou o culpado e tento me convencer de que
ele merecia meu ódio.”
No livro A história da feiura, o semiólogo
organiza uma série de figuras que demonstram o olhar do homem pelo viés da
repugnância, isto é, pelo ponto de vista daquilo que não era visto como
agradável ou bonito.
Como nunca houve
tratados da feiura, textos e teses sobre o elemento do feio, Eco levantou desde
a Antiguidade as representações em escultura, telas e descrições do que era
feio. Mas faz uma sábia ressalva sobre o conceito de beleza, confrontando-a com
aquilo que a supostamente nega.
“Perguntem a um sapo
o que é a beleza, o verdadeiro belo, o to
kalón. Ele responderá que consiste em sua fêmea, com seus dois belos olhões
redondos que se destacam na cabeça pequena, a garganta larga e chata, o ventre
amarelo e o dorso escuro. Interroguem um negro da Guiné: o belo consiste para
ele na pele negra e oleosa, nos olhos enfossados, no nariz achatado.
Interroguem o diabo: dirá que o belo é um par de chifres, quatro patas em
garras e um rabo.”
Diga-se de passagem
que em relação ao diabo – Eco não disse por ser óbvio, mas as obviedades são
como o ovo de Colombo –, trata-se de uma noção cristã, sobretudo, com todo uma
carga conceitual vinda não do diabo em si, e sim do modo como se imagina. Além
disso, os conceitos invertidos da beleza foram retirados do ponto de vista do
homem ocidental branco. Mas não deixa de ser uma visão dialética do mundo.
Níveis de leitura
A frase de Eco sobre
os imbecis é antidialética, e roda o mundo por uma razão simples, porque é uma
arma mental pronta, acabada. É mais ou menos como aquelas charadas sofisticadas
que as pessoas decoram e pedem para um desavisado responder. É sempre usada por
quem é avesso aos livros.
“Livros não são um
meio de fazer outra pessoa pensar em nosso lugar; ao contrário, são máquinas
que suscitam outros pensamentos. Só depois da invenção da escrita, foi possível
escrever uma obra-prima de memória espontânea como ‘Em Busca do Tempo Perdido’”,
diz Eco.
Umberto Eco falando
de qualquer coisa é melhor do que sua frase mais citada. Aliás, variedade de
assuntos em sua obra é o que não falta. Apaixonado pela Idade Média, escreveu
um livro só para apontar os elementos estéticos desse período, Arte e beleza na estética medieval,
além dos aclamados A vertigem das listas
e História da beleza.
Estudioso da
filosofia e da semiologia, deixou livros importantes nesse campo como Semiótica e filosofia da linguagem, A estrutura ausente, O signo dos três, Interpretação e superinterpretação e o famoso Obra aberta. De igual modo, apaixonado pela modernidade e pela
cultura pop, ampliou seu campo de atuação ao ocupar a literatura com o romance O nome da rosa, em que faz citações de
referências variadas, de Aristóteles a Snoopy, embora poucos as vejam, porque a
trama por si só dá conta do recado num nível primário. Quem quiser, e puder,
que vá adentrando o espesso bosque.
Em 2006, Eco concedeu
uma entrevista ao jornal brasileiro Folha
de S. Paulo, e disse que seus romances têm pelo menos dois níveis de
leitura, e às vezes mais. Ele já havia feito esta análise em vários lugares,
como no livro Lector in fabula e Sobre a literatura. Mas nesta
entrevista, Eco faz uma demonstração interessante sobre os níveis de leitura de
O nome da rosa:
“Se eu começo
dizendo: ‘Era uma noite escura e tempestuosa’, o leitor ‘ingênuo’, que não
percebe a referência a Snoopy, usufruirá o texto num nível elementar, mas tudo
bem. Depois há o leitor de segundo nível, que percebe a referência, a citação,
o jogo, e, portanto, sabe que ali há sobretudo uma ironia. Nesse ponto, eu poderia
acrescentar um terceiro nível, já que, no mês passado, descobri que a frase é
o incipit de um romance de Bulwer-Lytton [1803-73], autor de ‘Os Últimos Dias
de Pompeia’. E é óbvio que Snoopy também o estava citando.”
Se as mídias sociais
deram voz aos imbecis, pouco importa. Afinal, pode-se combater o problema, mas
só apagando a humanidade para demovê-lo de todo, como na história do suicida
que se mata não porque quer morrer, mas porque deseja erradicar algo de si que o
incomoda.
(Gilberto G. Pereira.
Publicado originalmente em 25 de março de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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