Livro
de Vera Tietzmann é um diálogo com o leitor sobre o modo de ver o mundo dos gregos antigos, que nos ensinaram a pensar e sentir, e ainda pode fazê-lo |
Ler é colher o fruto
das palavras que já foram plantadas por pessoas sagazes. Obviamente, há
plantações de ervas daninhas. Por isso mesmo, ler também é escolher antes de
colher. Vera Tietzmann, escritora, pesquisadora e professora aposentada da UFG,
soube ler desde pequena os mitos gregos, soube semear no terreno fértil da
cultura helênica seu lastro de conhecimento, e agora colhe o que plantou, mais
uma vez, dividindo com os leitores o resultado de anos e anos de dedicação à
leitura e ao ensino da literatura.
Em seu novo livro, Decifra-me ou te vevoro! – o mito grego na sala
de aula (Cânone Editorial, 2017, 224 páginas), a autora nos ensina a
reivindicar a parte que nos cabe do latifúndio grego. Ela parte da mitologia, apontando
seus elementos formadores de cultura, para chegar à literatura moderna e
contemporânea, abrindo-a e mostrando que por dentro está cheia de referências
significativas desse legado.
Decifra-me ou te devoro! é um diálogo com o leitor sobre
o modo de ver o mundo dos gregos antigos, que nos ensinaram a pensar e a sentir.
Como a própria autora diz, não é um tratado para especialistas, mas um “convite
ao treinamento do olhar do leitor”, seja ele um professor, seja qualquer pessoa
interessada em se familiarizar com um dos fundamentos da civilização ocidental.
Embora não sejamos
considerados Ocidente, na acepção do termo pelos acadêmicos do mundo todo,
também herdamos o legado helênico. De algum modo, também somos gregos. Pelo
menos um pouquinho, porque somos mais que isso. Somos herdeiros de uma vasta
gama de matrizes culturais, bebemos na fonte preciosa de vários povos, como a
autora deixa claro em sua apresentação.
Somos um pouquinho
gregos quando pensamos sistematicamente e usamos a lógica aristotélica, quando reagimos
diante da beleza, cujos sentimentos estéticos misturamos com nossas raízes
africanas, indígenas, europeias e orientais.
Mas o assunto do
livro de Vera são os gregos e seus mitos, “esse fascinante emaranhado de raízes
que nos ligam a um passado remoto e que, contudo, permanece atual”, diz a
autora. “Esse é o grande mistério do mito, ele se situa num tempo fora do tempo
e por isso mesmo permanece atual e instigante”, comenta.
Desse modo, até para
ir ao dentista somos gregos, quando nos referimos a alguma cárie no dente,
porque cárie são as Queres, e Queres são as filhas da Noite (Nix), monstros
alados que “despedaçam cadáveres e bebem o sangue dos mortos e feridos”, gênios
da podridão, segundo Junito de Sousa Brandão.
Serviço à cultura
Em seu livro, Vera Tietzmann
compartilha a experiência sensível de todo esse legado simbólico. Como recorte bibliográfico,
ela peneirou vários escritores e produções musicais, televisivas e
cinematográficas – quase todos voltados para o público jovem, mas não só –, nos
quais expõe as referências escondidas ou explícitas da cultura grega.
Ela cita livros de autores
como Ana Maria Machado, Marina Colasanti, Lygia Bojunga, Lygia Fagundes Telles,
Dora Ferreira da Silva, Moacyr Scliar, Monteiro Lobato, e uma infinidade de
outros nomes, principalmente brasileiros, para falar dos mitos de Apolo,
Dioniso, Esfinge, Édipo, Ariadne, Minotauro, Deméter, Perséfone, Dédalo, Ícaro,
Atena, Ulisses (Odisseu), Helena, Penélope, Afrodite, Eros, Ares, Poseidon etc,
de modo fluente.
E assim presta um
serviço à cultura humana. “Decifra-Me ou Te Devoro!” faz divulgação cultural e
de conscientização da importância da leitura. É um trabalho tão bom e profícuo
quanto os que se fazem nos EUA e na Europa, como os do britânico Richard Dawkins,
sobre a Teoria da Evolução, e os do americano Robert Darnton, sobre a história
da cultura.
Vera nos oferece sua
obra com erudição e preparo intelectual, ora com citações sutis, ora
escancarando o ícone. Ensina o leitor a ter “o olhar aberto às intenções
veladas do texto”.
O título do livro
refere-se ao édito “decifra-me ou te devoro”, fixado pela Esfinge de Tebas, monstro
dotado de asas, patas e caldas de leão, com rosto e seios de mulher (segundo
Junito de Sousa Brandão), que vigiava a entrada da cidade e exigia a todo
forasteiro que decifrasse um enigma. Caso contrário, o viajante não só não
entraria em Tebas como seria devorado.
Todo forasteiro era devorado.
Até que chegou Édipo, que morava em Atenas e havia sido alertado pelo oráculo
de que seu destino seria matar o pai e se casar com a mãe. Para não cumprir a
profecia, fugiu justamente para Tebas. Acontece que Édipo era filho de Laio e
Jocasta, rei e rainha de Tebas.
Seu pai já havia
mandado matá-lo quando bebê, por causa da mesma profecia. O encarregado de
sacrificar a criança teve pena e a entregou para um casal de viajantes. Deu no
que deu. À caminho para Tebas, Édipo se encontrou com um homem, os dois
discutiram e ele o matou.
Sem saber que havia
matado o pai, Édipo decifrou o enigma e entrou em Tebas aclamado pelos
cidadãos, recebendo como prêmio a mão da rainha Jocasta, viúva recente. Essa
história e as que a rodeiam estão na Trilogia Tebana, de Sófocles, e em
diversos capítulos da mitologia grega.
O uso da figura do enigma
por Vera Tietzmann certamente tem uma atualização do mito que deve passar pela
questão do poder do conhecimento, da importância da leitura. Neste caso, a
Esfinge deve ser a ignorância, o monstro que nos devora ano após ano sem que
tenhamos acesso a uma educação que valorize a capacidade de pensar e de
argumentar.
Tempo e origem
Dividido em quatro
partes, Decifra-me ou te devoro!
começa com a análise dos elementos de origem, tempo e espaço, sempre intertextualizando
literatura, cinema e TV. Para falar do tempo, a autora colhe a figura de dois
deuses representativos, o romano Jano e o helênico Cronos. O deus que tem duas
faces “voltadas para direções opostas” é Jano, que ao ver o que está trás e o
que está na frente domina de uma só vez passado e futuro.
O interessante dessa
proposta é justamente o ato de voltar ao mundo grego antigo por meio da
literatura, como se os livros fossem cápsulas do tempo comandadas por Juno e
Cronos, sincronizados pelos olhos do leitor que viaja sem sair do lugar.
Mas não é só isso. A
dupla face de Juno opera também na organização temporal das narrativas
modernas, segundo a autora, e “abre os olhos do leitor para o que é menos
evidente.” De fato, Vera demonstra as sutilezas temporais em prosas
contemporâneas, em que passado e presente, ou passado e futuro saem de uma
mesma fresta do interior da narrativa para ocupar os espaços devidos da trama.
Ela dá exemplos
significativos, como em Dom Casmurro,
de Machado de Assis, quando Bentinho, ao narrar seus sucessos e infortúnios no
triângulo que se forma entre ele, Capitu e Escobar, fala em “‘restaurar na
velhice a adolescência’”. A velhice de Bentinho narra a si mesma deparando-se
com sua jovialidade encantadora flertando com Capitu, tão belos e jovens e tão
atravessados pelo tempo.
Outro exemplo vem de
João Guimarães Rosa, que aproxima passado e futuro no título Manuelzão e Miguilim, da conhecida
trilogia Corpo de baile. No interior
do volume, as ordens se invertem, e a história que vem primeiro é sobre
Miguilim, ou seja Campo geral, e só
depois vem Uma estória de amor,
sobre Manuelzão.
Ao trocar as ordens
das referências temporais (menino e velho para velho e menino), Rosa cria uma
experiência cinética incrível, porque não só faz os corpos mudarem de posição
como numa dança, como também faz os tempos se cruzarem. Passado e futuro se
entreolham.
“Trocando os lugares
na capa e no sumário, o autor talvez nos estivesse dizendo obliquamente que o
menino e o velho se parecem, que cumprem papéis semelhantes na vida, que estão,
quem sabe, mais próximos de um estado de pureza e inocência do que o adulto em
fase produtiva”, diz Vera, quase saindo da Grécia e entrando na cultura
japonesa.
Aceno dialógico
A autora usa um
raciocínio sofisticado que permeia o uso estético e filosófico do tempo. Sobre
a questão temporal das narrativas, ela fala do tempo linear, cuja imagem é a da
viagem para frente até o infinito, e do tempo cósmico, circular, dentro do qual
estão os calendários, os relógios e o movimento da natureza e seus fenômenos.
Mas há também um terceiro
tempo, fruto da criação literária, diz a professora. Trata-se do tempo
psicológico, “cuja passagem é percebida subjetivamente pelo personagem, mais
lenta ou mais acelerada de acordo com suas vivências internas.”
Como exemplo dessa
consciência temporal, ela cita poetas e romancistas brasileiros como Rosa,
muito apropriadamente, em seu conto A
terceira margem do rio. Outros dois exemplos que poderiam ser dados, mas a
professora não o fez acertadamente porque seu quadro de referência é outro, são
Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust, e A montanha mágica, de
Thomas Mann.
Em A montanha mágica, por exemplo, Hans Castorp
está em uma casa de recuperação, nas montanhas de Davos, na década de 1920, na
Suíça, e o narrador entra na cabeça dele para especular sobre a subjetividade
do tempo. Mann inverte o senso comum sobre a temporalidade. O narrador discorda
que a novidade abrevia a passagem do tempo e que o tédio retarda seu fluxo. É o
contrário, diz ele.
Um fato novo com um
conteúdo rico que parece abreviar horas, dias e anos, nos dando a sensação de
que o tempo passou rápido, na verdade, “considerado sob o ponto de vista do
conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que
os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles
outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando”,
diz o narrador.
Obviamente, o
narrador se refere à sensação, à consciência da passagem do tempo. O tédio
neste caso é igual, sempre, deixando a mente sem pontos referenciais da
existência. O que ocorre é que “quando um dia é como todos, todos são como um
só.”
No contrapé do tédio,
quando algo importante acontece, cujo conteúdo é muito rico, mesmo que seja em
um dia, o sujeito vai aproveitar esse acontecimento durante um ano, com coisas
novas para descobrir dentro dele. Ou seja, é exatamente a matéria prima de Em busca do tempo perdido, um romance
fecundo e amplo, que bebeu muito na fonte grega e árabe para se armar como
ficção.
Essa interseção se
afasta um pouco do livro de Vera, mas não deixa de ser um aceno dialógico para
a autora. A questão do tempo é a questão da origem, como é a questão da
passagem e do fim. Quem quer viver bem precisa compreender isso, tanto quanto
quem quer criar narrativas ou entendê-las melhor.
A literatura salva
Vera cita o
pesquisador alemão Mircea Eliade, segundo o qual, “conhecer os mitos é aprender
o segredo da origem das coisas”. Nada melhor do que a literatura – tão próxima
da vida, como feixes de pensamento concreto da existência, e ao mesmo tempo tão
perto da filosofia e sua capacidade de abstrair – para nos fazer compreender os
substratos e a pulsão invisível do mundo dentro e fora de nós, para nos
iluminar.
A literatura,
portanto, diz a professora, “pode tornar-se uma chave de acesso aos
subterrâneos da mente, aos segredos do mundo, às explicações primeiras da vida.”
O livro de Vera é um grande sintetizador dos elementos essenciais da cultura
moderna do Ocidente.
Ela parte da Grécia e
vem arrastando os grandes pensadores que iluminaram o pensamento grego em diferentes
momentos, como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Eliade, clareando
as narrativas humanas com exemplos da literatura que podem oferecer ao leitor
tanto “um modelo a seguir como um alerta contra modelos nefastos”, diz ela.
Depois de compreender
a concepção do tempo e do espaço, de conscientizar-se da importância de se
recorrer às origens, porque é nelas que estão a força da mudança de rumo e do
senso de localização, o leitor está pronto para galgar novos degraus de
leitura. E aí, ele dá início à viagem mais interessante dentro do livro de
Vera, as duas partes seguintes que falam da busca de si mesmo e o encontro com
o outro.
O professor que ler Decifra-me ou te devoro! poderá ter um
cabedal intelectual sofisticado para trabalhar com seus alunos, tanto sobre
como se leem livros, observando o que há nas linhas e nas entrelinhas da
narrativa, quanto sobre como os leitores poderão ser capazes de entender que
sua própria vida é uma narrativa, e que nela, como nos livros, há um feixe de
elementos no tempo e no espaço que podem ser observados.
Essa consciência
daria ao leitor certo poder de ser o herói de si mesmo, apenas em certa medida,
pois ele também entenderia que há uma infinidade de outros elementos e
variáveis que não poderão ser observados a não ser pelo outro. Logo, lendo, entenderá
que para conhecer-se a si mesmo será preciso ouvir o outro. É uma tarefa árdua
e quase impossível nos dia de hoje, mas que é preciso tentar.
Neste sentido muito
específico da vida, só a literatura salva. Daí a importância de Decifra-me ou te devoro!, uma pequena Paideia
(o ideal de humanidade dos gregos), organizada para o novo cidadão tupiniquim. Um
dos modos de se fazer isso é exercitar a leitura crítica com auxílio do livro de
Vera, é ler os livros de ficção que a autora cita ao longo do texto e se
debruçar sobre as atividades sugeridas.
Luz e escuridão
O leitor vai se
familiarizando e aprendendo a descobrir na literatura os conceitos mitológicos de
narcisismo, identidade e diferença, o duplo (a figura do duplo evoca o encontro
consigo mesmo e o encontro com o outro, é a linha de fronteira), o outro, a androginia,
a metamorfose, os monstros (que puxam o tema do que há de mais primitivo em
nós).
Os monstros, por
exemplo, evocam o medo, “a emoção mais forte e mais antiga do homem”, diz
Howard Lovecraft, citado pela autora. “A espécie mais forte e mais antiga do
medo é o medo do desconhecido”, completa Lovecraft. Mas monstros também evocam
a ambivalência de nossa natureza, a humana e a animal, ou seja, “o lado luminoso
e o lado escuro do homem”, diz a autora.
Por que a literatura
trata desses temas? Porque eles estão dentro de nós. E o que têm a ver com a
Grécia? É que os gregos foram capazes de sistematizar esses arquétipos – essas sensações e sentimentos essenciais de
nossa condição humana – melhor do que ninguém. E tudo isso vem sendo
transmitido até os dias de hoje pela literatura, pela filosofia e pela ciência.
Os arquétipos nos
definem, mostram como sentimos o mundo, porque nascemos dentro desse caldeirão
de cultura. Quando começamos a organizar nossos sentimentos, quando começamos a
ter uma experiência do mundo, se recorrermos à literatura, teremos mais chances
de conhecer melhor nossas angústias e expectativas.
E se pudermos
compreender que essas angústias não são frutos apenas de nossa geração, mas substratos
primitivos que vêm de longe – experimentados e organizados pelos povos antigos
como os gregos, cujo legado que nos deixaram é o legado da mitologia, que se
expande para a filosofia e a literatura –, teremos consciência do que nos
envolve como seres humanos.
Esta é a mensagem de
Vera Tietzmann, em um belo e fundamental trabalho de diluição de cultura. Seu
livro também nos ensina que, no fim das contas, tudo está ligado à questão da
memória e da identidade.
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