Escultura
de Sócrates em Atenas, onde nasceu e morreu o filósofo: juízo é crisis; a filosofia se instala na crise do ser
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Há muitos livros sobre a origem das palavras, que às vezes oferecem uma
narrativa interessante. Deonísio da Silva, por exemplo, fez muito sucesso com A
vida íntima das palavras e De onde vêm as palavras. A origem
curiosa das palavras, de Márcio Bueno, e Com a língua de fora, do
jornalista Luiz Costa Pereira Junior, também são exemplos de relatos
fascinantes sobre etimologia.
Mas há também outros modos de se ir buscando o significado original e o
significado acumulativo dos vocábulos. Muitas vezes, basta consultarmos um bom
dicionário, como o Houaiss, para descobrirmos a origem etimológica com
certa dose de acerto e boa descrição. As obras sobre mitologia grega também têm
um acervo e tanto de significados, sem contar a imbatível internet, com alguns
cuidados para não se comprar gato por lebre.
O arsenal de palavras
terminadas em –ulo, prefixo de origem latina que indica o diminutivo, a redução
de tamanho de alguma coisa, é um deleite, como ósculo (de oris, boca, logo,
boca pequena, e por associação, beijinho), opúsculo (pequena obra), currículo
(pequeno atalho, porque vem do latim curru, que quer dizer correr, corrida,
carro, lugar onde se corre, caminho, logo, a carreira exposta em tamanho
reduzido, por isso mesmo, currículo em inglês é resume, ou résumé, como no
francês), músculo (lagarto pequeno) e crepúsculo (baixa definição de qualquer
coisa, inclusive da luz).
Furúnculo tem essa
mesma lógica, e uma descrição interessante. Vem do latim furis, ladrão, logo,
pequeno ladrão, denominação emprestada da botânica, segundo o Houaiss, que define o broto secundário
de uma videira como “ladrãozinho”, quando “se desenvolve a expensas dos ramos
principais, furtando-lhes a seiva”, a partir de um botão que nasce na
superfície do ramo principal.
Os artistas plásticos
devem gostar de flertar com a etimologia porque ela possibilita novas
perspectivas diante do tema escolhido. Uma palavra, cavada até seus registros
fósseis, pode se desdobrar em imagens magníficas para a compreensão da história
do pensamento e das artes.
Na filosofia, por
exemplo, a palavra juízo é muito importante. Quando descobrimos que juízo em
grego é crisis, e que este vocábulo também significa peneira, vislumbramos uma
olhar para o ofício de pensar filosoficamente com interesse renovado em sua
busca amorosa da verdade, mas sempre com uma inquietação, porque a filosofia se
instala na crise do ser. A busca pela verdade é sempre crítica. E, no fundo, ao
descobrir o caráter oscilante da verdade, o pensador verá que essa crise nunca
termina.
Outra palavra na
linha da filosofia da linguagem, por assim dizer, é estesia, que significa
capacidade de captar as coisas no mundo passando diretamente pelos sentidos, sem
mediação das palavras ou pelo uso da razão, a priori. Evidentemente, toda arte
se sistematiza, mas não exige de quem contempla uma erudição prévia, porque se
trata da contemplação da beleza enquanto categoria essencial da obra (nas suas
diversas vertentes como feio, cômico, trágico, sublime, grotesco etc.). Daí a
palavra estética, que define a arte.
O vocábulo anestesia também
vem de estesia, pela sua negação, pois quando aplicada em qualquer animal,
inclusive no homem, este perde um ou todos os sentidos por um tempo. Sinestesia
se instala nessa fileira etimológica, que é quando um sentido invade o outro,
como na expressão “a cor do som”, por exemplo, ou no título de um dos volumes
da autobiografia de Elias Canetti, Uma
luz no meu ouvido.
A etimologia é
fascinante por isso, porque revela segredos da língua, e garimpa os tesouros da
linguagem, escondidos pelas camadas do tempo, escamas de novos hábitos que vão
puxando o significado para outros rumos. Os hábitos são ventos que levam as
palavras para novas paisagens.
A fruta maracujá
esconde em sua anatomia um significado cristão, não pelo vocábulo indígena
moroku’ya, que no tupi talvez queira dizer “fruta cheirosa”, mas por outro nome
que a designa, “flor-da-paixão”, como “passionfruit”, em inglês, que, ao
contrário do que se possa imaginar, não tem a ver com amor ou sensualidade, mas
com a Paixão de Cristo. As flores do maracujá têm órgãos que remetem à coroa de
espinhos e aos cravos, instrumentos usados na crucificação de Jesus.
Os gregos encontraram
uma maneira muito significativa de explicar a duplicidade sexual em algumas pessoas,
chamando-as de hermafroditas. O nome em si tem uma composição simples e
significa filho de Hermes e de Afrodite. Mas a história recuperada em sua
arqueologia é que é fabulosa.
Para agradar a seu
filho mais engenhoso, o gênio do Olimpo, Hefesto (Vulcão em Latim), Zeus o
casou com Afrodite, a deusa do amor, bela e fogosa, que teve casos com muitos
deuses e mortais, traindo o forjador de mundos várias vezes. Uma dessas
traições foi com Hermes, com o qual teve um filho chamado Hermafrodito. O
garoto “era dotado de uma beleza tão grande como a de Narciso.”
Por onde andava,
Hermafrodito fazia as mulheres caírem de amor. Um dia, aos 15 anos, viajando
pela Ásia Menor, foi até um lago onde morava uma ninfa chamada Sálmacis, que
ficou completamente apaixonada por ele assim que o viu. O rapaz a repeliu e foi
tomar banho. Ela fingiu que havia se conformado.
“Mas quando Hermafrodito
se despiu e se lançou às águas do lago, Sálmacis o enlaçou fortemente e pediu
aos deuses que, para sempre, lhes unissem os dois corpos em um só. Os imortais
ouviram-lhe a súplica e, assim, surgiu um novo ser, de dupla natureza”, diz
Junito de Sousa Brandão, em seu livro “Mitologia
Grega, Vol. II”.
Anfitrião é outra
palavra interessante, cuja história tem um desfecho terrível, principalmente
para os defensores de Hera, guardiã do matrimônio e da lealdade. A etimologia do
vocábulo é incerta, apesar de o prefixo amphi (ambos os lados) ser conhecido do
português em palavras como anfíbio e anfiteatro. Talvez seja “aquele que ofende
em qualquer lugar”.
Em todo caso,
Anfitrião era rei de Tebas. Casou-se com Alcmena, mas antes da noite de
núpcias, estando à frente de uma guerra, longe de casa, sua mulher foi visitada
por Zeus, que queria fazer um filho que fosse herói na terra. Sabendo da
lealdade de Alcmena ao marido, Zeus não teve dúvida, travestiu-se de Anfitrião
em todos os pormenores, inclusive com a memória da guerra, citando todos os
detalhes das batalhas.
A palavra anfitrião,
que hoje significa “aquele que oferece e paga as despesas de uma festa”, ou “o
dono da casa, que recebe os convidados para qualquer evento”, veio do nome
próprio desse rei de Tebas, que foi registrada em várias peças de teatro, como
a de Plauto e de Molière, de onde a palavra ganhou vida nos salões de Paris. Mas
em Tebas (sempre Tebas), foi o rei traído por Zeus.
Junito de Sousa
Brandão, descreve bem a cena do enlace amoroso entre Zeus e Alcmena, do qual
nasceu Héracles (Hércules). “Foram três noites de um amor ardente, porque,
durante três dias, Apolo, por ordem do pai dos deuses e dos homens, deixou de
percorrer o céu com seu carro de chamas.”
(Gilberto G. Pereira.
Publicado originalmente em 18 de março de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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