domingo, 4 de março de 2018

Os detratores de Freud e a resistência da psicanálise

Sigmund Freud (1856-1939): as denúncias contra ele e a psicanálise vivem ocorrendo, e continuarão.
A água vai continuar batendo. Cabe à barreira ter pedra com decaimento de diamante
 
  

Sigmund Freud (1856-1939) é grandioso demais para ser derrubado com uma funda. Mas o número de baixinhos que se aventuram na empreitada é tão grande quanto a turba de defensores do gênio austríaco. Freud é imenso o bastante para não precisar de escoras (além das que usou para erigir seu nome). O grande barato da vida, no entanto, é olhar sem tomar partido para essa miscelânea de soldados a postos em fronts opostos.

Agora mesmo, saiu mais um livro detratando a pessoa do fundador da psicanálise, Freud: the making of an illusion (“Freud: a fabricação de uma ilusão”, em tradução livre), de Frederick Crews, 85 anos, crítico literário americano e professor emérito da Universidade da Califórnia.

Stefano Pupe, o rapaz que resenhou o livro no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, em 25 de fevereiro, vendeu a publicação como sendo uma possível pá de cal sobre os ossos do mestre dos sonhos. Mas não é verdade. Pupe, de 32 anos, que é doutor em neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, argumenta que se a reputação de Freud for ao chão, a psicanálise também cai.

Acontece que nos EUA e na Inglaterra, a teoria freudiana nunca teve lá grande serventia, a não ser para os filmes de Woody Allen. A França é o grande sustentáculo da psicanálise, principalmente a partir de Jacques Lacan, que parece ter outra pegada, talvez mais difícil no sentido clínico, mas muito mais instigante no sentido estético-literário.

Em Lacan, linguagem e loucura se misturam a tal ponto que se dissolve nos símbolos, e ambas se reerguem no real, que por sua vez está suspenso na névoa da existência. Riobaldo, de Grande sertão: veredas, tinha razão. “O senhor ache e não ache, tudo é e não é.” Se eu fosse me analisar, faria com alguém que já tivesse lido Guimarães Rosa.

Charlatão

Desde que despontou como o gênio da raça, Freud vem levando petelecos de todo lado, como sói acontecer com os grandes. Ele devia ser mesmo um sujeito muito esponja. E foi. Sua teoria foi construída à custa da literatura, da mitologia, da filosofia e da religião, além dos elementos da clínica médica psiquiátrica, é claro.

Mas Freud é moderno. O que ele poderia fazer? Na modernidade, ninguém fala a não ser “entre aspas”, já dizia Mikhail Bakhtin, tão genial quanto Freud, mas com os olhos voltados para o texto que constrói almas, ao contrário do médico austríaco, que se dedicou às almas para construir textos.

O que Pupe quer dizer em sua resenha, na verdade, é que o biógrafo acusa, não a teoria, mas o próprio Freud de ter sido um pilantra de marca maior. Freud: the making of an illusion ainda não chegou ao Brasil, mas Pupe em sua resenha diz que Crews vem dedicando a vida para desmoralizar o mestre do inconsciente.

Em 1980, Crews já havia publicado “o primeiro artigo no qual rejeitava completamente o legado de Freud.” E em 1999, chegou ao Brasil seu livro As guerras da memória - o legado de Freud em xeque, publicado pela Editora Paz e Terra, “que questiona os pilares da psicanálise e documenta falhas metodológicas de seu fundador”, diz Pupe.

O novo livro de Crews baseia-se na rica documentação já existente e “também em cartas do austríaco que foram divulgadas há pouco tempo, (...) inicialmente censuradas por seus biógrafos oficiais”. O autor acusa Freud de ser um “egoísta, preconceituoso, infiel e, acima de tudo, um charlatão que mentiu com frequência em suas obras.”

Crews dá exemplos da vigarice: em um artigo, Freud escreve sobre os efeitos benéficos da cocaína, usada para combater o vício à morfina, e cita o caso de Ernst Fleischl, seu amigo, que teria se tratado com ele. Mas em cartas para a futura mulher, Martha Bernays, Freud diz que “Fleischl nunca deixou a morfina e ainda passou a usar cocaína compulsivamente.”

Além disso, segundo Crews, Freud gostava mesmo era de dinheiro, e detonava os amigos depois de sugar suas energias, para não ter de conviver com encostos. “Era comum que se aproximasse de um colega que supunha ter grande inteligência ou reputação, para posteriormente difamá-lo e renegar a amizade.”

O problema moral do médico austríaco chegava à cozinha. Ele traía a mulher com a cunhada, Minna Bernays, e chegou a engravidá-la e depois convencê-la a abortar.

Ilusão de linguagem

Essas histórias todas, no entanto, não são novidade nas diversas biografias não autorizadas de Freud. Em algumas das oficiais, como a de Peter Gay, Freud – uma vida para o nosso tempo, de 1988, há citação do caso de perfídia, mas Gay desconversa.

Ele diz, por exemplo, que se tratava de um boato espalhado por Carl Gustav Jung (1875-1961), que carecia de provas convincentes. Jung emulara Freud, mas depois se rebelou para fundar a teoria da psicologia analítica, a partir dos arquétipos mitológicos, desenvolvendo a ideia de inconsciente coletivo. Talvez as provas convincentes estejam nessas cartas de Freud recentemente trazidas a público.

Os ataques, contudo, realmente não vêm de hoje. Em um livro de 1995, Por que Freud errou – pecado, ciência e psicanálise, publicado no Brasil pela Editora Record, em 1999, o crítico literário inglês Richard Webster já tentava desancar Freud e sua teoria.

Nesse livro, Webster diz horrores sobre o pai da psicanálise, e traz trechos de cartas de Jung e outros ex-alunos que se rebelaram contra ele, atacando-o e acusando-o de cometer barbaridades para criar e proteger sua teoria.

Webster diz que Freud acumulou roubo de teorias alheias e as aplicou na criação da psicanálise. Muitas dessas teorias, no entanto, foram caindo por terra e entulhando a clínica do médico austríaco de “cinzas de especulação”, como a ideia de histeria e a prática de sua cura, a hipnose.

Sobre o inconsciente, Webster não deixa barato. “É apenas uma entidade oculta para cuja existência verdadeira não há qualquer prova palpável. É uma ilusão produzida pela linguagem – uma espécie de alucinação intelectual.”

Então, por que tanta gente inteligente e comprometida com a seriedade da vida, com o respeito ao outro, se convenceu da eficácia da teoria freudiana, e por que isso cresceu tanto, a ponto de se tornar a ferramenta usada para enfrentar os males da modernidade?

“O único motivo concebível por que os intelectuais levaram a sério sua lógica de pé quebrado, as soluções tronchas, o constante autoengano intelectual e a inteligência de problemas de palavras cruzadas que repetidas vezes apresenta no lugar de verdadeira intuição psicológica, é que ele (Freud) quase invariavelmente usa esses modos de argumento para tocar a mácula do sexo”, diz Webster.

Mais adiante, o crítico completa: “muitos intelectuais simpatizam com a tradição psicanalítica exatamente porque desconfia da epistemologia racionalista da ciência ortodoxa. Encaram essa epistemologia como intrinsecamente hostil à afetividade, e portanto inimiga de qualquer reconhecimento da complexidade do comportamento e motivações humanos.”

Jung

Por que Freud errou foi lido por Crews, a quem o autor agradece e chama de “muito magnânimo”, mas diz discordar de suas afirmações sobre a grandeza da psicanálise, porque na ocasião Crews atacava apenas a pessoa de Freud, enquanto Webster, neste livro, quer demolir a ambos.

Justiça seja feita a Webster, que ataca a psicanálise mas dá a ela o que tem de mérito, em sua opinião, segundo a qual, “um número pequeno dos que trabalharam com a psicanálise deixou-a muito mais rica do que a encontrou, e aumentou consideravelmente a soma do nosso conhecimento psicológico.” Ou seja, a psicanálise não é nada no campo da ciência, mas no campo da terapia é alguma coisa.

Freud é chamado de charlatão, e a psicanálise, de “falsa ciência” com um forte componente religioso. Mas não é só isso. Webster ataca todas as teorias que ele chama de mentalistas, que manipulam os instrumentos da lógica para convencer a sociedade de que têm valor de verdade, como certos ramos especulativos da psicologia, do estruturalismo (de Lévi-Strauss, por exemplo) e da sociologia.

O que ele quer é um conhecimento empírico que dê conta da realidade imediata do mundo, que afirme o corpo e não o separe da mente, como faz essas teorias tanto quanto o faz o criacionismo. Por isso, para ele, o sistema em torno do qual gira a concepção da psicanálise é tão religioso, reivindicador de fé, quanto as religiões. E Freud sabia disso, razão pela qual impunha sua autoridade como a de um deus.

Quando Jung, 19 anos mais jovem, descobriu esse gosto pelo poder de Freud, que via no amigo o príncipe herdeiro da sua doutrina, escreveu uma carta em 1912 com nenhuma outra intenção senão a de confrontar o líder, que um dia ele havia adorado justamente como a um deus.

“Posso lhe dizer algumas palavras com toda a seriedade? Admito a ambivalência de meus sentimentos para com você, mas estou inclinado a adotar uma visão honesta e absolutamente franca da situação. (...) Eu salientaria que sua técnica de tratar seus alunos como pacientes é um erro crasso. Dessa maneira, você gera filhos escravos ou bonecos (Adler-Stekel e todo o bando insolente lançando agora seu peso em Viena).

“Sou objetivo o bastante para ver por trás do seu truquezinho. Você anda por aí bisbilhotando todas as ações sintomáticas em sua vizinhança e com isso reduzindo todos ao nível de filhos e filhas que, enrubescidos, admitem a existência de seus erros.

“Enquanto isso, você fica firme no alto como o pai, bastante assentado. Por pura obsequiosidade, ninguém ousa puxar o profeta pela barba e perguntar de uma vez por todas o que diria a um paciente com a tendência de analisar o analista em vez de a si mesmo. Certamente, você lhe perguntaria: ‘quem é o neurótico aqui?’.

“Como vê, meu caro professor, enquanto lançar mão desse material, pouco estou ligando para minhas ações sintomáticas; elas se reduzem a nada comparadas ao brilho no olho do meu irmão Freud. Não sou nem de longe neurótico. (...) Você sabe, claro, até onde chega um paciente com a autoanálise; não sai de sua neurose – exatamente como você.

“Se algum dia se livrar inteiramente de seus complexos e deixar de representar o pai para seus filhos, e em vez de apontar o tempo todo para os pontos fracos deles, der uma boa olhada em si mesmo para variar, aí eu me corrigirei e ao mesmo tempo perderei o hábito de vê-lo com ambivalência.”

Por causa dessa carta, e outras críticas abertas, as relações se romperam em 1914, e Jung foi chamado por Freud de “brutal e hipócrita”, foi taxado de doente mental e sábio desnorteado.

Ferenczi

Outro ex-discípulo, que não enfrentou o mestre diretamente, mas escreveu em seu  diário clínico o que pensava de Freud, foi Sandor Ferenczi (1873-1933), cuja obra completa foi publicada no Brasil pela Editora Martins Fontes, em 2011.

“Por que deve o paciente se colocar cegamente nas mãos do médico?”, escreve Ferenczi em seu diário. “Não é possível, na verdade provável, que um médico não bem analisado (afinal, quem é bem analisado?), em vez de curar o paciente use-o para satisfazer suas próprias necessidades neuróticas ou psicóticas?

“Como prova e justificativa dessa desconfiança, lembro algumas declarações que Freud me fez. É óbvio que ele confiava em minha discrição. Disse que os pacientes não passavam de ralé. Só serviam para ajudar o analista a ganhar a vida e oferecer o material para a teoria. É claro que não podemos ajudá-los.

“Isso é niilismo terapêutico. No entanto, atraímos os pacientes escondendo-lhes  essas dúvidas e incentivando suas esperanças de ser curados. (...) Outra prova é a aversão de Freud por psicóticos e pervertidos, na verdade, sua aversão a tudo que considera ‘anormal demais’. (...)

“Além disso, seu método de tratamento, assim como sua teoria, resultam de um interesse ainda maior na ordem, e a substituição de um superego mais fraco por um melhor. Em suma, está se tornando um pedagogo. (...) Assoma como um deus acima do pobre paciente, que foi rebaixado à condição de uma criança.”

Além da problemática moral dessas acusações, parece-me que os questionamentos e revoltas, tanto de Jung quanto de  Ferenczi, eram típicos de quem resistia a um novo modo de jogar o jogo. Se Freud não tivesse feito isso, criado códigos severos, sistematizando sua teoria com tantas amarras – graças a sua genialidade e resistência –, talvez a psicanálise já tivesse caído, principalmente em função do aparente amoralismo de seu criador.

Detratores

As denúncias contra Freud e contra a psicanálise vivem ocorrendo, e continuarão, certamente. A água vai continuar batendo. Cabe à barreira ter pedra com decaimento de diamante.

Em 2005, foi publicado na França O livro negro da psicanálise, traduzido no Brasil em 2014 pela Civilização Brasileira. O livro acirrou os ânimos dos psicanalistas franceses, fazendo a notável pensadora Elisabeth Roudinesco se indignar e ir a público levantar severas críticas à publicação.

Outro livro que deu o que falar na França, ou seja, no quartel-general das forças psicanalíticas, foi Le crépuscule d'une idole, l'affabulation freudienne (O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), ainda inédito no Brasil, de Michel Onfray, que também chama Freud de charlatão.

Há uma frase de Webster exemplar neste sentido. “Qualquer trabalho que critique Freud corre o risco de provocar fortes ressentimentos.” Há quem conteste Por que Freud errou, que acusa a psicanálise de ser falsa ciência, dizendo que quem faz isso compreendeu erroneamente a natureza da psicanálise.

Para esses críticos, Webster diz que então que se julgue a psicanálise não como uma “contribuição ao nosso conhecimento sistemático da natureza humana, mas como uma espécie de poesia.”

A crítica ao livro Freud: the making of an illusion, foi publicada paralelamente ao texto de Stefano Pupe, na Folha de S. Paulo, como contraponto, escrita por M. M. Owen, de 32 anos, doutor em literatura pela Universidade de Columbia, com tradução de Paulo Migliacci.

Owen não consegue dizer muita coisa em favor de Freud, além do que já sabemos. Ele pontua o desfavorecimento da psicanálise pelos medicamentos de hoje, capazes de tirar qualquer sintoma do sujeito pós-moderno, inclusive o sintoma de vida, no sentido amplo e livre da relação com o mundo.

Mas defende Freud dizendo que seu legado é rico e atestado pela neuropsicanálise, uma nova abordagem da neurociência aplicada ao conhecimento psicanalítico. “A ideia de um inconsciente vasto e poderoso, que é central na psicanálise, vem sendo comprovada por exames de ressonância magnética. E a neurociência moderna se fundamenta no fato de que nossas mentes conscientes têm acesso a pouca coisa em nosso cérebro.”

Fatos e crenças

Obviamente, muita coisa da psicanálise veio para ficar. Termos como teorias dos sonhos, sexualidade infantil, o complexo de édipo, sistema ternário ego, superego e id, a teoria do narcisismo, libido, pulsão de morte e transferência, sobre os quais lemos nos vários níveis de literatura, e que rasgaram em nossa maneira de pensar e sentir o mundo letrado um sulco indelével, permanecerão, mesmo que apenas como literatura.

Muitos desses conceitos já se tornaram clichês, como ato falho, complexo de qualquer coisa, projeção, compensação. Mesmo quando a psicanálise não passar de uma lembrança tenebrosa de alguém deitado num sofá expelindo toda sua angústia, esses conceitos estarão grudados na linguagem, e serão transportados enquanto houver civilização humana.

O livro Interpretação dos sonhos, de 1900, por exemplo, é uma fonte inesgotável de invenção e beleza (literatura da melhor qualidade e um ótimo tratado da verdade, levando em conta que a verdade é um conjunto de crenças que permeiam a linguagem e a cultura humanas). Em função disso, a obra de Freud oferece a possibilidade de reajuste, de reorganização de um mundo particular.

Mas a contenda vai continuar ao longo dos séculos. A psicanálise ainda tem muita lenha para queimar. Não por outro motivo, senão pela nossa capacidade de atribuir funções mágicas ou maravilhosas ao que nos é obscuro ou incompreensível na clareza imediata. Quem leu Proust sabe disso.


No monumental romance Em busca do tempo perdido, há uma frase lapidar, que nem precisa do contexto literário para a entendermos, basta que se leia: “os fatos não penetram no mundo em que vivem nossas crenças (...), e uma avalanche de desgraças ou doenças que se sucedam ininterruptamente em uma família não a fará duvidar da bondade de seu Deus ou da competência de seu médico."

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 4 de março de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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