Ryota (Hiroshi Abe) com o filho Shingo (Taiyô
Yoshizawa) e a ex-mulher Kyoko (Yoko Maki): a sentença fulcral é a frase “não é fácil se tornar o homem que a gente gostaria de ser” |
Se o cinema é arte, ele não existe para passar mensagens edificantes ou
de qualquer natureza. Se o cinema é arte , ele não tem uma finalidade, ou uma
utilidade, seu fim é em si mesmo. Mas como toda arte, é produzido por humanos
para consumo humano, e um ser humano que se preza sempre vai empregar algum
significado para qualquer coisa que veja.
Do mesmo modo, mesmo sem querer, o artista, que também é humano, enfileira
em sua obra um ror semântico de coisas ditas, por trás das quais, ou na frente,
há um mundo a ser interpretado. Afinal, se há uma narrativa, há uma história, e
se há uma história, encontramos significados. Mesmo numa linguagem do tipo nouvelle
vague (no cinema) ou nouveau roman (na literatura).
Alguns filmes são mais complexos em sua estrutura, como os escritos e
dirigidos por Peter Greenaway, que quer ser uma espécie de Rembrandt do
movimento, com filmes como O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante
e Livro de cabeceira. Mas outros querem de fato contar uma história, da
qual se pode extrair um questionamento ético, além do corpo estético que se vai
criando.
Depois da tempestade, filme japonês de 2016, escrito e dirigido por Hirokazu Koreeda, é uma
dessas obras magníficas que não querem ser aves de voos altos, mas que, por
isso mesmo, nos oferecem novos lances no modo de olhar para o mundo.
O filme narra um drama familiar muito comum, sobre um pai, Ryota Shinoda
(Hiroshi Abe), separado, que quer continuar vendo o filho, Shingo Shiraishi (Taiyô
Yoshizawa), mas não paga a pensão porque gasta sua curta grana apostando em
corridas de cavalo.
Mensagem fulcral
Ryota é um sujeito com talento literário, que publicara um livro premiado
pela crítica, mas que vive sem grana. É um escritor decadente de um livro só. Enquanto
tenta escrever o segundo romance, ganha a vida fazendo bico como detetive e
pedindo dinheiro emprestado para a mãe, já velhinha.
Sua mãe, viúva, não perde a oportunidade de criticar o marido morto, que
também não conseguiu fazer nada da vida. O filme tem duas horas de duração, que
é o tempo mínimo para uma produção japonesa, mas é em um diálogo de poucos
segundos que vemos a mensagem fulcral e arrebatadora da película.
Numa discussão, um garoto que havia sido investigado por Ryota, a pedido
do pai, provoca o protagonista dizendo: “Não quero ser um vagabundo feito você,
quando eu for homem.” E nosso herói responde com raiva: “Escuta aqui, seu
moleque, não é fácil se tornar o homem que a gente gostaria de ser.”
Um homem consciente de si na modernidade líquida sente o baque na hora,
identifica-se com a frase do personagem, e acena com a cabeça, concordando. Ryota
estava naquela situação porque tentou ser o que queria ser, tentou ser livre de
amarras, mas havia tecido laços afetivos antes, fazendo um filho, e aí, ao
tentar ser o que queria ser, sendo ao mesmo tempo o pai de Shingo, não dava
certo. Era preciso mudar o modo como se jogava, e ele não estava percebendo
isso, como raramente o percebemos.
Óleo sobre tela
Ao tentar refletir sobre as razões de seu fracasso, Ryota via sua
ex-mulher vivendo a vida dela sem percalços e ficava intrigado. “As mulheres
são mais óleo sobre tela que aquarelas”, disse-lhe uma colega de trabalho. Ou
seja, não apagam o que já viveram, vivem por cima do sentimento anterior um
novo sentimento, não substituem o antigo.
As mulheres, quando sabem o que querem ser, fazem as coisas de modo
diferente, mas sem apagar nada, apenas escondem a mancha negativa e afirmam a
parte do passado que lhes agrada. Os homens não conseguem essa destreza, e
acabam negando a essência da própria existência.
No caso de Ryota, ele não nega o próprio filho, não presencialmente, ele
está lá. Ryota vai visitá-lo. Mas num lance de auto-sabotagem – como a
incapacidade de poupar dinheiro, viciado em jogo, fazendo bicos sem procurar um
trabalho e ao mesmo tempo sem escrever o livro que dizia que escreveria –, nega
a responsabilidade de ser pai.
O que falta a Ryota é um senso ético. Mergulhado numa preocupação
estética da vida, ele perde a dimensão de ser responsável. Acontece que a vida
também é uma arte, mas em vez de se fazer no campo estético, é uma arte
inventada na esfera do ético. “Nossas identidades (ou seja, as respostas às perguntas
‘Quem sou eu?’, ‘Qual é meu lugar no mundo?’, ‘Por que estou aqui?’) precisam
ser criadas, tal como são criadas as obras de arte”, diz o sociólogo e filósofo
Zygmunt Bauman.
Ryota não precisava deixar de procurar ser o que queria ser, bastava
mudar o rumo da prosa e entender que não era deixando a vida levá-lo que seria
o homem que gostaria de ser. E essa é a parte mais difícil. “Ser artista
significa dar forma e condição àquilo que de outro modo seria sem forma ou
aparência”, ensina Bauman em A arte da
vida.
Como há diversas
maneiras de preencher essa essência, o caminho mais difícil é justamente aquele
em que assumimos as reponsabilidades morais. Esses vínculos requerem uma
preocupação verdadeira com o outro e uma consciência de que o que faço da vida
tem impacto direto nos que me cercam, e indireto nos mais distantes.
No filme de Koreeda, há uma tempestade imensa quando Ryota
e a família estão na casa da mãe dele, e começam a passar a vida a limpo.
Depois disso, veremos o que sobra.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 25 de março de 2018, no Jornal
Opção, de Goiânia)
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