Foto: Gilberto G. Pereira
Detalhe do High Line Park, numa das entradas, na altura da 10ª Avenida com a Rua 23: a partir dai, seguimos para a direita até o fim. |
A literatura é uma coisa incrível. É um tipo de linguagem
e feixe de procedimentos que nos fazem apaixonar por algo exteriormente
distante de nós, que entra em nossa alma e se instala plasticamente, de modo
que vamos moldando sua figura, alargando-a ou estreitando-a à medida que seguimos
a jornada real.
Qualquer coisa pode ser uma figura literária, de um
alfinete a uma cidade. Qualquer coisa vira um tropo. Nova York é uma dessas
figuras para muitos leitores, inclusive pra mim. Ela existe em mim mais do que
existo nela, mesmo agora que percorri suas ruas.
Ítalo Calvino é um dos mestres da cidade como tropo. Em As cidades invisíveis, Marco Polo viaja
o mundo inteiro em missões diplomáticas no século XIII, recriando cidades para
descrevê-las a Kublai Khan. No conto 9,
Marco Polo diz o seguinte sobre uma cidade que ainda nem tinha nascido, como se
estivesse tocado pelo gênio de Tirésias: “Há a cidade com a forma de Nova
Amsterdam, também chamada Nova York, repleta de torres de vidro e aço sobre uma
ilha oblonga entre dois rios, com ruas perfeitamente retas como canais
profundos, exceto a Broadway.”
Uma vez que a subjetividade moderna se ergue a partir de
símbolos simbióticos como os de Calvino, valendo-se de códigos reais para
construir uma ficção, e uma vez que a ficção nos ajuda a nos codificar como
reais, devo inserir minha própria história, complexa e viva, nesse contexto,
para que a luz da memória clareie as penumbras das entrelinhas do que quero entender
na minha própria viagem.
Nasci em Figueirópolis, Tocantins, quando ainda era Goiás,
em 1975. Aos 3 anos, fui para a Ilha do Bananal. Aos 5, fui para Porto Alegre
do Norte, no Mato Grosso. Aos 14, fui para Goiânia, onde fiz Faculdade (UFG).
Aos 25, mudei-me para São Paulo. Depois fui para Curitiba, voltei para São
Paulo, casado, onde minha filha nasceu, e aos 34, rumei com a família para
Goiânia, que se tornou nosso lar.
Como se vê, nasci distante dos grandes centros, mas eles
foram me puxando como se eu fosse um corpo gravitacional atraído por um corpo
sideral maior. No fim das contas, o desejo é um amplo corpo configurado no
espaço sem fim da alma. O que existe dentro de nós pode ser puxado por ele,
para o bem e para o mal.
A cidade é fruto do desejo, e é fácil explicar por quê: as
cidades são feitas de pessoas, de almas, portanto. São tantas almas que se
amalgamam que chegam a criar imensos corpos de desejo, atraindo, num torvelinho
magnético, outros seres de alma. Puxam-nos e os mantêm girando ao redor.
Dentro desse corpo urbano, há outro fator seletivo,
criativo e criador das grandes cidades, também instalado no centro do desejo
(como o sexo, a dinâmica dos corpos, a sobrevivência): o conhecimento e a
própria arte, ou seja, elementos gravitacionais da erudição e do desejo.
Monstro inquilino do
desejo
A erudição (a busca dela, a vontade de conhecer ou o
fascínio pelo saber) é um monstro devorador de massa cinzenta, uma ambiciosa
fera instalada no desejo de conhecer mais, com qualidade, cruzando informações
e origens do objeto conhecido. A teia da erudição está sempre na cidade. Se a
cidade é fruto do desejo que atrai os sujeitos dos ermos, a erudição é um dos
ramos desse desejo.
As pessoas se aglomeram nas grandes cidades porque desejam
uma infinidade de coisas, que só existem (ou tendem a existir com abundância)
nas metrópoles. Oportunidades de emprego, de negócios e de ascensão social. Uma
vida menos pesada e mais movimentada, com mais beleza e mais prazeres. Mais
pessoas bonitas, mais comidas diferentes, mais livros, mais educação, mais
arte, mais conversas, mais descobertas entre mistérios, entre os corpos e a
sensualidade dos hedonistas e dos narcisistas. Mais luzes entrecortando as noites.
A dinâmica dos corpos. Tudo são ramos do desejo.
Tudo isso são promessas que quase sempre não se cumprem,
ou cumprem-se para poucos. Mas as cidades continuam crescendo, porque as
pessoas as procuram. “Vim pra cá pelo movimento”, é o que dizem, segundo Carlos
Nelson Ferreira dos Santos, que nos anos 1970 fez uma pesquisa sobre por que as
pessoas deixavam seus lares nos campos ou nas pequenas cidades para viver nas
metrópoles.
A erudição é um monstro inquilino desse desejo. Muita
gente vai para as grandes cidades para viver de arte ou da comunicação, cheias
de ideias e de leituras, ou ávidas para consumir o corpo gordo do conhecimento
e transformar o mundo.
Um grande artista não fica em grotões, a não ser que
queira, e nunca quer. Nem um grande pensador, ou um grande cientista ou um
gênio das finanças. Rimbaud foi para Paris. Shakespeare, para Londres. Carlos
Drummond e um imenso séquito de artistas do interior do Brasil foram para o Rio
de Janeiro ou São Paulo.
É no rastro dessas figuras que muitos de nós procuramos
também as grandes cidades. É pelo movimento. Algumas cidades oferecem um
fascínio para a produção artística maior que outras. Neste sentido, Nova York é
fruto de um desejo sempre renovador e plural, onde a elite financeira do mundo
convive com um exército de artistas, pensadores e críticos consideráveis.
Não faço parte desses grupos, porque sou menor. Como já
disse, Nova York para mim é um tropo. Sou menor que o menor que quer aderir ao
grupo. Mas observo, fascinado, seus movimentos.
“Não existe vida
intelectual fora da cidade. A cidade é o lugar da transformação, da utopia, da revolução,
das grandes mudanças”, diz Antônio Risério, em uma palestra registrada pela Sesc
TV, na série Galáxias: Cidades.
Ao sul da ilha
assimilada
Diante dessa reflexão, eu me pergunto a mim mesmo sobre
minha própria escolha: por que Nova York? Talvez a viagem me ajude a formular
uma resposta razoável ou delirante. Por que Cool heart no título dessa viagem literária? Poderia ser Heartificial. Poderia ser Coal heart. Poderia ser qualquer coisa
que conjugasse com o esquema quente e forjador da cidade, na aparente
estabilidade de seu concreto, ao mesmo tempo que o som dos termos em inglês
combinam com o som do nome do autor de Nova York delirante, Rem Koolhaas.
Para pensar Nova York, meu coração se estilizou, meu
coração metalizou, concretizou sobre a retícula estável e móvel de Manhattan subindo
ao norte. O que passa por ele já não é mais real, é delírio exposto ao sol,
cuja densidade de prazer e desejo lança sombras que se espessam junto às
sombras dos arranha-céus e sobem e se diluem ao sul da ilha assimilada. Assim,
mirada, assim, ilhada terra, o rio a viu no mar, a ilha, o mar, a nau viu a
ilha assim em seu descobrimento.
Fora a ficção e as citações, para além das leituras das leituras
de leitores cultos e viajados, o primeiro livro de arquitetura que li sobre
Nova York foi justamente Nova York delirante,
livro que biografa a cidade a partir de sua arquitetura vertiginosa de
arranha-céus e dos devaneios nos projetos lúdicos em Coney Island e Manhattan.
Koolhaas me ensinou sobre uma Nova York que ainda existe, mas que não mais é só
ela. Como um livro, ela tem mais páginas hoje do que em 1978, quando o autor
lançou seu manifesto.
O sentido da
tolerância
A metáfora do livro está presente em vários escritos, no
pensamento de vários artistas, como em Italo Calvino, cujo Marco Polo de As cidades invisíveis diz: “O olhar
percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você
deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar
visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela
define a si própria e todas as suas
partes.”
Por isso “nunca devemos confundir a cidade com o discurso
que a representa” (Marco Polo), por isso Nova York se torna tropo e aparece em
um conto de Calvino ambientado num lugar fictício, numa época anterior a seu
aparecimento real. Por isso devemos buscar o conhecimento sensível, o sentimento
da cidade para amá-la em sua plenitude. Uma cidade plena é sempre, e ao mesmo
tempo, real e fictícia.
Eu estava nascendo na metade da década de 1970 em um distante
e obscuro ponto do Norte do país. Mas ao ler Nova York delirante, décadas depois, senti ainda em algum lugar,
entre o hipocampo e o lobo frontal, o gosto de vê-la saindo de meu imaginário e
me apontando com os olhos doces e negros o lugar exato de meu desejo em suas
ruas.
No presente de Manhattan, quais são as sementes do futuro?
Os jovens. Percebi isso imediatamente quando comecei a andar pelos logradouros aglomerados
da ilha. Na cultura da congestão, o que é bom e o que é ruim? Certas pessoas
não conseguem entender por que estão lá, embora o fato de estarem lá as agrade.
Neste sentido, a cultura da congestão desgasta seu humor e elas se tornam então
mal educadas, grosseiras ou irônicas ao extremo, indignas da pluralidade que a
cidade oferece.
Mas Adrián Gorelik nos conforta. “Toda cidade guarda,
enigmática, em seus planos e edifícios, as chaves de uma civilização”, diz Gorelik
no prefácio de Nova York delirante. Quais
são, portanto, as chaves de Nova York? Que civilização encontramos aqui? Encontramos
o sentido da tolerância, que é maior que as almas intolerantes que se encontram
em suas ruas.
High Line Park
Não podíamos ir a Nova York e não visitar o High Line
Park, elevado construído para uma linha férrea que foi desativada, virando bem
mais tarde passarela e jardim suspensos no West Side de Manhattan, entre as
Décima e Décima Primeira Avenidas. Mais
a oeste, o Rio Hudson passa em relativa calmaria levando suas águas limpas para
o mar.
Foi uma bela caminhada. Ladeados por capins e vários tipos
de flores, com paradas estratégicas com banquinhos agradáveis, tendo ao fundo o
leve som da muvuca no centro da ilha, fizemos quase todo o percurso do parque,
começando na altura da Rua 23, subindo até o fim, ao pé da Rua 34.
A internet saturou o efeito da descrição de locais,
prédios e monumentos. O que sobrou foi a impressão do ritmo da cidade, seu
cheiro, sua pulsação, o modo como seus moradores se relacionam entre si e com
os turistas. A comida, o atendimento, a bebida, o transporte, a segurança, a
sensação de segurança, os signos da cidade, sua memória. Que alma tem Nova
York? Como afeta minha alma? Que tipo de acontecimento me marcará mais a
memória?
Nova York ficou mais rica como tropo. Minha viagem foi uma
espécie de mergulho na ficção, porque não consegui mergulhar na alma das
pessoas. O tempo era escasso. Precisava assimilar a ilha. Mas tudo que vi e
vivi engrandeceu meu modo de ver o mundo.
Bronx
Nossa única oportunidade de conhecer o Bronx foi no dia 9.
Tomamos um táxi com um indonésio conversador e fomos margeando o East River rumo
ao distrito mais pobre da cidade. Em Nova York, tudo está no ângulo de visão do
turismo, menos a miséria, e não é pouca.
Essa discussão de como a cidade devora muita gente para
sustentar o sonho de pouca gente já está se tornando clássica. Mas para ver
isso pessoalmente seria necessário um mergulho que depende de tempo maior. Não
tive esse tempo, embora eu tenha ido ao distrito mais pobre, que tem o bairro
mais pobre, segundo o jamaicano Garnette Cadogan, em Histórias de duas cidades, Hunts Point.
Cadogan é jornalista e escritor, especialista na cidade de
Nova York e numa categoria de estudos chamada Fenomenologia da Caminhada, cujo
método eu gostaria muito de aprender, porque deve fazer a diferença no
exercício da cidadania e do conhecimento que se adquire da cidade onde se vive.
Como jornalista, Cadogan observa a cidade fazendo longas
caminhadas a locais diversos, desde os mais pobres aos mais suntuosos. Numa
dessas caminhadas, ele saiu de Midtown, em Manhattan, onde mora, passando por
Upper East Side (ao lado do Central Park, o lugar mais caro e mais rico do
distrito mais rico de Nova York, onde a população que imprime sua marca “é a
dos ricos – dos extraordinariamente ricos, um bairro abastecido com os recursos
necessários para o sucesso mundial”), até chegar ao Hunts Point, que tem uma
combinação esdrúxula, segundo Cadogan, sugerindo descaso político, pois é uma
localidade teoricamente residencial “em meio a clubes de strip-tease, oficinas
de automóveis e prisões.”
Não fui ao Hunts Point. Se tivesse com mais tempo teria
ido. Turista pobre que sou, indo pela primeira vez a Nova York, precisava me
concentrar em certos objetos que me fizeram colocar a cidade na minha lista de
tropos. A pobreza era fruto de minha consciência da realidade do lugar que
todos veneramos pela riqueza e beleza, mas precisava ir ao Bronx por ser um
distrito negro, não por ser pobre.
Não fazia sentido ir a Nova York e não pisar em lugares
como South Bronx e Harlem, por exemplo. Nesse dia, fui ali especificamente almoçar
num restaurante africano de cozinha nigeriana. Fui inspirado por Chinua Achebe,
Wole Soyinka, Fela Kuti, mas o restaurante sugerido por Cadogan não existia
mais.
Entrei numa mercearia ao lado do endereço que eu tinha em
mãos e perguntei para uma senhora simpática o que havia acontecido. Ela disse
“fechou há algum tempo, mas há outro restaurante africano lá embaixo. O senhor
desce reto e o verá à sua esquerda.” Fomos, então, ao Bognan International –
West African Restaurant, na Rua 169.
Com um nome desses, deve ser imenso lá dentro, pensei. Mas
só havia quatro mesas de seis lugares. O dono, Fousseni Alidou, no entanto, era
de uma simpatia transbordante, só perdendo para o transbordo do prato, que
ninguém conseguiu comer de tanta comida, e ninguém conseguia sair da mesa de vergonha
de deixar comida no prato.
Alidou é ganense, embora os africanos do Oeste da África
(Nigéria, Gana, Costa do Marfim, Camarões, etc) em Nova York não se identifiquem
pelo país, mas pela região. “De onde você é?”, perguntei para um africano que
puxou conversa comigo na Quinta Avenida, tentando me vender pacotes turísticos
para visitar a Estátua da Liberdade e andar de Hop on Hop off (ônibus de
carregar turista pra cima e pra baixo dentro de Nova York, de dois andares, com
o segundo teto aberto. Em Curitiba há desses também). “From West Africa”,
respondeu-me o rapaz. Alidou me respondeu assim também, quando perguntei a ele
de onde era, e tive de perguntar de que país especificamente.
A comida tem ingredientes semelhantes à do Brasil, claro,
óbvio (sopa de frango, carne de bode ao molho de quiabo, peixe, inhame frito,
arroz com frango frito e banana frita, entre outros). Mas o tempero e o modo de
preparo, bastante apimentado e cheio de molhos, não nos ofereceram o mesmo
gosto. Entretanto, foi uma experiência e
tanto no Bronx.
Alidou, simpático, falando alto e espalhafatosamente, foi
objeto de uma grande reportagem no Daily
News (jornal nova-iorquino), que ele exibe na parede do restaurante e conta
pra todo mundo: “Está na internet, veja lá a história do restaurante.”
Foto: Ellen G. Pereira
Eu e Fousseni Alidou (direita). Ele, gentilmente, foi chamar o táxi, que no Bronx é verde |
Leia na sequência: Cool Heart – diário de viagem a Nova York (5)
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