Foto: Halley Oliveira/Google
Paço Imperial, na Praça XV de Novembro, centro
histórico da cidade do Rio de Janeiro
O
Rio de Janeiro é a cidade mais literaturada do Brasil. Ali, muitos cronistas,
romancistas e poetas brasileiros fizeram sua carreira no jornalismo. João do
Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto,
nascido em 1881 e falecido em 1921 na então Capital Federal, é um desses
representantes da cena carioca. Suas crônicas, peças de teatro e contos
exploram a fundo a sociedade do Rio de Janeiro, indo da alta roda da Belle Époque
ao submundo, desenvolvendo uma passagem paralela entre o belo e o feio da
cidade, desfazendo os fios do glamour e expondo a paisagem escondida nos
escombros.
Segundo
Edmundo Bouças, em seu estudo intitulado Mascaramentos da cidade: poses de
modernização, presente no livro O
imaginário da cidade (organizado por Rogério Lima e Ronaldo Costa
Fernandes), enquanto havia uma política de higienização do espaço urbano
carioca – com o poder público vendendo a imagem de uma cidade moderna, seguindo
o modelo da Paris reformada por Georges-Eugène Haussmann, na segunda metade do
século XIX –, muitos aspectos sociais não tinham o alcance dessa reforma, mas
eram maquiados para parecer uma cidade homogênea e bela.
A
literatura de João do Rio denuncia os mascaramentos da época, “demarca os
espaços de uma capital partida entre a vitrine e o escombro”, uma cidade que exibe,
de um lado, “as cintilações do triunfalismo republicano” e, de outro, “o
amontoamento periférico de uma cidadania excluída, para não alterar o programa
da season cosmopolita.”
Desse
modo, a utopia da cidade higiênica e moderna, cujo ideal era o de apagar a
imagem do Rio de Janeiro da época do Império, período este que fora recém
superado politicamente pela proclamação da República, em 1889, ia sendo
rasurada pela cartografia do submundo registrada pela pena de João do Rio. A
Capital Federal ainda continuava com suas mazelas, e João do Rio fez uma
literatura que mostrava uma prática “em aberta oposição às estratégias
triunfantes dos esquadramentos disciplinares a serviço dos empresários da
República.”
Para
contextualizar seu estudo sobre a cidade sendo desmascarada pela literatura,
Rebouças se aprofunda na análise de Dentro
da noite e A mulher e os espelhos,
de João do Rio. Nessas duas obras de contos, o autor afronta “os manequins higiênicos”
impostos por um projeto ideológico de Estado, fundamentado, sobretudo, pela
autoridade médica, sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz, e pela autoridade
política do governo federal. “A tarefa de desodorizar a cidade passou pela
higienização dos papéis sociais, pela exigência de evacuar lixo, desaglomerar
pobres; interditar cortiços; enclausurar desviantes; disciplinar o bordel.”
Uma
das linhas teóricas que Bouças utiliza para desfiar o novelo estético de João
do Rio é Walter Benjamin, segundo o qual, sendo citado por Bouças, “a mais
adequada avaliação do final do século XIX esteve textualizada ao longo das
dicções liminares, na produção do discurso que corria à margem.” Neste sentido,
o termo “dicções liminares” entra aqui como um conceito cujo sentido é o de desfazer
o discurso do “mascaramento”:
“Em Dentro da noite, a personagem
Barão de Belfort é quem conduz as narrativas que mostram o contrário da
homogeneização da cidade, que revelam o universo plural e impuro, carregado de
pobreza e desregramento, que negam a norma, o casamento, o amor, a contenção
burguesa, a urbanidade, e evidenciam o erotismo, a agressividade sexual, a
licenciosidade, uma “recusa cínica ao matrimônio em toda sua aflitiva
vulgaridade.”
Nos
dois livros analisados por Bouças, o que prevalece é o confronto entre a norma
e o desvio para, no final, clarear o fato de que uma cidade não se faz com a
pureza moral idealizada por determinada classe; além disso, nem esta mesma
classe é constituída apenas do puritanismo. Por trás do discurso moralizante,
há inúmeros casos de desvios e práticas clandestinas que negam essa pureza.
“Assim,
em alguns contos, aposentos clandestinos – estimulados por champagne, ether ou
morfina (DNp. 35) – sussurram amores avessos à natureza; conspiram contra o
aparato normativo que pretendia regular e higienizar a sexualidade. Noutro, uma
erotografia ousada redige a cidade em dias de suspensão da ordem. A aglomeração
do carnaval sacode as urtigas dos desejos (ME, p. 63), a ânsia de acanalhar-se
no anonimato das máscaras. Nas peregrinações pelas igrejas do centro da cidade,
a Semana Santa autoriza investidas profanas, em que arde qualquer coisa de
orgíaco (DN, p. 258), que sentencia: Um deus morto é a convulsão, é como um
sinal de porneia (DN, 259).”
Além
dessa luz jogada sobre a impureza da vida real, em que o discurso moralizante e
puro se desintegra diante das mil e uma faces do desregramento, da luxúria, da
maldade, do desejo latente que quer sair, e sai, os contos de João do Rio
também mostram o lado B da sociedade, a marginalidade e o descaso do poder
público com essa parte ignorada da cidadania. Suas narrativas conseguem “ampliar
a correspondência entre o entulho humano e os escombros da cidade velha.”
O
que o autor faz com uma série de personagens que vivem à margem do Rio de
Janeiro em plena Belle Époque, e que desfilam em seus contos como que gritando
pelo direito de serem notados, é desequilibrar, segundo Bouças, os “limites da
cidade letrada, a fim de rebater a retórica que defendia a metrópole ideal
ordenada pela fachada da assepsia e da homogeneidade.”
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