segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Rio de Janeiro entre a vitrine e o escombro

                                                                          Foto: Halley Oliveira/Google    
Paço Imperial, na Praça XV de Novembro, centro histórico da cidade do Rio de Janeiro    

O Rio de Janeiro é a cidade mais literaturada do Brasil. Ali, muitos cronistas, romancistas e poetas brasileiros fizeram sua carreira no jornalismo. João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, nascido em 1881 e falecido em 1921 na então Capital Federal, é um desses representantes da cena carioca. Suas crônicas, peças de teatro e contos exploram a fundo a sociedade do Rio de Janeiro, indo da alta roda da Belle Époque ao submundo, desenvolvendo uma passagem paralela entre o belo e o feio da cidade, desfazendo os fios do glamour e expondo a paisagem escondida nos escombros.

Segundo Edmundo Bouças, em seu estudo intitulado Mascaramentos da cidade: poses de modernização, presente no livro O imaginário da cidade (organizado por Rogério Lima e Ronaldo Costa Fernandes), enquanto havia uma política de higienização do espaço urbano carioca – com o poder público vendendo a imagem de uma cidade moderna, seguindo o modelo da Paris reformada por Georges-Eugène Haussmann, na segunda metade do século XIX –, muitos aspectos sociais não tinham o alcance dessa reforma, mas eram maquiados para parecer uma cidade homogênea e bela.

A literatura de João do Rio denuncia os mascaramentos da época, “demarca os espaços de uma capital partida entre a vitrine e o escombro”, uma cidade que exibe, de um lado, “as cintilações do triunfalismo republicano” e, de outro, “o amontoamento periférico de uma cidadania excluída, para não alterar o programa da season cosmopolita.”

Desse modo, a utopia da cidade higiênica e moderna, cujo ideal era o de apagar a imagem do Rio de Janeiro da época do Império, período este que fora recém superado politicamente pela proclamação da República, em 1889, ia sendo rasurada pela cartografia do submundo registrada pela pena de João do Rio. A Capital Federal ainda continuava com suas mazelas, e João do Rio fez uma literatura que mostrava uma prática “em aberta oposição às estratégias triunfantes dos esquadramentos disciplinares a serviço dos empresários da República.”

Para contextualizar seu estudo sobre a cidade sendo desmascarada pela literatura, Rebouças se aprofunda na análise de Dentro da noite e A mulher e os espelhos, de João do Rio. Nessas duas obras de contos, o autor afronta “os manequins higiênicos” impostos por um projeto ideológico de Estado, fundamentado, sobretudo, pela autoridade médica, sob o comando do sanitarista Oswaldo Cruz, e pela autoridade política do governo federal. “A tarefa de desodorizar a cidade passou pela higienização dos papéis sociais, pela exigência de evacuar lixo, desaglomerar pobres; interditar cortiços; enclausurar desviantes; disciplinar o bordel.”

Uma das linhas teóricas que Bouças utiliza para desfiar o novelo estético de João do Rio é Walter Benjamin, segundo o qual, sendo citado por Bouças, “a mais adequada avaliação do final do século XIX esteve textualizada ao longo das dicções liminares, na produção do discurso que corria à margem.” Neste sentido, o termo “dicções liminares” entra aqui como um conceito cujo sentido é o de desfazer o discurso do “mascaramento”:

“Em Dentro da noite, a personagem Barão de Belfort é quem conduz as narrativas que mostram o contrário da homogeneização da cidade, que revelam o universo plural e impuro, carregado de pobreza e desregramento, que negam a norma, o casamento, o amor, a contenção burguesa, a urbanidade, e evidenciam o erotismo, a agressividade sexual, a licenciosidade, uma “recusa cínica ao matrimônio em toda sua aflitiva vulgaridade.”

Nos dois livros analisados por Bouças, o que prevalece é o confronto entre a norma e o desvio para, no final, clarear o fato de que uma cidade não se faz com a pureza moral idealizada por determinada classe; além disso, nem esta mesma classe é constituída apenas do puritanismo. Por trás do discurso moralizante, há inúmeros casos de desvios e práticas clandestinas que negam essa pureza.

“Assim, em alguns contos, aposentos clandestinos – estimulados por champagne, ether ou morfina (DNp. 35) – sussurram amores avessos à natureza; conspiram contra o aparato normativo que pretendia regular e higienizar a sexualidade. Noutro, uma erotografia ousada redige a cidade em dias de suspensão da ordem. A aglomeração do carnaval sacode as urtigas dos desejos (ME, p. 63), a ânsia de acanalhar-se no anonimato das máscaras. Nas peregrinações pelas igrejas do centro da cidade, a Semana Santa autoriza investidas profanas, em que arde qualquer coisa de orgíaco (DN, p. 258), que sentencia: Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de porneia (DN, 259).”

Além dessa luz jogada sobre a impureza da vida real, em que o discurso moralizante e puro se desintegra diante das mil e uma faces do desregramento, da luxúria, da maldade, do desejo latente que quer sair, e sai, os contos de João do Rio também mostram o lado B da sociedade, a marginalidade e o descaso do poder público com essa parte ignorada da cidadania. Suas narrativas conseguem “ampliar a correspondência entre o entulho humano e os escombros da cidade velha.”

O que o autor faz com uma série de personagens que vivem à margem do Rio de Janeiro em plena Belle Époque, e que desfilam em seus contos como que gritando pelo direito de serem notados, é desequilibrar, segundo Bouças, os “limites da cidade letrada, a fim de rebater a retórica que defendia a metrópole ideal ordenada pela fachada da assepsia e da homogeneidade.”

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