Boris Schnaiderman (1917-2016) em foto tirada no mesmo lugar onde o entrevistei
O
escritor e tradutor Boris Schnaiderman morreu na noite de ontem, aos 99 anos. Em
2004, tive a oportunidade de entrevistá-lo. Eu trabalhava como freelancer para o
Diário do Comércio, em São Paulo. Naquele ano, a CosacNaify relançou o único
romance de Schnaiderman, Guerra em
surdina, de 1946. Ofereci ao jornal uma pauta sobre o assunto, e lá fui eu
entrevistar o pai de todos os tradutores de russo no Brasil.
Liguei
para Schnaiderman, ele atendeu. Foi gentil comigo, aceitou a entrevista e me
passou seu endereço, na rua Albuquerque Lins, no glamoroso bairro de Higienópolis.
Eu havia lido seu livro. Pareceu-me uma tentativa de recuperar as dissonâncias
da guerra, uma espécie de polifonia em que tantos narradores, cada um a seu
modo, destrinchavam o significado daquela que foi a guerra mais devastadora do
mundo, a Segunda Guerra Mundial.
Cheguei.
Identifiquei-me na portaria, e o porteiro pediu para eu subir ao apartamento.
Quando o elevador se abriu lá em cima, os dois apartamentos do andar estavam de
portas abertas, e eu não sabia exatamente qual deles era o do meu entrevistado.
Não dava para ver o número na porta. Mas foi questão de segundos. Jerusa Pires
Ferreira, sua mulher, me recebeu.
Não
demorou, Schnaiderman chegou. Cumprimentou-me e disse “vamos para a biblioteca,
que lá a gente conversa mais à vontade.” Então saímos do primeiro apartamento e
entramos no segundo, o outro que eu havia visto com a porta aberta também. Era simplesmente
sua biblioteca. Salas e quartos lotados de livros em estantes enfileiradas. No
centro da sala, um mesa redonda de onde dava para ver livros de sua autoria e
romances de Dostoiévski, Tosltói, Gorki, Tchekhov, que ele traduzira. Convidou-me
para sentar. Pedi para gravar a conversa, ele aceitou mui educadamente, e começamos
a entrevista.
Primeiro,
perguntei sobre o livro, depois perguntei uma infinidade de por quês e comos,
sobre tradução (na época ele estava terminando de escrever um livro que só
viria a ser publicado em 2011, Tradução: ato desmedido). Perguntei sobre sua participação na guerra, como oficial da
FEB, sobre crítica literária, e no final fiz algumas perguntas sobre sua vida,
a vinda para o Brasil, a vida no Brasil. Mas não tive coragem de entrar na sua questão
judaica (veio para o Brasil fugindo dos terríveis pogroms). Não achei justo.
Finalizamos
a entrevista. Jerusa havia saído para fazer alguma coisa na PUC, onde ela dava
aula na área de semiótica e comunicação. O fotógrafo fez as fotos, tirou uma foto
comigo e o mestre, prometeu me enviar depois. Como não tive coragem de pedir
(sou um covarde), o fotógrafo nunca me enviou, mas fiquei com um autógrafo de Schnaiderman
no Guerra em surdina, com uma
caligrafia trêmula, de um senhor que já havia visto o mundo de mil ângulos.
Ficamos
nós dois ali. Ele muito gentilmente se levantou e disse que ia preparar um café
na cozinha da biblioteca. Enquanto passava o café, ficamos conversando. Durante
a conversa, avistei um exemplar de Entre
o passado e o futuro, de Hannah Arendt, judia alemã que se enamorou de Heidegger,
o filósofo alemão cuja vida ficou marcada por seu antissemitismo, mas cuja obra
não parece alojar tal inclinação, embora haja os que veem um caráter
antissemita nos conceitos de Ser e tempo.
Puxei
conversa sobre Arendt, e ele disse: “Então você gosta de filosofia. Que
interessante!”, como quem olha para uma criança, passa a mão em sua cabeça e
diz “que bonitinho!”. Mas sempre de modo humilde. Como um cavalheiro que era,
me deu ouvidos, e conversamos sobre a questão judaica na obra de Arendt,
sobretudo em Eichmann em Jerusalém.
Enquanto
falávamos, Schnaiderman preparava o café. Terminou, levou a garrafa para a
mesa. Foi quando percebeu que havia esquecido de colocar o pó de café para a
infusão. Na época, Schnaiderman estava com 87 anos, e eu havia perguntado como
ele encarava a velhice. Educadamente me respondeu que não se sentia velho, do
ponto de vista do espírito, da vontade interior. Só se sentia velho quando o
corpo dava sinais de que já não era tão jovem assim.
Pode
parecer empolgação minha, mas só por um momento achei que, no episódio do café,
o esquecimento não era por causa da idade dele, e sim porque nosso papo estava
bom. Ele estava gostando de conversar comigo. Provavelmente, só estava sendo gentil.