O observador, livro de contos de Carla Dias (Editora Penalux, 2016, 186 páginas, R$ 45), é um duro golpe contra o receituário da vida, embora demonstre a eficácia dele como manual de sobrevivência (de sobrevivência, mas não de vivência, de experiências novas, de vida vivida).
São 50 contos muito bem contados, quase todos
versando sobre duas temáticas: a alteridade (relação do eu com o outro) e a dicotomia
mundo de fora/mundo de dentro, este último representando a comodidade, o
desfile de normas que prendem a vida e a sufocam. O mundo de fora, por sua vez,
é o da marginalidade, tanto no que diz respeito à falta de normas (vida vivida sem
regras), de razão, de poder, de riqueza, quanto no que diz respeito ao que é
criticado, não aceito, desvalorizado. É uma maravilha de livro.
A autora olha para a malha social de um ponto
de vista deslocado em relação ao foco, o mundo organizado (mundo comum, segundo
Christopher Vogler). Já os personagens, muitas vezes estão no mundo organizado
a contra gosto, ou porque não sabem o que fazer para se rebelar ou porque não
podem fazê-lo. Neste sentido, há também uma tremenda solidão.
No conto Cair em si, a narradora-personagem
se lamenta por ter sido o que os outros queriam que ela fosse. É uma discussão
boa porque, no fundo, sempre somos o que os outros dizem que somos, senão em
nosso interior (porque resistimos), pelo menos no imenso refletor social. Afinal,
precisamos do outro, mesmo quando o refutamos, mesmo para refutá-lo.
“Coloco a minha melhor roupa”, diz a
narradora, “a pior aos olhos da minha irmã mais velha, a mais bonita na
fotografia tirada em uma quarta-feira de outono, a mais duvidosa para a
entrevista de emprego, e a mais a ver comigo, de acordo com a cobradora da
estação de trem.” Ela tem a vida aprisionada pela opinião dos outros, da
família e da rua. Ela é o que os outros dizem que ela é, inclusive louca.
O livro de Carla Dias quer desconstruir a
causalidade, quer demover da vontade o raciocínio sobre as coisas prontas para
que as coisas aleatórias aconteçam e embaralham a vida. A vida assim seria mais
plena, mais variável, mais cheia de surpresas, mais vida, às vezes mais
sofrida, mas sempre mais vida.
O conto O mapa nos dá uma dimensão dessa
dicotomia fora/dentro, em que a narrativa busca a ruptura das normas para
alcançar o aleatório. “Vencer o medo de pisar fora do mapa, de fazer as malas e
partir para a próxima, ainda que sem data ou local de chegada”, diz o
narrador-personagem.
No conto que traz o título do livro, também
há essa dicotomia, questionando a comodidade dos rótulos, como os finais
felizes dos contos de fadas. “Ninguém fala sobre o que vem depois do início de
um final feliz, e essa é a forma que encontramos para ignorar Cinderelas
morando nas ruas, Brancas de Neve nascidas e criadas na senzala, príncipes que
chegam em casa bêbados.”
Nesse conto, O observador, a questão
da alteridade é a temática dominante. Um homem solitário, que sai com
prostitutas, observa a vida de uma vizinha do prédio em frente para se sentir
vivo. Essas duas contradições desenham a dicotomia maior do livro. O homem é o
narrador. Ele diz que a prostituta insiste em saber seu nome e sua biografia (inversão
de papéis), enquanto ele nega, e sugere que ela quer se apropriar de seu mundo,
de sua vida confortável, mas ele também lhe rouba pedacinhos da vida para aplacar a
solidão, como rouba da vizinha uma certa imagem, para satisfazer um certo
desejo. No espaço imagético deste conto, cabe bem uma frase de Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust, o deus da alteridade: “Cada qual vê mais bonito o que vê à distância, o
que vê nos outros.”
O conto O observador é uma bela metáfora da
condição humana. Afinal, precisamos do outro para sermos o que somos, mesmo que
essa essência seja de rara tangência de respiração solitária. Neste sentido, o
narrador está equivocado (talvez a autora não, pois demonstrou que sabe o que
está fazendo) quando diz que a prostituta entrou na lógica dos finais felizes e
por isso quer se apropriar do mundo confortável de um homem, porque não quer
“jogar o jogo da realidade”, preferindo “mergulhar na existência do outro.” É
justamente o contrário, quer dizer, não o contrário, mas dicotômico, pois
mergulhamos na existência uns dos outros. Em todo caso, o conto é um jogo de
espelho o suficiente para dar conta desse problema.
O livro de Carla Dias é uma crônica da alma
contemporânea. Do lado de fora olhando para dentro ou do lado de dentro olhando
para fora, o homem contemporâneo é um ser deslocado. A narrativa privilegia o trânsito dos
sentimentos e das relações, mais do que a tensão em si, o
que para alguns críticos pode ser uma falha. Mas seria outra perspectiva.
Por outro lado, traz um conteúdo rico,
sensível, de observador de si e do mundo, observação bifurcada, da autora e dos
narradores. Além disso, nos dá a oportunidade de pensar sobre as relações. Observador
somos todos nós, senão corremos o risco de ser Kaspar Hauser (personagem do romance
homônimo de Jacob Wassermann, que deu origem ao filme também homônimo de Werner
Herzog), senão, o abismo do esquecimento (e do não ser) nos devora. Precisamos
do outro para existir, para reconhecer ao menos nossa existência, precisamos do
outro sobretudo para ser. A lição dos contrastes do mundo das normas, ou até
mesmo do estrangeiro, do que vira as costas para qualquer mundo e está sempre
deslocado, é a tônica da contemporaneidade, e os contos de Carla Dias nos
oferece esse exercício de consciência.
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