“O romance não é uma confissão do
autor, mas uma exploração do que é a vida humana, na armadilha em que se
transformou o mundo.”
Narrador
de A insustentável leveza do ser, de
Milan Kundera
“Lemos romances de aventura, novelas de
cavalaria, romances baratos (histórias de detetive, de amor, de espionagem e
por aí afora) para ver o que acontece na
sequência; mas lemos o romance moderno por sua atmosfera.”
Orhan
Pamuk, citando Ortega y Gasset
“Aqueles que consideram o diabo
partidário do Mal e os anjos guerreiros do Bem estão aceitando a demagogia dos
anjos: as coisas são mais complicadas.”
Rufus,
citando Milan Kundera, supostamente
I
Escritor mineiro, radicado no Rio de Janeiro, Rubem Fonseca é conhecido pelos
romances metaficcionais, em que a realidade aparente da história está
mergulhada numa ficção que se ficcionaliza a si mesma, em meio à autoironia, ao
autodeboche e à complexa relação entre ficção e realidade. Em Diário de um fescenino (Nova Fronteira,
2010, 2ª ed., 278 páginas), este jogo de metaficção historiográfica se torna
mais interessante ainda à medida que o autor vai jogando com o leitor, entre o
gênero policial e o romance erótico.
Publicado
originalmente em 2003 pela Companhia das Letras, Diário de um fescenino é narrado em primeira pessoa em forma de
diário por Rufus, escritor carioca com cinco romances publicados (e mais um
livro de contos, renegado). Ele diz iniciar um diário sem saber por quê, supostamente
por não ter o que fazer, para passar o tempo, registrando as banalidades do dia
a dia, enquanto se debate para escrever um Bildungsroman (romance de formação).
As
entradas do diário de Rufus começam no dia 1º de janeiro de ano não
identificado e vão até 31 de dezembro deste mesmo ano, com vários dias ficando
sem registro. Rufus começa seu diário assim:
“Decidi, neste
primeiro dia do ano, escrever um diário. Não sei que razões me levaram a isso.
Sempre me interessei pelos diários dos outros, mas nunca pensei em escrever um.
Talvez depois de considerá-lo terminado – quando?, que dia? – eu o rasgue, como
fiz com um romance epistolar, ou deixe na gaveta, para, depois de morto, os
outros – nem sei quem serão, pois não tenho herdeiros – resolverem o que fazer com
ele. Ou, então, pode ser que eu o publique.” (FONSECA, 2010, p. 5)
Após ter
tido muito sucesso com seu primeiro romance, Rufus fracassa nos outros, e o que
ele registra no diário é sua vida de libertino, conquistador de mulheres,
amante da boa mesa, da literatura e do sexo. Suas amantes aparecem em pares, e
as duas primeiras são a riquinha Henriette e a atriz Lucia. Ele deixa as duas
para ficar com uma garota de 20 anos chamada Clorinda e com a irmã dela, Virna,
de 34 anos, que na verdade é a mãe de Clorinda. A partir daí entram as
complicações de crimes, traições e a meia luz do passado de Rufus com sua
falecida mulher Elizabeth, e as acusações contra ele de estupro da Virna e de assassinato
de Elizabeth.
Para
entrarmos no universo de Rufus e explicar como ele usa a diarística para
construir sua história, é preciso, primeiro explicar o significado do diário na
literatura, bem como a significação do título do romance de Fonseca. Segundo Maurice
Blanchot, em O livro por vir, o
diário é uma escrito pessoal que tem o objetivo de registrar experiências
vividas no dia a dia. Mas tem um preço para isso, diz ele. O escritor de diário
não sai da vida comezinha. Registra apenas superficialidades, porque, embora
tenha a pretensão de escrever só para si mesmo, anseia que um dia alguém leia
seu diário, e por isso não vai ao fundo das coisas, não reflete sobre a alma e
seus desejos. “É preciso ser superficial para não faltar com a sinceridade,
grande virtude que exige também coragem”, diz Blanchot (2005, p. 271).
Para
Blanchot, por ser superficial, o diário não poderia ser considerado literatura,
pois “escrever um diário íntimo é colocar-se momentaneamente sob a proteção
dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção, e é também proteger-se
da escrita, submetendo-a à regularidade feliz que nos comprometemos a não
ameaçar.” (2005, p. 270).
Ou seja, o autor não via o diário como um veículo
possível das expressões literárias, uma vez que também não era um meio para a
reflexão, coisa que a narrativa é capaz de fazer, e a narrativa só é arte,
literatura, se o fizer, se for capaz de erigir uma crise e resolvê-la de alguma
forma. Na perspectiva de Blanchot, o diário foge disso.
Mas, mesmo negando o diário como um elemento capaz de entrar nas frinchas do ideal
literário, Blanchot deixa uma porta aberta para que seu texto seja usado como
exemplo de que o diário, sim, pode ser uma ferramenta poderosa do texto
criativo.
Ele
falava do diário íntimo, e levou em consideração apenas o diário como texto,
não como plataforma, a partir da qual se pudesse expressar qualquer coisa,
verdadeira ou fictícia.
É
o diário como plataforma que nos interessa para mostrar as possibilidades do
romance tendo o diário como recurso estilístico e forma.
Acontece
que, mesmo no primeiro caso, Blanchot nos deixa uma luz. Ele diz: “O diário
está ligado à estranha convicção de que podemos nos observar e que devemos
nos conhecer.” É uma espécie de espelho,
quase um divã psicanalítico. E é isso que acontece com o diário de Rufus, com a
diferença de que ele o faz, escreve seu diário, com convicção de que está usando
uma arma a seu favor. Veremos isso mais tarde. E se Rufus é ficção, existe um
autor por trás dele que pensou o diário como meio. Mas Rufus também pensa no
diário como um meio, e aí o que temos é um jogo espelhado de ficção dentro da
ficção.
II
O jogo
espelhado da ficção em Diário de um
fescenino tem razão de ser. Provavelmente, Fonseca levou em conta outros
dois romances que estavam em sua órbita criativa no momento de decidir escrever
seu romance. Isso porque Diário de um
fescenino é uma publicação encomendada pelo editor da Companhia das Letras,
Luiz Schwarcz, que mostrou o romance O
animal agonizante, de Philip Roth, a Fonseca e o desafiou a escrever uma
trama semelhante, com “a mesma voltagem provocativa”, segundo conta Sérgio
Augusto, em texto que vem como posfácio na edição de 2010.
Fonseca
aceitou o desafio imposto por Schwarcz, e o livro ficou pronto em 2003. O animal agonizante é, portanto, o
primeiro romance que estava na órbita criativa de Fonseca naquele momento, e o segundo
é um dos próprios romances de Fonseca, Bufo & Spallanzani.
Para
prosseguirmos na análise da diarística de Fonseca é preciso olhar por dentro os
dois romances citados. Em O animal
agonizante, David Kepesh aos 70 anos fala sobre a relação com uma aluna sua
em especial, a cubana-americana Consuela, jovem, bonita, inteligente e lasciva
como ele, fala sobre os amores que teve com várias alunas, enquanto mostra a
decadência do corpo, a aproximação da morte, o significado do fim para um homem
que passou a vida toda se dedicando à cultura, às artes, à literatura de modo
especial, e à saciação do desejo, que é impossível. O livro mostra o abismo
do desejo, e o drama que é isso no momento da queda. Este é o grande trunfo do
romance de Philip Roth.
Ivan Canabrava e Gustavo
Flávio - um duplo
Já em Bufo
& Spallanzani, Ivan Canabrava se vê envolvido na morte de uma
mulher rica – casada com um homem influente, chamada Delfina Delamare – cuja
investigação é feita pelo detetive Guedes.
Enquanto
Guedes investiga a morte de Delfina, a trama segue por outros caminhos contando
como Ivan se tornou escritor. Aos 20 anos, era professor primário
quando conheceu Zilda, que o fez mudar de emprego e trabalhar numa empresa de
seguros, onde testemunhou um golpe milionário em que o criminoso se fez passar
por morto, tomando uma toxina extraída do sapo cururu (Bufo marinus) misturada
a outra substância tóxica de uma planta (da família das compostas, como as
trepadeiras) cujo efeito deixa a pessoa em estado de catalepsia.
Ivan
descobriu como a manipulação foi feita. Depois fez a mesma coisa para provar
isso ao diretor da seguradora. Mas, em vez de ser promovido pela descoberta, foi
perseguido pela polícia e pelos capangas do executivo. Zilda então o deixou, e
ele conheceu Minolta, uma poeta sem grana e que havia sido despejada. Ivan a
convidou para ficar na casa dele.
Ao tentar
demonstrar que o corpo do golpista não estava enterrado no cemitério, Ivan
acabou matando um guarda e sendo preso num manicômio judiciário. Minolta e
amigos o ajudaram a fugir de lá. Ele e Minolta foram morar no interior, em
Iguaba, na Região dos Lagos, onde ele ficou por dez anos com Minolta, que o
incentivou a se tornar escritor. Criou o pseudônimo Gustavo Flávio e escreveu
dezenas de livros.
Ivan
Canabrava, no início, odeia as mulheres. Em homenagem a Gustave Flaubert, cria
seu pseudônimo Gustavo Flávio. “Como Flaubert, eu odiava as mulheres”, diz Gustavo
Flávio. Mas nessa fuga para o campo, ele descobre que Minolta o ensinou a amar
as mulheres, e quando volta de Iguaba é que tem o caso com Delfina. Ela é
encontrada morta. Ele, para escrever Bufo & Spallanzani, e obviamente fugir de novo de Guedes, vai para o Refúgio
do Pico do Gavião com outras pessoas, num ambiente bem Agatha Christie. Tanto é
um ambiente agathachristiano que o leitor descobre no final que Gustavo Flávio
é o assassino de Delfina, como em O
Assassinato de Roger Ackroyd, de Christie.
Voltando ao Diário
Como Gustavo
Flávio, Rufus tem envolvimento com as mulheres. Mas isso ele faz desde o
começo, e não as odeia, pelo contrário. Neste sentido, Rufus é um
antiflaubertiano. E como David Kepesh, Rufus é erudito e ama as mulheres. Para
não repetir nem um nem outro dos dois romances, pois ambos têm alguém como
interlocutor, ambos falam com alguém enquanto a narrativa é construída,
provavelmente por isso, Fonseca concebe a ideia do Diário para Rufus.
Mas não é
só isso, porque Rufus, ao ser concebido como alguém que usará um diário para
contar sua história sórdida, dentro da ficção é um autor também, e aí o que
entra em jogo é sua criatividade, sua maneira de jogar com o leitor. Ele é
consciente de como funciona um diário. Fala em arquivo-diário e autorretrato
disfarçado de diário (2010, p. 206), e diz que “um diário, como o nome indica,
é um registro de experiências, observações, sentimentos e atitudes do seu autor
e das suas interações com aqueles que o cercam” (2010, p. 9).
Enquanto
a trama de seus relacionamentos continuam como tônica da narrativa, algo por
debaixo da ponte, sob as turvas águas do romance, também vai acontecendo. Ao
longo dos registros, o leitor percebe o diálogo entre O animal agonizante e Bufo
& Spallanzani. No começo de O
animal agonizante, por exemplo, Kepesh diz: “Sou muito vulnerável à beleza
feminina, como você sabe. Todo mundo se torna indefeso diante de alguma coisa,
e no meu caso é isso. Diante de uma mulher bonita, não enxergo mais nada”
(2006, p. 9).
Já em Diário de um fescenino, Virna pergunta
para Rufus: “O que fez você se interessar por mim?”. E ele responde: “Sou
sensível à beleza feminina. (...) Sou ainda mais sensível à inteligência
feminina” (2010, p. 136).
As
intersecções são várias. Mas aqui, isso nos interessa apenas para mostrar a
razão de Diário ser um romance
metaficcional em seu grau máximo, uma vez que além do diálogo com outros
romances de forma acentuada e claramente girando no interior do personagem, a
própria ideia do diário é uma ideia falsa, criada por Rufus para ludibriar o leitor.
Rufus
diz não saber porque está escrevendo o diário, mas ao longo dele, à medida que
as entradas vão sendo registradas, o leitor percebe sinais de que não é bem
assim. Primeiro ele desdenha do diário, depois percebe que este tem uma força
concêntrica (2010, p. 85), e vai entendendo sua razão de ser e se entregando a
ele, ao ponto de questionar: “Se o sujeito escreve romance como bem entende, e
existe romance de todo tipo, porque o diário tem que seguir um molde? O meu é
assim como eu quero”, ou seja, cheio de diálogos e rememorações, citações,
reflexões etc, mas sobretudo, direcionado como ele quer que seja, levando o
leitor a acreditar numa coisa, enquanto quer dizer outra.
O termo fescenino
explica bastante o significado do romance. A palavra é sinônimo de libertino, “que
ou aquele que leva uma vida dissoluta, que se entrega imoderadamente a prazeres
sexuais”, segundo o Dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa. Sua etimologia vem dos habitantes de Fescênia, cidade
da Etrúria (Itália), famosa como centro de devassidão perto de Roma.
Rufus é
devasso, entrega-se aos prazeres sexuais. Mas, fescenino também é aquele que
difama os outros para se divertir. E assim é o protagonista em questão. Em A personagem de ficção, Antonio Cândido
fala em três elementos centrais para se entender um romance: enredo, personagem
e as ideias. “A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos.” A
personagem não é o essencial do romance, mas “é o elemento mais atuante.” (...)
“A construção estrutural é o maior responsável pela força e eficácia de um
romance” (1995, p. 55).
Neste
sentido, Rufus está dentro de uma estrutura complexa, que é alinhavada pela
ideia de diário, mas não mais pela ideia de um diário que registra coisas do
cotidiano, a partir do qual o autor o usa como plataforma e cria personagens
complexos. O diário aqui também pode ser falso, e neste momento, lançam-se os
dados da interpretação da análise feita até agora.
III
Vamos
falar de Rufus mais um pouco. Ele não se importa com as pessoas, é frio, só
pensa em sexo e comida, depois em literatura e morte. O resto ele vê ou percebe sem dar importância em primeiro plano, embora não esqueça de nada. Ele não ignora o que presencia, guarda
para si como informação.
Relapso
ou capcioso, pródigo e escritor fracassado (não escreve o Bildungsroman, nem
mesmo o primeiro livro foi ele quem escreveu; provavelmente, foi Elizabeth),
cínico, mentiroso, desastrado, pervertido, azarado e narcisista. Mas ao mesmo
tempo nos passa certa simpatia, porque também é engraçado, tem senso de humor,
é ingênuo (mulher manda ele bater, ele bate e depois é incriminado por isso) e
inocente, no sentido de não ter culpa de certas acusações que os personagens
lhe fazem, mas não é inocente das acusações do leitor. É um personagem complexo.
Para se
descobrir a ardilosa construção em seu diário, procuremos acompanhar duas
linhas de raciocínio. A primeira linha é a em que Rufus fala de si mesmo. Na
segunda, há o que Rufus diz sobre o que os outros dizem sobre ele e as
reflexões que ele escreve ao longo do diário.
Rufus
se aceita como uma pessoa pedante, e se autodenomina protagonista, mesmo
estando supostamente escrevendo um diário íntimo, em que a rigor não há
protagonista, uma vez que se fala apenas de si mesmo, não há reflexão (BLANCHOT,
2005). Mas se é protagonista, é porque há uma história sendo construída.
Considera-se hedonista preguiçoso, que escreveu cinco livros: Carrossel lúbrico; Ardendo nas florestas da noite; O
aprendiz; A órfã; Morte e insurreição. E mais um de conto
antes de conhecer Elizabeth, intitulado Contos.
A
mãe morreu a lhe dar à luz. O pai teve um enfarte quando ele era ainda bebê. Uma
vizinha, professora aposentada, o levou para a casa dela e de suas três irmãs, e elas cuidaram dele com desvelo. “Era como se
eu tivesse quatro mães”, diz. Depois elas foram morrendo, uma a uma, e ele
terminou de ser criado por quem herdou o apartamento onde vivia com as quatro
mulheres.
Sobre
o que Rufus diz sobre o que os outros dizem dele, algumas passagens revelam seu
caráter. Ele é suspeito de ter matado sua mulher, Elizabeth, mas nega isso aos
outros e ao leitor. Há passagens, no entanto, que mostram que Rufus está
mentindo, que quando diz uma coisa, o significado é outro. E que seu diário foi
criado depois de começar a ser acusado de ser um assassino, justamente para
ajudar sua mente a mentir melhor para si e para os outros. Com o passar do
tempo, o espelho refletiu demais sobre sua consciência e ele acabou entendendo
a si mesmo mais do que devia.
Neste
momento, Rufus já entende que conseguiu fazer a travessia pelo diário, que escreveu
um livro ficcionalmente coerente, publicável, que pode dar certo. Usou o diário
para falar dele, com artimanhas que revelam a si sem revelar. Um exemplo é
quando ele diz: “Os autores sempre procuram maneiras de se esconder”, supostamente
citando o teórico russo Mikhail Bakhtin.
Mais
adiante comenta: “O bom tradutor, como disse Paulo Rónai, ‘tem de farejar, por
trás de cada palavra, as segundas intenções do autor.’” E vaticina outra: “Só
Deus sabe as contradições que este diário pode conter”, citando o poeta inglês Byron.
Ou: “Nestas Memórias não se encontrarão todas as minhas aventuras; omiti as que
poderiam desagradar às pessoas que delas participavam, pois elas fariam má
figura”, citando Memórias de Casanova.
O diário começa
a forçá-lo a se questionar: “Alguém se conhece? (...) Foi Maurois quem disse
que a necessidade de se expressar literariamente resulta de um desajustamento,
ou conflito interior, que a pessoa não consegue resolver de outra forma.” Aqui
ele praticamente diz que está confessando literariamente, e que uma confissão
assim não é límpida, é torta, conflituosa, cheia de meneios que podem enganar o
leitor sem malícia.
Em um
momento de crise, Rufus começa a refletir e a se mostrar, não abertamente, mas
de modo hipotético, à meia luz:
O que sinto é uma
consciência de mim mesmo que me faz experimentar a angoisse referida pelos existencialistas ateus, como Sartre. Isso
será causado por eu estar escrevendo este meu autorretrato disfarçado de diário?
Estarei, inconscientemente, escrevendo este diário para descobrir quem sou,
trazer à tona os crimes que cometi, como o assassinato de Elizabeth, para
encontrar um sentido para a minha vida? (2010, p. 206)
O leitor
sabe que ele aqui também pode estar jogando, que ele também pode muito bem
saber o que está fazendo e não exatamente escrevendo um diário para revelar
inconscientemente seus crimes. É um jogo armado para se revelar, mas, à maneira
dos psicopatas inteligentíssimos, um jogo armado de forma consciente, embora
Rufus se diz usuário de remédios tarja preta.
Nesse
lusco-fusco de linguagem, a personagem de Fonseca usa e abusa da boa vontade do
leitor, fazendo mil e uma referências, lançando mil e uma pistas falsas, como
num autêntico romance policial, com a diferença de que, neste caso, o detetive
é única e exclusivamente o leitor.
Segundo Linda
Hutcheon, a metaficção tem essas características, que envolvem o leitor numa
história feita dentro de outra história. No caso de Diário de um fescenino, Rufus é uma ficção dentro de outra, porque
está dentro de um fato criado por ele mesmo, ao dizer que é apenas uma
hedonista que ama as mulheres. Dentro de sua história, de seu diário, com
entradas feitas por ele, claro, há uma série de crimes esboçados, que cabem ao
leitor juntá-los e pôr uma coerência naquilo. É o que o próprio Rufus espera.
“Metafiction”,
diz Hutcheon, “as it has now been named, is fiction about fiction – that is,
fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic
identity”
(1980, p. 1) É nessa linha que segue o texto de Fonseca, em que Rufus pinta e
borda com o leitor, por ser irônico, ri de si mesmo e dos outros, incluindo o
próprio leitor.
Para o
escritor e ensaísta turco, Orhan Pamuk, “ler um romance significa compreender o
mundo por uma lógica não cartesiana – ou seja, com a constante e inabalável
capacidade de acreditar ao mesmo tempo em ideias contraditórias” (2011, p. 22) E
segundo Ariano Suassuna, “toda verdadeira Arte não imita, recria, deforma e
transfigura a realidade” (2007, p. 39). É com esta diretriz de leitura e
entendimento sobre a literatura que o romance de Rubem Fonseca deve ser lido.
Diário de um fescenino é uma romance bipartido da linha
metaficcional, entre o policial e o erótico, filho de Agatha Christie e de um
filão genético bastante conhecido que vem de Petrônio, Sade, Bataille, até
chegar à escola americana de Philip Roth, seu modelo por parte da libertinagem.
Rufus
está no centro da trama como um escritor fracassado, há três anos sem escrever
um livro. Pressionado pelo editor, diz escrever o sexto romance (o sétimo
livro), um Bildungsroman, enquanto vai produzindo o diário. À medida que
escreve seu diário, exibindo erudição e a facilidade para ganhar mulheres, vai
tentando ao mesmo tempo se esconder e revelar o que provavelmente é, um
assassino, não dos crimes descritos, mas dos sutilmente encobertos, e um
mentiroso calculista, uma vez que o próprio diário deve ser uma criação posterior
aos fatos registrados, ou pelo menos criado com a intenção de registrar os
acontecimentos que antecederiam sua prisão por assassinato. Um falso diário.
Ele antecipa
fatos de seu próprio diário, de coisas que só vão acontecer no futuro. Só
saberia isso se estivesse inventado o diário posteriormente aos fatos. Um
exemplo é quando ele diz que os romances de que os leitores gostam são feitos
de temas batidos e aí enumera alguns, entre eles este: “Uma mulher, para se
vingar, inventa que foi estuprada pelo homem que ela ama e que a abandonou”. É
a história dele e de Virna, que se passará adiante, no futuro.
Aquilo
que aparenta ser, em Diário de um
fescenino, não é, e o que pode não ser, provavelmente é. Este é o grande
truque do romance. Além disso, sua força estética coloca o leitor na roda do
cômico, do risível e do moralmente contraditório e repulsivo, com quatro eixos
em torno dos quais tudo gira: sexo e comida, literatura e morte.
IV
Muitas
cenas podem ser tiradas do romance para ilustrar essas facetas estéticas. Em
uma delas, por exemplo, Rufus conta o seguinte, numa conversa com Lucia,
correspondendo a uma cena de humor:
“Pedi-lhe para deixar
de depilar os pelos do púbis e ela repetiu que eu não a amava mais. Aliás, esse
assunto acabou dando uma discussão idiota. Estávamos na cama, em meu apartamento,
quando eu disse que depilar os cabelos do púbis era o mesmo que vandalizar as
árvores de um lindo bosque. Lucia disse que eu era ridículo, respondi que
ridículo era o bigodinho à Adolf Hitler que sobrava depois da depilação. Ela
chamou-me de idiota ignorante, a depilação era feita para permitir o uso de
biquíni.” (2010, p. 64)
Entre as
cenas do que se pode chamar de risível, há uma em que Rufus está
conversando com Henriette, num momento
em que os dois já estão separados:
“‘Ela colocou silicone nos seios, você
deve ter notado. Pega no meu seio, anda, vê: tem silicone?’ Henriette sabia que
tinha seios lindos.
“‘Nós já acabamos, Henriette, nada mais temos
um com o outro.’
“‘E daí? Você me ensinou a ser cínica e
promíscua. Deita aqui, quero te chupar.’
“Eu havia ficado excitado ao acariciar
os seios de Henriette, mas a frase erótica foi o que realmente me estimulou.
Sou muito sensível às palavras.”
(2010, p. 45)
“Sou
muito sensível às palavras” faz rir e ao mesmo tempo remete à personagem de Roth,
que diz: “Sou muito vulnerável à beleza feminina.” Nessa toada, Diário de um fescenino vai cavando seu
lugar ao sol das narrativas ardilosas da literatura brasileira.
Rufus é um
assassino sui generis, porque mistura elementos de Agatha Christie em O assassinato de Roger Ackroyd. É
também um libertino que gosta de seduzir as mulheres, transar com elas até
perder o interesse e partir para outra, um escritor que não sabe usar sua
imaginação para criar tramas e por isso escreve em seus romances aquilo que se
passa em sua própria vida, mas num formato que ele não domina, até se encontrar
no diário, um formato perfeito para ele. O diário é seu romance de afirmação.
Sua
confissão, enquanto escreve, está entre o que diz de si mesmo, suas citações e
o que ele diz que os outros dizem, dialogando com seu modelo primário O animal agonizante, de Philip Roth, e
seu modelo secundário, Bufo & Spallanzani, do próprio Rubem Fonseca.
O diário
como plataforma, como veículo de uma forma expressiva vem de modo complexo, pois
extrapola o primeiro significado de uma escrita plana, sem profundidade, para
dar lugar a um tecido cheio de nuanças.
Em muitos outros romances que trazem o
diário como veículo da expressão literária, o narrador permanece mais ou menos
fiel à ideia de retrato do cotidiano, e dentro dessa ideia vai escavando os
significados de sua linguagem. No caso de Diário
de um fescenino, o autor vai além, consegue fazer algo novo com um formato
já rodado.
O diário
é um rio que o diarista atravessa, e não se despreze aqui a metáfora do espelho
das águas, porque é por meio delas que o narrador se revela, é nessa travessia
que ele se acha e se mostra.