A
palavra, sozinha, como unidade sintática, não dá conta de muita
coisa, embora consiga seus feitos. Nas tradicionais aulas de sintaxe,
aprendemos que silêncio, fogo e outros vocábulos carregam um
sentido prático, específico e poderoso, capaz de salvar vidas. Nas
artes de modo geral, ela pode ser combustível de algum mistério,
elemento-cebola de certas tramas, que vai sendo despido de seus
significados até que se vislumbram imagens estupendas, ou encerra-se
em um enigma para sempre.
Mas a
maneira como uma vai imbricando na outra, como umas saem do coração
das outras, e se abraçam, se beijam, ou viram-se as costas e se
pretendem tão diferentes que nos enganam, é quase mágico. Talvez
seja a verdadeira magia. Mais do que isso, ela, a palavra, revelada
no esplendor estético, salva o mundo, ao menos o mundo particular, e
juntas, elas, as palavras, servem-se de tijolos na construção da
morada do ser, a linguagem, para citar vagabunda e levianamente
Heidegger.
Quando
escavamos mui cuidadosamente cada palavra, trazemos à tona seus
velhos significados e não raro deixamos escapar uma exclamação:
“Então, é isso!”. Nessa aventura pela floresta verbal,
passeando por caminhos quase apagados pelo tempo e pela urgência da
fala, descobrimos ouro e ganga, flor e pedra, antigas urdiduras que
vêm transportando nossa consciência desde séculos, e pequenas
armadilhas também.
De vez em
quando, aventureiros mais argutos, que usam o patrimônio
cognoscitivo como o sol que ilumina o mundo, para citar Schopenhauer,
sobe ao topo das árvores mais altas dessa floresta e descobrem
paisagens inéditas. Outros descem nos vales, e de igual modo nos
servem com elementos da depressão e da escuridão de nós mesmos. E
há ainda, poucos, que fazem as três coisas, descem, sobem e se
nivelam, oferecendo-nos para sempre a genialidade no trato com as
palavras, com a edificação da linguagem.
As
palavras em conjunto formam textos, e texto é o tecido sobre o qual
se constrói a consciência. Mas elas separadas também agem, fazem
seu próprio texto e sua própria história. Se começarmos pelo
banal, temos o verbo conjugar, cujo significado é nada mais que pôr
jugo no tempo, nas pessoas e no modo de dizer. Jugo é canga, é
aquilo que se põe nos bois para que, juntos, carreguem a carga. O
verbo e o sujeito amarrados um ao outro, ou seja, conjugados,
transportam a carga semântica.
O
sujeito, portanto, ao falar, traz amarrado consigo o tempo, e para se
referir ao outro, ata-lhe o tempo e o modo, o que muitas vezes não o
faz com a melhor das intenções. A mesma palavra, jugo, aparece nas
relações maritais. Quando as pessoas se casam, põem-se jugos umas
nas outras, muito embora o jugo geralmente fique sob o controle do
marido, e por isso mesmo as mulheres, com razão, querem quebrar essa
tradição de estarem subjugadas.
O verbo
namorar escamoteou o amor. Mas ele está lá, presente no cerne do
seu significado. As forças interativas das palavras ignoram
barreiras, às vezes. Enamorado, em espanhol, por exemplo, quer dizer
apaixonado. Em inglês apaixonado é “in love”, ou seja “em
amor”. Essas duas acepções, em línguas de origens diferentes, se
aproximam do verbo namorar em português. É que namorar vem formado
por em + amor + ar. Em amorar, enamorar, namorar. O amor continua lá
dentro. Ou melhor, namorar é a busca íntima do amor.
Namorar
também é o que faz a porca com o parafuso. As expressões que vêm
dessa conjugação, a la casa de materiais de construção, são bem
eróticas, frequentemente pornográficas, como no verbo “to screw”,
em inglês, que quer dizer parafusar, gíria para o ato da cópula,
em uma linguagem adulta e íntima. Mas não em vão. A palavra porca,
que se refere à peça que serve como encaixe do parafuso, chama-se
porca justamente porque o tal parafuso se assemelha ao pingolim do
porco.
E a
grandeza prometida? Fica para outra ocasião, que pode ser oferecida
por uma alma mais elevada. Por enquanto, o importante é o leve
espanto e o nado de braçadas cautelosas. Porque se é floresta,
também é oceano. “E é doce o naufragar-me nesse mar.”
…
Nenhum comentário:
Postar um comentário