terça-feira, 18 de novembro de 2014

Consciência negra e sujeição moral

No início do capítulo IV de Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre diz que todo brasileiro traz na alma “a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e do negro.” É uma observação pertinente, com a qual qualquer um inteirado de nossa formação social concordaria. Mas lendo a sequência da análise, algo de solerte paira nas palavras do sociólogo pernambucano.

Ele completa que todo homem (todo brasileiro branco, ou herdeiro da brancura que fez desse brasileiro senhor) traz essa sombra “do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.” Ou seja, dá um tapinha nas costas de negros e mestiços do País, sugerindo a tese da democracia racial. Mas Freyre representa a parte da elite branca que se coloca como tutora do pensamento racial.

“Nosso primeiro companheiro de brinquedo” não é bem o termo. Vamos de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – ‘ai, nhonhô!’ – ao que eu retorquia: – ‘cala a boca, besta!’”

Como cobra nova, alguns membros da consciência negra dão o bote errado ao criticar Machado de Assis pelo suposto silêncio sobre nossa condição. A cena do chicote deixa claro o quanto ele soube inserir no imaginário social a dor do negro. Quem narra é Brás Cubas, homem branco da elite carioca, sobre sua infância, mas por trás da denúncia está um mestiço, um negro – gênio da narrativa – mostrando como os brancos donos do poder coagem moralmente os negros.

A manobra machadiana nos salva da sujeição moral, que nos vitimiza e nos afasta da consciência negra. Quem diz que Machado de Assis não tematizou o negro em sua condição histórica aceita o raciocínio de Freyre, na mesma linha da velha desculpa do sujeito que, após flagrado em discriminação racial, diz: “Não sou racista. Minha avó era mulata.”

Ora! Ter a avó mulata pode ser apenas mais uma razão para odiar os negros, enquanto o neto se sente, nos desvãos do inconsciente, obrigado a amá-la. Às vezes, o ódio aos negros advém justamente dos que não conseguem se desvencilhar desse afeto abnegado. O amor também tem seus truques de cativeiro.

Boa parte da discriminação racial no Brasil nasce do custo emocional da sujeição. O peso do preconceito e do racismo recai sobre a alma do mestiço incauto, que tenta se livrar da origem afro, não só escamoteando-a, mas valorizando apenas o que o discurso elitista branco (racista) aprova. Ele acredita que não há racismo no Brasil, só porque todo brasileiro traz na alma “a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e do negro.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 15/11/2014)

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