No início
do capítulo IV de Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre
diz que todo brasileiro traz na alma “a sombra, ou pelo menos a
pinta, do indígena e do negro.” É uma observação pertinente,
com a qual qualquer um inteirado de nossa formação social
concordaria. Mas lendo a sequência da análise, algo de solerte
paira nas palavras do sociólogo pernambucano.
Ele
completa que todo homem (todo brasileiro branco, ou herdeiro da
brancura que fez desse brasileiro senhor) traz essa sombra “do
moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.” Ou
seja, dá um tapinha nas costas de negros e mestiços do País,
sugerindo a tese da democracia racial. Mas Freyre representa a parte
da elite branca que se coloca como tutora do pensamento racial.
“Nosso
primeiro companheiro de brinquedo” não é bem o termo. Vamos de
Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Prudêncio,
um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu
trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil
voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo –
mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – ‘ai,
nhonhô!’ – ao que eu retorquia: – ‘cala a boca, besta!’”
Como
cobra nova, alguns membros da consciência negra dão o bote errado
ao criticar Machado de Assis pelo suposto silêncio sobre nossa
condição. A cena do chicote deixa claro o quanto ele soube inserir
no imaginário social a dor do negro. Quem narra é Brás Cubas,
homem branco da elite carioca, sobre sua infância, mas por trás da
denúncia está um mestiço, um negro – gênio da narrativa –
mostrando como os brancos donos do poder coagem moralmente os negros.
A manobra
machadiana nos salva da sujeição moral, que nos vitimiza e nos
afasta da consciência negra. Quem diz que Machado de Assis não
tematizou o negro em sua condição histórica aceita o raciocínio
de Freyre, na mesma linha da velha desculpa do sujeito que, após
flagrado em discriminação racial, diz: “Não sou racista. Minha
avó era mulata.”
Ora! Ter
a avó mulata pode ser apenas mais uma razão para odiar os negros,
enquanto o neto se sente, nos desvãos do inconsciente, obrigado a
amá-la. Às vezes, o ódio aos negros advém justamente dos que não
conseguem se desvencilhar desse afeto abnegado. O amor também tem
seus truques de cativeiro.
Boa parte
da discriminação racial no Brasil nasce do custo emocional da
sujeição. O peso do preconceito e do racismo recai sobre a alma do
mestiço incauto, que tenta se livrar da origem afro, não só
escamoteando-a, mas valorizando apenas o que o discurso elitista
branco (racista) aprova. Ele acredita que não há racismo no Brasil,
só porque todo brasileiro traz na alma “a sombra, ou pelo menos a
pinta, do indígena e do negro.”
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 15/11/2014)
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