domingo, 17 de dezembro de 2017

Moradas, de Angelus Silesius, com tradução de Marco Lucchesi


Marco Lucchesi, poeta e tradutor, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lançou recentemente em Goiânia a tradução do livro Moradas (Martelo Casa Editorial, 2017, 88 páginas), de Angelus Silesius, poeta germânico do século XVII, disseminador da mística cristã. Publiquei uma resenha no caderno de Cultura do Jornal Opção, que edito, mas trago para este espaço mais um pouco dessa apreciação.

A poesia há muito tempo vem ocupando o lugar da resistência. Aliás, a literatura como um todo. No caso da mística cristã, trata-se de um front especial porque é ainda mais complexo, por ser um texto difícil, falando da relação entre o terreno e o espiritual por metáforas deslizantes, mas ainda assim, ainda hoje, talvez por isso, por ser hoje, são versos interessantes.

São poemas curtinhos, com dois versos, conhecidos como dísticos, mas de uma densidade digna do esforço que se faz para compreendê-los. Lucchesi não só traduz os dísticos de Silesius como também trava um diálogo com o leitor por meio de dois textos, um antes dos poemas, “Uma Palavra”, à guisa de explicação das traduções, e outro, ao modo dos posfácios, mas escrito em sua época alemã, posto após os dísticos, “Com Silesius na Catedral”.

Em ambos, Lucchesi se refere aos haicais, gênero poético criado pelo japonês Matsu Bashô, caracterizado pelo rigor formal de 17 sílabas em três versos, sendo que os extremos são feitos com cinco sílabas e o do meio com sete, com a condição imperativa de se referir a uma das quatro estações do ano, estas, servindo como uma espécie de lado de fora do poema, a exterioridade do mundo, porque quase sempre a natureza do que se fala é interior, o que ocorre de fato no significado real do poema é o estado d´alma.

E aí, as duas formas, os dísticos místicos de Silesius, e os trísticos metafóricos de Bashô, se comunicam. A tradução foi feita em meados da década de 1990, quando Lucchesi estava na Alemanha, estudando filosofia. “Os versos de Silesius me aqueciam, como fósforos na madrugada, como frágeis salva-vidas”, diz Lucchesi no primeiro texto. Nessa mesma época, ele também era atraído pela concisão dos haicais. “Silesius e Bashô me acompanham neste território de pedra, em que tudo se concentra e se dispersa”, diz ele no segundo texto.

O diálogo entre as duas formas é interessante porque ambos conferem à poesia uma busca pela interioridade da vida, seja a fé ou a integração à natureza, uma espécie de diluição, de revelação da espiritualidade.

Cartografia das lutas internas

Quando Lucchesi esteve em Goiânia para divulgar o livro, ele disse que os dísticos são uma brevidade desconcertante, mas explosiva, com camadas de reflexões sobre a mística. “É uma espécie de vade-mécum espiritual, um atlas, uma pequena cartografia das grandes lutas internas, que a viagem mística é obrigada a enfrentar”, disse.

Em muitos dísticos, a comparação com o mineral, sendo o homem um corpo organizado no reino animal, e as metáforas do carbono, ao mesmo tempo que nos lembram o que somos, e o que sempre seremos se não houver a busca pela espiritualidade, também nos liga a uma força ancestral, quando existe esse laço entre homem e Deus. Como vemos em:

“Um homem virtuoso é como a pedra:
Desaba a tempestade, ele não quebra”

ou

“Homem, és um carvão e Deus é fogo e chama:
Escuro e tenebroso, se ele não te inflama.”

Por serem versos rápidos, além do significado da palavra, exige-se também a interpretação do silêncio, entre um dístico e outro. “É uma mística extremamente breve, mas nessa brevidade é como se ela rompesse com uma pequena centelha que rompe o silêncio e volta ao próprio silêncio de onde ela se originou”, lembra Lucchesi.

Neste caso, o poeta acessa um reino edificante, e ao leitor cabe uma aproximação dessa experiência, pois “toda a vivência da experiência mística é sempre transformadora e revolucionária.” Segundo Lucchesi, essa busca pela espiritualidade está presente em todas as culturas, de um modo ou de outro, logo, ela é universal e universalizante. “A literatura é tudo em todos, como a ideia do panteísmo, segundo o qual, Deus é tudo em todos.”

Espessura do ateísmo

Quem ficou de fora foram os ateus, tidos pelo poeta místico como “ovelha sem pastor”, “fonte sem água”. Mas Lucchesi dá um jeito de rearranjar isso, uma vez que Silesius é pré-iluminista, e via na linguagem um caráter divino.

Para o tradutor, neste momento, o que importa é o capacidade de diálogo que a poesia tem. O caráter revolucionário da mística cristã passa pela possibilidade dialogante da linguagem. “Independentemente de qual seja a religião, ou a espessura do ateísmo, não nos importa isso agora, o que nos importa é a construção do diálogo”, diz ele numa palestra, ao falar sobre o livro que traduzira. Vale conferir.


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