domingo, 12 de junho de 2011

No mundo veloz, um pit stop para o amor

Renato Russo (1960-1996): "sou um animal sentimental"


O artista popular pretende fazer de sua voz a voz de todos. Alguns atingem esse ideal com mais facilidade e com mais arte. É o caso de Renato Russo, com a banda Legião Urbana, que falou de amor como poucos e colocou em cada canção do gênero um sopro de desespero e sofreguidão, como é mesmo o amor romântico.

Ele trouxe em suas letras uma carga de paixão que é bem a cara da juventude em processo de descoberta – e desilusão – do mundo. Não eram só as letras, era a voz desajeitada, o ritmo, a leveza entre metais, e, claro, a comunicação direta ao coração dos jovens.

Só os jovens amam. Só a juventude sente o fulgor do amor, a dor, a febre, o dilaceramento, só o espírito aberto à experiência reveladora da fragilidade e da permissividade é capaz de amar apaixonadamente e ter vontade de dançar, cantar ao outro, cantar o outro. Não é a idade, definitivamente. É a alma, a alma.

Ouvir Legião não é só isso, claro. Ainda hoje, não é só o amor. Há o questionamento do poder, dos costumes, da falta de perspectiva aos próprios jovens, o questionamento da dignidade vilipendiada, da violência urbana. Como compositor, ele apontava o dedo para a cidade, onde todos fingem "viver decentemente" e ninguém se entende muito bem.

Mas no caso das histórias de amor e da natureza humana que Russo cantava, o que arrebatou muitos adolescentes, meninos e meninas, foi essa sua pegada romântica e rebelde, que acha que possui "todo o tempo do mundo", e ao mesmo tempo tem absoluta consciência de sua finitude. Daí a vontade de atropelar as horas e fazer tudo de uma vez.

Essa consciência de que o mundo é veloz fazia-o dizer que não tinha tempo a perder. E nesse sentido o amor vinha para aliviar a alma. O problema é que não aliviava nada. Era a felicidade perdida. E sentia necessidade de falar disso. Por outro lado, quem acha que falar de amor é tempo perdido, não gosta de Legião Urbana.

Questionamento

O amor aparece nas canções de Renato Russo como uma espécie de pit stop para consertar o estrago causado pela ferocidade do mundo que continua a mil, sem parar. "Eu também sei que dizem que não existe amor errado", diz em uma das canções de A tempestade – o livro dos dias, último álbum lançado pela Legião antes da morte de seu líder.

Russo faleceu aos 36 anos, em outubro de 1996. Este ano, portanto, celebram-se os 15 anos de sua morte, a musa velada de seu último trabalho. Ao longo da carreira, ele veio pontuando as canções de protesto, da atitude de roqueiro, com uma inegável vontade de entender o amor. Chegava ao limite da breguice total, do sentimentalismo rasgado. "Quem inventou o amor?/ Me explica por favor."

Mais do que querer dizer o que era o amor, Renato Russo se jogava no mar da indefinição para indagar sobre o assunto, perscrutando a natureza do sentimento amoroso. Para ele, amar era uma incógnita, não fazia muito sentido. Era coisa do coração. Em Eduardo e Mônica, ele questiona "Quem um dia irá dizer/ Que existe razão/ Nas coisas feitas pelo coração?/ E quem irá dizer/ Que não existe razão?".

Em suas canções, o amor quase sempre ficou para trás, e ele está na fossa. O amor é mais real quando fala de outros, como na própria canção Eduardo e Mônica. Aqui o amor parece ficar mais claro. É a história romântica entre duas pessoas completamente diferentes.

"Mesmo com tudo diferente, veio meio de repente uma vontade de se ver", diz a canção. O interessante é que a mulher aparece como um ser mais evoluído. Eduardo surge na música como uma pequena anta em estágio de evolução, salvo pelo amor de Mônica, salvo pela mulher. É típico de como Renato Russo via o mundo, avesso à grosseria machista, adepto da singeleza das coisas.

Era homossexual, mas não fazia muita firula em torno disso. Pelo menos em suas canções. Quase todas elas versavam um amor que servia para todos os tipos de relações. E estava correto. Afinal, o amor em si não toma partido, não é heterossexual, nem homossexual, é homogêneo, no sentido de ser capaz de se fundir na natureza subjetiva.

Plural

Quando lançou o primeiro álbum de estúdio, Legião Urbana, em 1985, já trazia uma série de futuros sucessos, como Geração coca-cola, Ainda é cedo e Será. Nesta última, ele já fala de amor. Ou melhor, indica a possibilidade daquilo que não é amor: a dominação de um, aproveitando a solidão do outro.

Mas tudo era indagação. Sempre procurou ser plural, tentando pôr pelo menos os dois lados da moeda, evocando o direito à dúvida, procurando não se colocar como o dono da razão. "Acho que entendo o que você quis dizer." É o tipo de coisa que ele gosta de falar em suas letras. "Acho que te amava, agora acho que te odeio", e assim vai.

"Meninos e meninas" está cheio de 'achos', que revelam um pouco da identidade de Renato Russo, não só a identidade sexual, mas a própria consciência, a vontade de estar aberto ao mundo e captar as contradições no pulo do gato. E parece que quanto mais tentava essa loucura, mas se sentia longe de todos, mais ficava só, porque todo mundo adora se rotular.

Ninguém entendeu Renato Russo quando quis gravar – e gravou – as canções que fizeram sucesso na voz da italiana Laura Pausini, como Strani amori e La solitudine. Elas falam disso, elas também ajudam o sujeito moderno a se reencontrar no mundo tão complicado de hoje, em que parece ser vergonhoso falar de amor.

"Sou um animal sentimental", diz ele em Sereníssima, do CD V, de 1991. Esse tipo de confissão arrebata a preferência de quem ainda quer lutar por alguma coisa, inclusive pela possibilidade de amar. Renato Russo falava de amor para todos os gostos.

Talvez por isso seu álbum mais expressivo, em termos de vendagem e de popularidade, tenha sido As quatro estações, de 1989. "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã", diz em Pais e filhos. Mas foi Monte Castelo a canção que virou hino de todo mundo.

Nesta canção, ele faz três citações, mas as pessoas se ligam em apenas duas delas, as mais explícitas. Falar de amor, no entanto, às vezes requer a habilidade do poeta, no sentido mais ambíguo da expressão, porque o compositor se condensou poeticamente nesta canção e ao mesmo tempo evocou o poeta máximo da língua portuguesa.

Em Monte Castelo, Renato Russo usou a imagem (tácita) da batalha homônima da Segunda Guerra Mundial, em que as tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) lutaram contra soldados nazistas. Ao situar a condição humana dentro desse recorte fatídico, com a violência em seu grau máximo, fica fácil compreender a súplica do amor.

"Ainda que eu falasse/ A língua dos homens/ E falasse a língua dos anjos,/ Sem amor eu nada seria." (...) "É só o amor/Que conhece o que é verdade", diz a canção, repassando um trecho das Cartas aos Coríntios, de Paulo, para depois citar Camões. "O amor é o fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer."

Renato Russo faz a palavra bíblica – que fala de um amor sacro – se transformar num hino universal do amor profano, o amor de todos, de homem e mulher, por homens e mulheres, em que há o interesse sexual e uma inquietação quântica, mutável (pleno de contradições) e reverberante sempre.

Ele foi um grande cúmplice da juventude, porque também era jovem, e o será sempre, porque seu espírito permaneceu em todas as suas canções. "Eu erro também... Eu minto também". Suas palavras são sempre polifônicas (marca do poeta que havia nele, leitor de Rimbaud). Nas histórias de errante para descobrir – ou simplesmente questionar – o amor, a grande vilã era a solidão.


A solidão é contrária ao amor, e no lirismo de Renato Russo ela figura como a negação mais marcante. "Tudo está em paz. Os dias são iguais. Se fosse só sentir saudade. Mas vem sempre algo mais. É uma dor que dói no peito. Pode rir agora, que estou sozinho."

O estado de espírito solitário aparece em várias canções da Legião Urbana, seja para contrapor ao sentimento amoroso, seja para ferir a vida ativa das contestações. Estar só significa não poder fazer nada, nem amar, nem conversar, nem fazer amigos, nem fazer amor.

Neste sentido, há um poema de Paulo Henriques Britto que diz o seguinte: "Nenhum sinal da solidão se vê/ lá onde o Amor corrói a carne a fundo./ Dentro da pele, no entanto, você/ é só você contra o mundo." Estar longe do amor é estar longe de tudo.


São visíveis (ou seria audíveis?) as queixas de Renato Russo em suas canções de amor e até nas de protesto (uma vez que viver, a vida em si, é uma forma de amar e de protestar). Mas ele se queixava mesmo era da solidão. Não cabe aqui xeretar a vida real do cantor, contudo, em suas canções, ele se sentia avassaladoramente só, e o amor se tornava, portanto, a eterna busca.

Em Vento no litoral, que fala de amor e solidão, ele diz: "aonde está você agora/ além de aqui dentro de mim?". É uma depressão só, e uma beleza das mais raras em melodia e letra.

Em todas as suas músicas, inúmeros versos expõem as credenciais com que muitos se identificam de alguma forma: "Eu me agarrava a ela, eu não tinha mais ninguém" (Ainda é cedo), "preciso de carinho" (Meninos e meninas), "é só você que me entende" (Índios), "muitos temores nascem do cansaço e da solidão" (Há tempos). "É complicado estar só" (Natália).

Não soa ridículo, nem fora do senso, dizer que um dos grandes legados de Renato Russo à juventude de todos os tempos foi essa necessidade de falar de amor. É o balanço do berço. Independente de que seja e quem o inventou, qual seja seu significado, vale a pena, sim, ouvir e falar de amor, sentir, viver, se perder e se reencontrar no amor. Afinal, o mundo anda tão complicado.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Os aventureiros do absoluto


Numa carta ao escritor russo Boris Pasternak, sua compatriota Marina Tsvetaeva, também escritora, disse: "Eu era um simples ser humano, entre vocês, os não humanos. Conheço a linhagem superior de vocês..." A declaração é um sol de clareza sobre a superioridade espiritual dessas pessoas dotadas de altíssimo poder de expressão verbal.

Não podemos competir com elas. Muitas vezes sequer podemos segui-las, compreendê-las, sem o auxílio de um bastão. E é aí que entra o papel dos intermediários, dos mediadores do verbo, ou melhor, dos tradutores desse universo criador tão distante de nós, tão profundo, que é o da alta literatura, da concepção da beleza arquitetada na palavra.

Poderia ser também a beleza forjada na pintura ou moldada na pedra, a beleza erigida a partir da música ou da imagem cinematográfica, mas me refiro à literatura a propósito de A beleza salvará o mundo (Difel, 2011, 352 páginas, tradução de Caio Meira, R$ 45,00), do franco-búlgaro Tzvetan Todorov.

Nesse livro edificante para quem se interessa pela literatura e seus procedimentos estéticos, Todorov entrelaça vida e obra de três escritores que entregaram a própria existência à arte: o irlandês Oscar Wilde (1854-1900), o tcheco Rainer Maria Rilke (1875-1926) e a russa Marina Tsvetaeva (1892-1941).

Significa dizer que não tiveram uma existência comum, e que, para eles, suas obras falavam mais alto e eram mil vezes mais interessantes do que suas vidas. Para alguns deles, inclusive, "a vida cotidiana do artista de gênio é feita de misérias e de sofrimento". E é assim, não por capricho, mas para que se dediquem à busca da grandeza espiritual, da beleza repousada no divino, no colo dos deuses.

Essencial

Por isso mesmo é que jogar luz nessa existência que prefere a arte à vida banal, que busca as alturas pela manipulação verbal, é de grande valor. Quanto mais o poeta se afasta do comum para elevar sua obra, para abrir os poros de sua sensibilidade, mais interessante se torna – mesmo à revelia – a sua própria vida.

O título original do ensaio de Todorov traz a marca daquilo que foram seus objetos de estudo, e que a tradução em português escanteou para o subtítulo: os aventureiros do absoluto. Eles asseguravam que a harmonia do mundo depende da beleza que o verdadeiro artista produz.

Para eles, há uma diferença entre viver as experiências do mundo de forma ordinária e captar essas experiências para transformá-las em beleza. Fizeram isso cada um a seu modo, mas todos concordavam com a ideia segundo a qual "a arte mantém-se num nível de intensidade que a vida só vem a conhecer excepcionalmente."

O absoluto aqui se refere à essência da vida, à concentração máxima dos efeitos dessa vida nas escolhas do indivíduo, o contrário do que acontece quando se quer passear pela existência absorvendo apenas aquilo que se oferece no cotidiano simples, a esfera relativa da vida. O absoluto é o que Nietzsche chamava de inaudito, uma beleza extrema só alcançada por meio da música.

No caso de Wilde, Rilke e Tsvetaeva, para citar apenas os personagens de Todorov, a poesia dá conta desse recado, o toque mágico do verbo manipulado com destreza a partir das filtragens da própria vida também consegue atingir esse grau máximo, criando uma beleza indispensável à condição humana, sem a qual o mundo corre perigo, sem a qual, é como viver no inferno.

Só a beleza salva o mundo, eis a concepção desses aventureiros. Equivale a dizer que só a arte é capaz de tirar o humano da miséria terrena e travar um contato com o divino, abrir um portal que ligará o homem comum aos deuses, a esfera celeste da existência. E os poetas, os literatos de alta sensibilidade e poder de concentração, é que têm essa chave.

Diáspora

Se os poetas são essa via de passagem entre o absoluto e a vida relativa, autores como Todorov esclarecem como isso se dá de maneira bem mais acessível. O escritor búlgaro já vem nessa missão de longa data. Seus livros servem de chave para compreendermos a efusão do mundo moderno, da contemporaneidade e das transformações do espírito ao longo de nossa história.

Ele é autor de livros como A conquista da América, em que analisa a descoberta do Novo Mundo pelos espanhóis, colocando esse evento no centro da descoberta do outro, que culminaria na chamada cultura híbrida que somos hoje. Também escreveu O homem desenraizado, um ensaio autobiográfico que explica sua própria condição de homem diaspórico.

Todorov nasceu em Sófia, Bulgária, em 1939, sob o regime comunista, que ele aprendeu a abominar. Aos 24 anos se exilou em Paris, onde construiu toda sua carreira e vida, inclusive adotando a língua francesa em sua obra. Por isso mesmo, Todorov consegue compreender bem a amplitude de alma desses três aventureiros, que também experimentaram a diáspora.

Segundo ele, existem várias formas de se viver a "aspiração à plenitude e à realização interior", a busca pelo absoluto. A religião sempre foi a mais comum delas. Durante muito tempo, esta colocou as outras formas à margem da consciência, apontando-as como fraudes do espírito.

Mas pelo menos desde o século XVIII, uma revolução começou a operar na maneira de as pessoas verem a vida, no Ocidente. "A referência ao mundo divino, encarnado pela religião, começou a dar lugar a valores puramente humanos." E a poesia, a arte literária, que sempre procurou atingir o absoluto, passou a ser uma escolha clara desse desígnio.

A diferença é que na religião a busca é coletiva, e na poesia, é individual. Isso porque "a obra de arte, certa ou errada, nos dá em si uma sensação de plenitude, de realização e de perfeição que, por outro lado pedimos à nossa vida", diz Todorov.

Ele lembra, no entanto, que buscar a beleza da existência não exige a prática de qualquer arte que seja, nem consumir obras-primas. Mas há uma vantagem nessa prática ou nesse consumo. É que "a obra de arte é simplesmente o local em que esses esforços produziram seu resultado mais brilhante, onde são, por conseguinte, mais fáceis de ser observados."

Lado hostil

No caso da prática, os aventureiros do absoluto buscaram, cada um a seu modo, a convivência com os deuses, as esferas mais altas do espírito humano, pagando o preço da solidão e da tragédia pessoal que se tornaram suas vidas. Mas estavam conscientes disso: "para aceder ao absoluto, deve-se renunciar ao relativo."

Foi assim que viveu Wilde. Para ele, a beleza era a única coisa que importava na existência humana. Mas em sua concepção, a beleza, a estética, dizia respeito apenas ao belo. O belo encerrava a verdade da vida, o prazer e o sucesso. Wilde ignorava a desgraça humana, era adorado por todo mundo, vivia como um dândi, aceito nas mais altas rodas das sociedades inglesa e francesa.

No entanto, ao ignorar que a vida também oferece um lado hostil, e se esquecer de lançar no arquétipo de sua existência essa possibilidade, não conseguiu sobreviver após os dois anos de trabalhos forçados ao ser condenado por "atos grosseiramente imorais", leia-se, por ser homossexual. Quando sai da cadeia, sem o cortejo de antes, se autoexila na França, até morrer em Paris, três anos depois.

Já Rilke, diz Todorov, como Wilde, também "pensa que a busca do absoluto merece tornar-se o ideal da vida humana." Mas para ele não é a própria vida que tem de ser bela, e sim a obra de arte. Rilke então não ignora apenas parte da vida relativa, como Wilde, mas toda ela. Prefere a solidão, o isolamento para criar e escrever.

Com isso, o poeta sempre se autossabotou nas relações de amizade e de amor. Entre suas grandes paixões estiveram Lou Andreas-Salomé e Magda von Hattingberg. Sofria dores físicas constantes, passou por várias casas de saúde, mas tentava submetê-las ao seu ideal criativo. Mais tarde se descobre com leucemia, doença que o mataria depois.

Para Todorov, esta é a tragédia do poeta tcheco. Seu destino não é a solidão. "É a tentativa – frustrada – de fugir dela, a necessidade contraditória, e por isso trágica, de buscar e ao mesmo tempo temer o amor."

Lição

Ao contrário do que fizeram Wilde e Rilke, Tsvetaeva viveu mergulhada no sofrimento da vida prática, fazendo desta experiência objeto de sua poética, a angústia retrabalhada para virar beleza. Ela também renunciou à vida relativa, mas apenas como pessoa, não como poeta.

Como poeta e escritora, Tsvetaeva sangrou sua existência com o punhal da própria realidade que a cercava. O absoluto de sua obra foi alcançado por meio da tragédia de sua vida. Viveu a experiência de ser perseguida pelos vencedores da Revolução Russa, sofreu as consequências da guerra civil. Uma de suas filhas morreu de fome.

Exilou-se em Paris com a família e o marido, que depois se tornou agente secreto dos soviéticos, voltando para Moscou. Mas em 1941, os nazistas invadem a União Soviética e começa o cerco e a perseguição novamente, e a família teve de fugir para outra cidade. Ela, no entanto, não suporta a pressão e se mata.

A beleza salvará o mundo é um livro para lá de interessante justamente por narrar essa experiência poética e de vida de três grandes espíritos, autores de obras que continuam servindo de exemplo estético. Segundo Todorov, quem quer mergulhar nesse mar de contradição que é a própria vida, nessa busca do absoluto, sai ganhando com a lição que eles têm a nos dar. (Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 05/06/2011)

sábado, 4 de junho de 2011

De literatura e outros equívocos


Recentemente, quando o escritor norte-americano Philip Roth ganhou o Man Booker Internacional, uma das juradas pediu para sair. Não compactuou com a decisão da maioria que elegeu a obra de Roth a um dos prêmios mais importantes da literatura em língua inglesa. Sua alegação é de que ele escreve sempre sobre a mesma coisa.

É uma declaração risível, hilária mesma, porque, ao que se sabe, um autor, um bom autor, escreve sempre sobre a mesma coisa, até morrer. Quando se trata de um gênio, aí fica bem mais difícil perceber essa constância, essa imutabilidade do assunto, porque a suntuosidade da linguagem roça o lado sul do extremo.

No caso de manter o martelo no mesmo prego, o que varia é o manejo da linguagem, é a maneira como o escritor pega a vida pelo chifre e desfia seus mistérios inacabáveis. Como Roth, vários autores são assim, numa variação mínima que não vai além dos 45 graus. Mas quase tudo que eles escrevem é genial.

Vendo as coisas por esse ângulo, há algo de Philip Roth na literatura do paranaense Miguel Sanches Neto. Primeiro porque mantém uma espécie de "interesse erótico pela realidade", para citar um certo personagem. Neste sentido, ele deve estar entre Roth e o sul-africano J. M. Coetzee, se ainda houver espaço a comparações.

Mas não só por isso. A obra em construção de Sanches Neto também não varia muito na superfície. Existe algum livro dele em que não haja livros e leitores, criação literária, a arte de narrar? Talvez não. Nem mesmo A primeira mulher escapou dessa pegada. Em Chá das cinco com o Vampiro, o escritor radicalizou e tentou dar cabo a essa veia insaciável da metalinguagem.

Mas agora, sua recente publicação traz a prova dos nove. Então você quer ser escritor? (Record, 2011, 224 páginas, R$ 32,90) é uma coletânea de contos recuperados e retrabalhados, em sua maioria, em que o autor explora o subterrâneo da vida por meio de histórias simples. Na pele de alguns textos, há sexo, mulher e literatura.

Neste livro, no entanto, o extraordinário é a comoção fisgada no leitor pela clara consciência despertada de que embaixo das águas plácidas do texto há um turbilhão de sentimentos. Mas Sanches Neto já não precisa comprovar mais nada há um bom tempo. O leitor vem ao seu encontro para ler um grande escritor.

Desejo

Sua literatura arrasta, com a força criativa, toda uma tradição literária. Ao mesmo tempo, na boca da prosa está a própria voz do autor. No conto Árvores submersas, a poeticidade do título se estende à narrativa, acompanhando o editor Marlus em sua viagem à procura de um poeta recluso.

Marlus viaja de Curitiba a uma cidadezinha do interior do Paraná, Marechal Cândido Rondon, procurando a casa de Último Mendes. Lá, não consegue falar com ele, mas conhece a mulher do poeta, bonita e jovem. "Ele olhou sua bunda formosa, as pernas roliças, as unhas dos pés pintadas, as sandálias baixas."

Neste conto, cavando o som e o sentido das palavras mais essenciais, como Deus, homem, mulher, poesia e autor, Sanches Neto vai revelando uma aventura muito mais intrigante, a do desejo. Mas não um desejo puro e simples. O que se vê submerso é o entrelaçamento entre vida criativa (literatura), a busca estética, e o imperativo do sexo, do desejo bruto.

É como se vida e literatura se comunicassem pelos poros desse desejo. Sem sangue, sexo e carne, sem pulso, sem angústia não há vida. Nem literatura. Os contos de Então você quer ser escritor? trazem a marca dessa dualidade, uma dualidade presente também nas camadas internas do texto, naquilo que não se vê no primeiro plano.

Vida e morte

No conto O tamanho do mundo, por exemplo, o leitor se depara com uma narração infantil, a voz de um garoto que lida com a morte do pai. Ele conta essa história com simpleza e emoção. Ele desvela sua pequena crise, que nasce daquela circunstância da morte, com uma espantosa naturalidade.

Primeiro o garoto conta como é sua escola, o que faz e pensa quando está lá. Depois vai entrando no universo familiar. Fala do pai, da mãe e da irmã. Comenta que seu pai faz compras num armazém para pagar no final do mês. Uma espécie de crediário à base da confiança entre as partes.

Numa dessas compras, o narrador mirim amargou a cobrança do dono do armazém e de outros credores, comentando que o pai fazia tempo não pagava ninguém. Quando este voltou de viagem, ficou indignado. "Falam isso para criança, quero ver se têm coragem de falar na minha fuça."

"E me levou no armazém", narra o garoto. "Fez uma compra imensa, até doce comprou para mim, e mandou pôr na conta e o dono não abriu a boca. Senti orgulho do pai, mesmo sem dinheiro era respeitado." Essa é a visão de uma criança, que ao ser chamada em plena terça-feira, na escola, imaginou ser feriado e que em sua casa haveria uma festa.

Nesse dia, sua irmã e ele voltaram para casa mais cedo, depois de ganharem doce do tio, que fora buscá-los. "Ao abrir o portão, esperávamos ser surpreendidos pela casa toda enfeitada, pelo cheiro de comida. Estávamos atentos a tudo que acontecia ao nosso redor. Na cozinha, assim que nos viu, a mãe falou:

"— O pai de vocês morreu.

"E a gente ainda manteve o sorriso, esperando a festa que nunca existiu."

O pai havia levado um tiro na cabeça, por acidente, dizia a mãe. Além da dualidade entre morte e vida, que aparece numa espécie de dança macabra pelas palavras de uma criança, é bem provável que a história oculta desse conto seja a profissão do homem que morreu.

Talvez fosse um assassino, um emissário da morte que acabou achando a sua própria. As marcações verbais são sutis neste sentido, mas pelo menos uma delas chama a atenção, que é o fato de ser valentão. Faz compra fiado e não paga, e ninguém tem coragem de lhe dizer isso pessoalmente.

A narrativa do menino fica, portanto, entre a inocência e o real, onde a imaginação, a vida e a morte se completam. É a própria literatura. No conto que traz o título do livro, talvez o interessante seja a atenção pedida ao leitor. O título é uma clara provocação. Nele, um escritor dá aulas de escrita criativa, só para ganhar uns trocados, mas detesta a mediocridade dos alunos.

Grau

Em nenhum momento, a não ser no título, claro, o narrador personagem fala a alguém a tal frase. Sua narração é sobre um equívoco. Certo dia se depara na livraria com um livro intitulado "Contos eróticos", de Lúcia de Souza, sua ex-aluna, lembra, e rememora o tempo em que ela estava num de seus módulos.

O conto é essa divagação, entre o fazer literário, as intenções equivocadas dos candidatos a escritor e a manifestação do desejo, mais uma vez. Quis comprar o livro, não pelo interesse na literatura da moça, mas para sondar suas fantasias. "Fui ao caixa e paguei o livro como quem compra ingresso para um filme pornô."

A ironia de Sanches Neto neste conto está nas frases clichês do narrador, que ri de seus alunos, por não terem ideia do que é literatura, mas ele mesmo também cai na esparrela do antiliterário. "Pela ficção, nós nos livramos de alteridades incômodas", diz. Ou ainda: "O pseudopoeta é mais atitude do que linguagem. Ao menor pretexto, lê ou declama seus poemas."

As frases, talvez tenham seu grau de verdade, mas no texto soam como equívocos. Em todo caso, não faz diferença. "Disso é feita a vida; a vida e a literatura. De equívocos e pequenas covardias", finaliza o narrador, numa constatação que mais uma vez revela toda a intenção do autor, a de expor o equívoco e, ao mesmo tempo, dar uma aula de estética.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 29/05/2011)