sábado, 4 de junho de 2011

De literatura e outros equívocos


Recentemente, quando o escritor norte-americano Philip Roth ganhou o Man Booker Internacional, uma das juradas pediu para sair. Não compactuou com a decisão da maioria que elegeu a obra de Roth a um dos prêmios mais importantes da literatura em língua inglesa. Sua alegação é de que ele escreve sempre sobre a mesma coisa.

É uma declaração risível, hilária mesma, porque, ao que se sabe, um autor, um bom autor, escreve sempre sobre a mesma coisa, até morrer. Quando se trata de um gênio, aí fica bem mais difícil perceber essa constância, essa imutabilidade do assunto, porque a suntuosidade da linguagem roça o lado sul do extremo.

No caso de manter o martelo no mesmo prego, o que varia é o manejo da linguagem, é a maneira como o escritor pega a vida pelo chifre e desfia seus mistérios inacabáveis. Como Roth, vários autores são assim, numa variação mínima que não vai além dos 45 graus. Mas quase tudo que eles escrevem é genial.

Vendo as coisas por esse ângulo, há algo de Philip Roth na literatura do paranaense Miguel Sanches Neto. Primeiro porque mantém uma espécie de "interesse erótico pela realidade", para citar um certo personagem. Neste sentido, ele deve estar entre Roth e o sul-africano J. M. Coetzee, se ainda houver espaço a comparações.

Mas não só por isso. A obra em construção de Sanches Neto também não varia muito na superfície. Existe algum livro dele em que não haja livros e leitores, criação literária, a arte de narrar? Talvez não. Nem mesmo A primeira mulher escapou dessa pegada. Em Chá das cinco com o Vampiro, o escritor radicalizou e tentou dar cabo a essa veia insaciável da metalinguagem.

Mas agora, sua recente publicação traz a prova dos nove. Então você quer ser escritor? (Record, 2011, 224 páginas, R$ 32,90) é uma coletânea de contos recuperados e retrabalhados, em sua maioria, em que o autor explora o subterrâneo da vida por meio de histórias simples. Na pele de alguns textos, há sexo, mulher e literatura.

Neste livro, no entanto, o extraordinário é a comoção fisgada no leitor pela clara consciência despertada de que embaixo das águas plácidas do texto há um turbilhão de sentimentos. Mas Sanches Neto já não precisa comprovar mais nada há um bom tempo. O leitor vem ao seu encontro para ler um grande escritor.

Desejo

Sua literatura arrasta, com a força criativa, toda uma tradição literária. Ao mesmo tempo, na boca da prosa está a própria voz do autor. No conto Árvores submersas, a poeticidade do título se estende à narrativa, acompanhando o editor Marlus em sua viagem à procura de um poeta recluso.

Marlus viaja de Curitiba a uma cidadezinha do interior do Paraná, Marechal Cândido Rondon, procurando a casa de Último Mendes. Lá, não consegue falar com ele, mas conhece a mulher do poeta, bonita e jovem. "Ele olhou sua bunda formosa, as pernas roliças, as unhas dos pés pintadas, as sandálias baixas."

Neste conto, cavando o som e o sentido das palavras mais essenciais, como Deus, homem, mulher, poesia e autor, Sanches Neto vai revelando uma aventura muito mais intrigante, a do desejo. Mas não um desejo puro e simples. O que se vê submerso é o entrelaçamento entre vida criativa (literatura), a busca estética, e o imperativo do sexo, do desejo bruto.

É como se vida e literatura se comunicassem pelos poros desse desejo. Sem sangue, sexo e carne, sem pulso, sem angústia não há vida. Nem literatura. Os contos de Então você quer ser escritor? trazem a marca dessa dualidade, uma dualidade presente também nas camadas internas do texto, naquilo que não se vê no primeiro plano.

Vida e morte

No conto O tamanho do mundo, por exemplo, o leitor se depara com uma narração infantil, a voz de um garoto que lida com a morte do pai. Ele conta essa história com simpleza e emoção. Ele desvela sua pequena crise, que nasce daquela circunstância da morte, com uma espantosa naturalidade.

Primeiro o garoto conta como é sua escola, o que faz e pensa quando está lá. Depois vai entrando no universo familiar. Fala do pai, da mãe e da irmã. Comenta que seu pai faz compras num armazém para pagar no final do mês. Uma espécie de crediário à base da confiança entre as partes.

Numa dessas compras, o narrador mirim amargou a cobrança do dono do armazém e de outros credores, comentando que o pai fazia tempo não pagava ninguém. Quando este voltou de viagem, ficou indignado. "Falam isso para criança, quero ver se têm coragem de falar na minha fuça."

"E me levou no armazém", narra o garoto. "Fez uma compra imensa, até doce comprou para mim, e mandou pôr na conta e o dono não abriu a boca. Senti orgulho do pai, mesmo sem dinheiro era respeitado." Essa é a visão de uma criança, que ao ser chamada em plena terça-feira, na escola, imaginou ser feriado e que em sua casa haveria uma festa.

Nesse dia, sua irmã e ele voltaram para casa mais cedo, depois de ganharem doce do tio, que fora buscá-los. "Ao abrir o portão, esperávamos ser surpreendidos pela casa toda enfeitada, pelo cheiro de comida. Estávamos atentos a tudo que acontecia ao nosso redor. Na cozinha, assim que nos viu, a mãe falou:

"— O pai de vocês morreu.

"E a gente ainda manteve o sorriso, esperando a festa que nunca existiu."

O pai havia levado um tiro na cabeça, por acidente, dizia a mãe. Além da dualidade entre morte e vida, que aparece numa espécie de dança macabra pelas palavras de uma criança, é bem provável que a história oculta desse conto seja a profissão do homem que morreu.

Talvez fosse um assassino, um emissário da morte que acabou achando a sua própria. As marcações verbais são sutis neste sentido, mas pelo menos uma delas chama a atenção, que é o fato de ser valentão. Faz compra fiado e não paga, e ninguém tem coragem de lhe dizer isso pessoalmente.

A narrativa do menino fica, portanto, entre a inocência e o real, onde a imaginação, a vida e a morte se completam. É a própria literatura. No conto que traz o título do livro, talvez o interessante seja a atenção pedida ao leitor. O título é uma clara provocação. Nele, um escritor dá aulas de escrita criativa, só para ganhar uns trocados, mas detesta a mediocridade dos alunos.

Grau

Em nenhum momento, a não ser no título, claro, o narrador personagem fala a alguém a tal frase. Sua narração é sobre um equívoco. Certo dia se depara na livraria com um livro intitulado "Contos eróticos", de Lúcia de Souza, sua ex-aluna, lembra, e rememora o tempo em que ela estava num de seus módulos.

O conto é essa divagação, entre o fazer literário, as intenções equivocadas dos candidatos a escritor e a manifestação do desejo, mais uma vez. Quis comprar o livro, não pelo interesse na literatura da moça, mas para sondar suas fantasias. "Fui ao caixa e paguei o livro como quem compra ingresso para um filme pornô."

A ironia de Sanches Neto neste conto está nas frases clichês do narrador, que ri de seus alunos, por não terem ideia do que é literatura, mas ele mesmo também cai na esparrela do antiliterário. "Pela ficção, nós nos livramos de alteridades incômodas", diz. Ou ainda: "O pseudopoeta é mais atitude do que linguagem. Ao menor pretexto, lê ou declama seus poemas."

As frases, talvez tenham seu grau de verdade, mas no texto soam como equívocos. Em todo caso, não faz diferença. "Disso é feita a vida; a vida e a literatura. De equívocos e pequenas covardias", finaliza o narrador, numa constatação que mais uma vez revela toda a intenção do autor, a de expor o equívoco e, ao mesmo tempo, dar uma aula de estética.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 29/05/2011)

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