Numa carta ao escritor russo Boris Pasternak, sua compatriota Marina Tsvetaeva, também escritora, disse: "Eu era um simples ser humano, entre vocês, os não humanos. Conheço a linhagem superior de vocês..." A declaração é um sol de clareza sobre a superioridade espiritual dessas pessoas dotadas de altíssimo poder de expressão verbal.
Não podemos competir com elas. Muitas vezes sequer podemos segui-las, compreendê-las, sem o auxílio de um bastão. E é aí que entra o papel dos intermediários, dos mediadores do verbo, ou melhor, dos tradutores desse universo criador tão distante de nós, tão profundo, que é o da alta literatura, da concepção da beleza arquitetada na palavra.
Poderia ser também a beleza forjada na pintura ou moldada na pedra, a beleza erigida a partir da música ou da imagem cinematográfica, mas me refiro à literatura a propósito de A beleza salvará o mundo (Difel, 2011, 352 páginas, tradução de Caio Meira, R$ 45,00), do franco-búlgaro Tzvetan Todorov.
Nesse livro edificante para quem se interessa pela literatura e seus procedimentos estéticos, Todorov entrelaça vida e obra de três escritores que entregaram a própria existência à arte: o irlandês Oscar Wilde (1854-1900), o tcheco Rainer Maria Rilke (1875-1926) e a russa Marina Tsvetaeva (1892-1941).
Significa dizer que não tiveram uma existência comum, e que, para eles, suas obras falavam mais alto e eram mil vezes mais interessantes do que suas vidas. Para alguns deles, inclusive, "a vida cotidiana do artista de gênio é feita de misérias e de sofrimento". E é assim, não por capricho, mas para que se dediquem à busca da grandeza espiritual, da beleza repousada no divino, no colo dos deuses.
Essencial
Por isso mesmo é que jogar luz nessa existência que prefere a arte à vida banal, que busca as alturas pela manipulação verbal, é de grande valor. Quanto mais o poeta se afasta do comum para elevar sua obra, para abrir os poros de sua sensibilidade, mais interessante se torna – mesmo à revelia – a sua própria vida.
O título original do ensaio de Todorov traz a marca daquilo que foram seus objetos de estudo, e que a tradução em português escanteou para o subtítulo: os aventureiros do absoluto. Eles asseguravam que a harmonia do mundo depende da beleza que o verdadeiro artista produz.
Para eles, há uma diferença entre viver as experiências do mundo de forma ordinária e captar essas experiências para transformá-las em beleza. Fizeram isso cada um a seu modo, mas todos concordavam com a ideia segundo a qual "a arte mantém-se num nível de intensidade que a vida só vem a conhecer excepcionalmente."
O absoluto aqui se refere à essência da vida, à concentração máxima dos efeitos dessa vida nas escolhas do indivíduo, o contrário do que acontece quando se quer passear pela existência absorvendo apenas aquilo que se oferece no cotidiano simples, a esfera relativa da vida. O absoluto é o que Nietzsche chamava de inaudito, uma beleza extrema só alcançada por meio da música.
No caso de Wilde, Rilke e Tsvetaeva, para citar apenas os personagens de Todorov, a poesia dá conta desse recado, o toque mágico do verbo manipulado com destreza a partir das filtragens da própria vida também consegue atingir esse grau máximo, criando uma beleza indispensável à condição humana, sem a qual o mundo corre perigo, sem a qual, é como viver no inferno.
Só a beleza salva o mundo, eis a concepção desses aventureiros. Equivale a dizer que só a arte é capaz de tirar o humano da miséria terrena e travar um contato com o divino, abrir um portal que ligará o homem comum aos deuses, a esfera celeste da existência. E os poetas, os literatos de alta sensibilidade e poder de concentração, é que têm essa chave.
Diáspora
Se os poetas são essa via de passagem entre o absoluto e a vida relativa, autores como Todorov esclarecem como isso se dá de maneira bem mais acessível. O escritor búlgaro já vem nessa missão de longa data. Seus livros servem de chave para compreendermos a efusão do mundo moderno, da contemporaneidade e das transformações do espírito ao longo de nossa história.
Ele é autor de livros como A conquista da América, em que analisa a descoberta do Novo Mundo pelos espanhóis, colocando esse evento no centro da descoberta do outro, que culminaria na chamada cultura híbrida que somos hoje. Também escreveu O homem desenraizado, um ensaio autobiográfico que explica sua própria condição de homem diaspórico.
Todorov nasceu em Sófia, Bulgária, em 1939, sob o regime comunista, que ele aprendeu a abominar. Aos 24 anos se exilou em Paris, onde construiu toda sua carreira e vida, inclusive adotando a língua francesa em sua obra. Por isso mesmo, Todorov consegue compreender bem a amplitude de alma desses três aventureiros, que também experimentaram a diáspora.
Segundo ele, existem várias formas de se viver a "aspiração à plenitude e à realização interior", a busca pelo absoluto. A religião sempre foi a mais comum delas. Durante muito tempo, esta colocou as outras formas à margem da consciência, apontando-as como fraudes do espírito.
Mas pelo menos desde o século XVIII, uma revolução começou a operar na maneira de as pessoas verem a vida, no Ocidente. "A referência ao mundo divino, encarnado pela religião, começou a dar lugar a valores puramente humanos." E a poesia, a arte literária, que sempre procurou atingir o absoluto, passou a ser uma escolha clara desse desígnio.
A diferença é que na religião a busca é coletiva, e na poesia, é individual. Isso porque "a obra de arte, certa ou errada, nos dá em si uma sensação de plenitude, de realização e de perfeição que, por outro lado pedimos à nossa vida", diz Todorov.
Ele lembra, no entanto, que buscar a beleza da existência não exige a prática de qualquer arte que seja, nem consumir obras-primas. Mas há uma vantagem nessa prática ou nesse consumo. É que "a obra de arte é simplesmente o local em que esses esforços produziram seu resultado mais brilhante, onde são, por conseguinte, mais fáceis de ser observados."
Lado hostil
No caso da prática, os aventureiros do absoluto buscaram, cada um a seu modo, a convivência com os deuses, as esferas mais altas do espírito humano, pagando o preço da solidão e da tragédia pessoal que se tornaram suas vidas. Mas estavam conscientes disso: "para aceder ao absoluto, deve-se renunciar ao relativo."
Foi assim que viveu Wilde. Para ele, a beleza era a única coisa que importava na existência humana. Mas em sua concepção, a beleza, a estética, dizia respeito apenas ao belo. O belo encerrava a verdade da vida, o prazer e o sucesso. Wilde ignorava a desgraça humana, era adorado por todo mundo, vivia como um dândi, aceito nas mais altas rodas das sociedades inglesa e francesa.
No entanto, ao ignorar que a vida também oferece um lado hostil, e se esquecer de lançar no arquétipo de sua existência essa possibilidade, não conseguiu sobreviver após os dois anos de trabalhos forçados ao ser condenado por "atos grosseiramente imorais", leia-se, por ser homossexual. Quando sai da cadeia, sem o cortejo de antes, se autoexila na França, até morrer em Paris, três anos depois.
Já Rilke, diz Todorov, como Wilde, também "pensa que a busca do absoluto merece tornar-se o ideal da vida humana." Mas para ele não é a própria vida que tem de ser bela, e sim a obra de arte. Rilke então não ignora apenas parte da vida relativa, como Wilde, mas toda ela. Prefere a solidão, o isolamento para criar e escrever.
Com isso, o poeta sempre se autossabotou nas relações de amizade e de amor. Entre suas grandes paixões estiveram Lou Andreas-Salomé e Magda von Hattingberg. Sofria dores físicas constantes, passou por várias casas de saúde, mas tentava submetê-las ao seu ideal criativo. Mais tarde se descobre com leucemia, doença que o mataria depois.
Para Todorov, esta é a tragédia do poeta tcheco. Seu destino não é a solidão. "É a tentativa – frustrada – de fugir dela, a necessidade contraditória, e por isso trágica, de buscar e ao mesmo tempo temer o amor."
Lição
Ao contrário do que fizeram Wilde e Rilke, Tsvetaeva viveu mergulhada no sofrimento da vida prática, fazendo desta experiência objeto de sua poética, a angústia retrabalhada para virar beleza. Ela também renunciou à vida relativa, mas apenas como pessoa, não como poeta.
Como poeta e escritora, Tsvetaeva sangrou sua existência com o punhal da própria realidade que a cercava. O absoluto de sua obra foi alcançado por meio da tragédia de sua vida. Viveu a experiência de ser perseguida pelos vencedores da Revolução Russa, sofreu as consequências da guerra civil. Uma de suas filhas morreu de fome.
Exilou-se em Paris com a família e o marido, que depois se tornou agente secreto dos soviéticos, voltando para Moscou. Mas em 1941, os nazistas invadem a União Soviética e começa o cerco e a perseguição novamente, e a família teve de fugir para outra cidade. Ela, no entanto, não suporta a pressão e se mata.
A beleza salvará o mundo é um livro para lá de interessante justamente por narrar essa experiência poética e de vida de três grandes espíritos, autores de obras que continuam servindo de exemplo estético. Segundo Todorov, quem quer mergulhar nesse mar de contradição que é a própria vida, nessa busca do absoluto, sai ganhando com a lição que eles têm a nos dar. (Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 05/06/2011)
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