Se fôssemos ler todos os manuais que pretendem revelar os segredos da ficção, passaríamos a vida inteira sem mergulhar no prazer da leitura de romances, contos e novelas. Mas alguns desses livros oferecem um teor à altura das grandes prosas, porque seus autores sabem dialogar com o leitor.
Um exemplo formidável dessa fauna é Como funciona a ficção (CosacNaify, 2011, 232 páginas, R$ 49, tradução de Denise Bottmann), do crítico inglês James Wood. O autor fala da vasta gama de elementos da composição do romance, mas sua grande contribuição aqui é a desfiadura da prosa, é sua capacidade de fazer emergir o mais recôndito detalhe da massa do texto literário.
Logo no primeiro capítulo, Wood constrói seu campo de batalha, ou seu salão de festas. Ele cita uma frase do escritor alemão G. W. Sebald (1944-2001), para o qual "a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura difícil de tolerar (...). É inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro."
Wood faz a citação para contra-argumentar, para ir em defesa do discurso indireto livre, usado na literatura em terceira pessoa, combatida por Sebald. O cerne dessa crise é o grau de confiabilidade do narrador, que, narrando em terceira pessoa, pode se apresentar como onisciente, sugerindo saber até onde se posiciona a vírgula no pensamento do personagem.
A observação é pertinente, mas Wood contra-argumenta com mais perspicácia. Segundo ele, o narrador em primeira pessoa pode ser mais confiável (o que é negativo) do que o da terceira. A partir daí, o autor cita uma série de exemplos em que o discurso indireto livre se mostra mais ressonante do que qualquer outro tipo de discurso narrativo.
Num momento em que lemos uma biblioteca inteira de narrativas do 'eu', vale olhar para este pequeno tratado. Ele nos ensina que há determinados pontos de realidade que só a imaginação é capaz de alcançar.
E este alcance, muitas vezes, se faz melhor com o estilo indireto livre, aquele em que a voz do narrador, dos personagens e do autor se encontram no corpo do texto sem nenhum tipo de ressalva.
Expressividade
Wood tem uma espécie de habilidade de puxar com a pinça o detalhe mínimo, "expressivo e brilhante", que esclarece a compreensão do texto literário. Segundo ele, é no detalhe que está a expressividade da narrativa. E nos mostra isso, nos prova isso com diversos exemplos pescados nos mais brilhantes escritores.
Cita o trecho de um conto de James Joyce, "Os mortos", só para mostrar a sutileza do discurso indireto livre: "'Lily, a filha do zelador, estava literalmente com o coração na boca.' Mas ninguém fica literalmente com o coração", argumenta Wood.
Ele então acrescenta: "O que ouvimos [pela voz do narrador] é Lily dizendo a si mesma ou a algum amigo (com grande ênfase justamente na expressão mais imprópria, e com sotaque bem carregado): 'Eu 'tava lite-ra-menti co'o coração na boca'."
A apreciação do detalhe é coisa da literatura moderna. A clássica não se importava com o detalhe 'gratuito'. Quem deu ênfase a esse enfoque, quem praticamente o criou foi o francês Gustave Flaubert. É ele quem perpassa quase todo o texto de Wood, é a grande referência para todos os autores depois dele, inclusive Joyce.
"Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera", diz Wood, forçando a corda da ironia pelo lado dos poetas. Mas isso também faz parte do show, deste diálogo intenso e ao mesmo tempo leve, engraçado, cheio de blagues e reflexões inteligentes, que nos põe como parte da discussão.
Na comparação entre clássico e moderno, a temporalidade também é trabalhada noutro tipo de forma. Na literatura clássica, o tempo passa de maneira diferente, em tragos mais longos, talagadas que ceifam enormidades de detalhes (prisioneiros confortáveis desses intervalos supostamente ignorados).
É como se na literatura clássica se devesse olhar para cima, com binóculos ou telescópios, para ver o objeto literário. Já na moderna, o movimento é o contrário disso, devendo-se olhar para baixo, com lupa, um aparelho microscópio, ou como quem fotografa insetos com teleobjetivas. Segundo Wood, no último caso, quem nos mostrou como se faz foi Flaubert.
Engrenagem
Como funciona a ficção prima pela minuciosa análise do discurso indireto livre. A leitura do detalhe é a marca de Wood. Mas há muito mais coisas ali que ultrapassam o universo flaubertiano e discute toda a engrenagem da prosa. No capítulo "Uma breve história da consciência", nosso autor lida com peixes grandes, muitas vezes em águas profundas, citando exemplos de Dostoievski e Proust.
De vez em quando, ele também roça o dedo em detalhes de sua própria vida para ilustrar seu material de análise.
Questiona o conceito de personagens redondos e planos, de E. M. Forster, pondo no lugar os termos 'transparente' e 'opaco'. Questiona o conceito de realismo, mas não o nega enquanto linguagem. "O real está na base de minhas indagações", diz ele. O problema é que "o realismo comercial monopolizou o mercado e se tornou a marca literária mais poderosa."
Mas a rabugice de muitos críticos não procede, segundo ele. "A reclamação de que o realismo não passa de uma gramática ou de um conjunto de regras que obscurece a vida realmente se aplica melhor a [John] Le Carré ou P. D. James do que a Flaubert, George Eliot ou Isherwood."
E mais adiante arremata: "O gênero mais privilegiado em termos econômicos dentro desse 'realismo' totalmente apático é o cinema comercial, de onde a maioria das pessoas, hoje em dia, extrai a ideia do que é uma narrativa 'realista'."
Real diverso
O interessante dessa observação é que há outros tipos de realismo que parecem não interessar a Wood, mas que também estão longe de ser um um espaço "em que o maquinário da convenção está tão enferrujado que nada se move (sic)". Dois exemplos são Franz Kafka e Gabriel García Márquez.
Os dois são citados uma única e mísera vez, embora ambos também tenham grande preocupação com a realidade como fonte (como todo grande escritor). O problema é que o primeiro descamba para o absurdo das convenções, e o segundo, que chegou a dizer "não há nos meus romances uma linha que não esteja baseada na realidade", verte o real para o fantástico e a hipérbole (mas nem tanto).
Seria preciso mais que isso para esgotar a conversa com Wood. Mas dá para fechar esse diálogo com o entrelaçamento entre vida e literatura, na encruzilhada da linguagem, a fonte da percepção. Segundo o autor, "na vida e na literatura, navegamos por entre a estrela dos detalhes."
É esta sua grande sacada, porque, como ele mesmo diz, a vida nos enche de detalhes aos quais nem prestamos atenção, embora possam ser importantíssimos na execução de nossas escolhas. "A literatura nos ensina a notar melhor a vida", argumenta, porque nela lemos melhor o detalhe, aprendendo assim a ler melhor a própria vida.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
2 comentários:
Perfeita sua resenha. Estou no início do livro e agora fiquei ainda mais interessada.
Grande abraço
Obrigado, Maria! É um livro muito bom mesmo, né. Um abraço!
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