Polêmico combatente do racismo, criador de diversos eventos e instituições que ajudaram o Brasil negro a se fortalecer contra a discriminação racial, Abdias Nascimento morreu nesta terça-feira aos 97 anos. A notícia do falecimento foi dada pela imprensa, como o Jornal Hoje, da Rede Globo, por exemplo, que dedicou dez segundos à morte do líder negro.
Nascido em 1914, numa fazenda em Franca, interior de São Paulo, Nascimento foi abrindo caminho na sutileza do racismo à brasileira. Não foi o pioneiro da luta contra a discriminação no Brasil (Luiz Gama, veio primeiro, ainda no século XIX), mas deixou sua contribuição.
Em 1944, Fundou o Teatro Experimental Negro, na tentativa de formar atores e autores afrodescendentes para, ente outras ações, atuar em peças dessas temáticas que até então eram encenadas por brancos tingidos de preto.
Nascimento foi autodidata na maioria das atuações em que se engajou, como nos estudos da cultura africana, mas se graduou em Economia e fez pós-graduação em Estudos do Mar. Viveu um tempo no exílio, quando conheceu sua mulher Elisa Larkin, e ao voltar, criou o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), em 1981.
Fez grandes amizades com brancos e negros, mas sempre combateu a ideia de que o negro precisa da piedade branca para se autoafirmar. Nelson Rodrigues, que o considerava “o único preto autêntico do Brasil”, escreveu a peça trágica Anjo negro pensando em Nascimento como ator para interpretar o papel principal.
Foi jornalista, ator, autor, escritor, artista plástico, mas acima de tudo um mestre que delineou o cerne do enfrentamento contra o racismo no Brasil do século XX. As histórias são múltiplas. No Senado Federal, redigiu o projeto que instituiu o Prêmio Cruz e Souza, o Dia Nacional da Consciência Negra e uma série de outros projetos que ajudaram na criação da Lei de Combate ao Racismo (Lei Nº 3.926/2010).
Em 1969, o Teatro Experimental Negro promoveu o Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, cujos textos e apresentações deram origem ao livro O negro revoltado, organizado por Nascimento. Em 1982, o livro foi ampliado e reeditado, e hoje é uma relíquia do pensamento combativo e da capacidade de organização intelectual da comunidade negra brasileira.
Segundo Joel Rufino, um jovem intelectual no final da década de 1960 – e hoje um consagrado escritor brasileiro –, Nascimento procurava convencer a consciência negra de que a contradição racial era mais importante do que a luta de classes.
Mas muitos relutavam em aceitar tal ideia. Em 1982, no relançamento de O negro revoltado (claramente baseado nas argumentações filosóficas de Albert Camus), Rufino se redime para dizer:
“De lá para cá, aprendemos bastante para ver que a luta de classes não passa de uma boa e velha lei – confortável e grosseira. Corresponde a uma verdade, sem dúvida, como a lei da gravitação universal; mas só com ela nada compreenderíamos, hoje, da sociedade brasileira, como nada compreenderíamos – por analogia – do universo, sem as formas de interação magnética e nuclear, que nossos bisavós ignoravam. Abdias tinha, vejo agora, mais razão que nós.”
Atualmente, a consciência negra brasileira avançou, se desenvolveu e está muito mais bem arranjada intelectualmente, com muito mais negros capazes de pensar nossa realidade. O que falta são espaços na mídia. Mas é outro assunto.
Em todo caso, Nascimento ainda continua tendo razão, e continuará por um bom tempo, quando fala da carência de literatura de temática negra escrita por escritores negros de peso:
“Até a década de 1970, por conta do racismo e do preconceito, este país ainda não havia produzido uma geração de escritores negros. Até então, o que tínhamos eram exceções, escritores negros isolados, solitários, perdidos num mar de branquidão, como se fossem, em cada época, mosca no leite da palavra.”
Nascimento teve boa vontade ao sugerir que daquela época para cá a seara cresceu. Pode ter crescido, mas ainda é pouco, pela representatividade social que somos. Nossa consciência, como coletividade negra capaz de se refletir na arte e nas letras ainda precisa desenvolver mais.
Este post é apenas para não deixar passar em branco a data da morte desse guerreiro, polêmico até o fim. Muitas histórias de sua vida pessoal são criticadas. Muitas delas ele esclarece em Abdias Nascimento – o griot e as muralhas, escrito a quaro mãos, junto com Éle Semog.
Outras virão à tona em biografias mais isentas, agora que ele morreu. Mas a lembrança de que foi um grande combatente em favor das causas negras permanecerá, como ainda permanece o objeto da luta, o racismo.
Alguns não veem o racismo, outros não querem ver, e tantos outros, talvez a maioria, fazem uma tremenda confusão entre racismo e preconceito que só ajuda a engrossar a névoa do cinismo no Brasil. Ao escancarar esse cinismo é que Nascimento foi muitas vezes rechaçado.
Parte da elite intelectual branca brasileira, a que acha que são os únicos capazes de falar de sociologia no Brasil, os únicos donos da verdade sobre o conflito racial brasileiro, bloqueiam o discurso de Nascimento. Mas ele continuará falando aos interessados.
Seus escritores permanecem. Estão aí. Quem se interessar pelo esclarecimento necessário, poderá ouvir a voz dele:
“Sei muito bem que meu discurso costuma ser desagradável num país que se acostumou a achar que negros bons são aqueles que conhecem o ‘seu lugar’, que é o da submissão e o da inferioridade.”
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